Ver o número de casos e de óbitos da doença aumentar de forma exponencial a cada dia. Utilizar máscara ao sair na rua e reforçar os cuidados de prevenção para não ser contaminado. Ter de ficar em casa como medida de isolamento social. A sensação é de que isso nunca aconteceu antes da Covid-19, pandemia mundial que já atingiu 1,6 milhão de pessoas e levou a mais de cem mil mortes, em 2020.
De fato, talvez grande parte da população não tenha enfrentado uma situação como essa, antes. No entanto, surtos, epidemias e pandemias fazem parte da história mundial, em diferentes períodos. A Peste Negra, em 1347, a Gripe Espanhola, em 1918, e a Gripe Suína, em 2009, são apenas alguns exemplos. Meningite, aids e varíola foram outras doenças que se destacam entre epidemias recentes no Brasil.
Em meio ao desafio de conter o número de casos, as epidemias tiveram papel decisivo no avanço da saúde pública, especialmente a partir do fim do século XIX. “Comparando com o século XIV, quando ocorreu a Peste Negra, no início do século XX, o avanço da medicina esteve acompanhado do poder público numa política de combate ao vírus”, afirma o professor de História e Relações Internacionais da Universidade do Vale do Taquari (Univates), Mateus Dalmáz.
“Na Gripe Espanhola, em 1918, e na Gripe Suína, em 2009, evidenciou-se a importância estratégica do Estado nos momentos de pandemia, não deixando a sociedade civil desamparada e entregue à iniciativa coletiva e individual. Em 2020, a tendência das lideranças mundiais, em cada país, tem sido essa: a de não abrir mão de políticas públicas diante de crise sanitária e econômica. Trata-se de um legado do século XX.”
MATEUS DALMÁZ – Professor de História e Relações Internacionais
Com mestrado na área da Epidemiologia, o médico pediatra Vilson Gauer explica que, especialmente a partir do fim do século XIX, passou-se a ter maior controle das doenças e um fortalecimento da saúde pública. A primeira investigação epidemiológica que se tem registro foi feita por John Snow, em 1854, para analisar o surto de cólera em Londres, na Inglaterra. “Antes mesmo dos estudos de bacteriologia, que revolucionaram a Medicina, essa pesquisa de Snow evidenciou como a bactéria afetava a saúde”, comenta Gauer.
Em meio ao surgimento de indústrias e a expansão da urbanização nas cidades, trabalhadores viviam em situações precárias e trabalhavam de forma insalubre. “Começou-se a perceber que morria muita gente, muita mão de obra, e a partir disso a epidemiologia se fortaleceu”, destaca o médico.
De acordo com ele, Alemanha e Inglaterra foram os países que mais se destacaram, com a adoção de ações sanitárias que influenciaram todo o mundo, como medidas de higiene, construção de ruas mais largas, espaços mais arejados, melhores condições de trabalho, seguro-saúde a trabalhadores e a retirada dos cemitérios de dentro das cidades. “A cólera era causada por uma bactéria transmitida pela água. Foi uma doença que matou milhões de pessoas.”
VÍRUS
Se, no caso da cólera, da Peste Negra e da peste bubônica – causadas por bactérias – a adoção de medidas sanitárias como saneamento básico garantiu a contenção das epidemias, a situação é diferente no caso das doenças causadas por vírus. “Como são altamente transmissíveis, essas doenças estão muito ligadas à existência de aglomerações. Por isso, atualmente, os vírus são os grandes causadores de pandemias”, argumenta Gauer.
No caso do coronavírus, o médico considera que ele ainda não se alastrou mais pelas medidas de isolamento já adotadas. “O que preocupa é que a propagação é muito rápida e, se não houver o isolamento, os grupos de risco logo serão atingidos. O coronavírus é um vírus comum, que causa resfriados, mas também afeta o pulmão e pode causar a Síndrome Respiratória Aguda Grave, o que pode levar à insuficiência respiratória e à morte”, esclarece.
Ele cita, inclusive, que estudos têm indicado a suspeita de que, além de o vírus ser contraído quando uma pessoa toca superfícies contaminadas e leva as mãos aos olhos, boca ou nariz, o vírus da Covid-19 pode ser transmitido pelo ar, em ambientes fechados.
“O coronavírus está mostrando coisas importantes, como o poder do SUS. Apesar da precariedade que ainda existe em alguns setores, é através do SUS que se vai prestar assistência à população nesta pandemia. Outro aspecto é que grupos de risco, das doenças crônicas como hipertensão, diabetes e asma, devem ser melhor assistidos, para que as doenças sejam controladas e se evite esse impacto.”
VILSON GAUER – Médico
Por meio do SUS, o Brasil realiza o monitoramento epidemiológico de diversas doenças, com acompanhamento de casos, boletins com números atualizados e estatísticas. Entre elas, estão desde a Influenza (gripe), até dengue, aids, meningite e sarampo.
SURTO, EPIDEMIA E PANDEMIA
Uma doença passa a ser surto quando diversos casos acontecem numa mesma região, como em uma cidade. Já o termo epidemia é utilizado quando os casos se espalham por mais regiões de um município, de um estado ou de um país. A designação pandemia é usada quando a doença transmissível tem casos em todos os continentes.
“O MAIOR AVANÇO FOI O SURGIMENTO DAS VACINAS”
De acordo com o médico Vilson Gauer, o desenvolvimento de vacinas e a disponibilização delas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) são as principais responsáveis pela redução drástica de casos de doenças altamente transmissíveis, que já causaram surtos e epidemias no Brasil.
Entre elas, estão meningite, difteria, varíola, sarampo, tétano e coqueluche. “O maior avanço que tivemos foi o surgimento das vacinas. As vacinas estão entre as dez maiores descobertas da Medicina”, ressalta, ao lembrar que a onda antivacinação, que cresceu nos últimos anos, fez com que doenças praticamente erradicadas voltassem a aparecer, como é o caso recente do sarampo.
Gauer observa, ainda, que a inexistência da vacina contra o coronavírus, até o momento, é um dos desafios para barrar a transmissão. “Em 2009, na epidemia de H1N1, as aulas também foram suspensas por um período e muitos eventos cancelados. A diferença é que se tinha uma vacina que ajudou a conter o vírus”, explica o profissional, que foi secretário municipal de Saúde, na época.
“Para o coronavírus, ainda não temos vacina, e ele tem alta taxa de transmissibilidade. Por isso, é fundamental manter o isolamento social e fazer o uso de máscara. Em abril e maio, ainda teremos um período crítico”, alerta.
LEMBRANÇAS DA EPIDEMIA DE MENINGITE NOS ANOS 70
Na década de 70, o Brasil viveu sua maior epidemia de meningite. Em meio à ditadura militar, a imprensa foi censurada a fazer a cobertura completa da epidemia que se instalava no país. Assim, a população não tinha conhecimento da doença, dos sintomas e de como evitá-la, o que fez com que a doença, que inicialmente tinha casos apenas em São Paulo, se espalhasse pelo país.
Mesmo que não haja nada documentado daquele período, no Museu de Venâncio Aires, nem registros de números de casos no município, recordações da época estão marcadas na memória do médico pediatra aposentado e tesoureiro do Museu, Flávio Seibt. Ele conta que, após 2 anos de especialização da esposa Francismar em Infectologia, no Hospital Emílio Ribas, e dele, em Pediatria, na Santa Casa de São Paulo, eles voltaram a Venâncio Aires. “Em 1974, atendemos nossa primeira consulta, um menino de 7 meses que foi diagnosticado com meningite meningocócica por punção lombar e hospitalizado em estado grave”, relembra.
Seibt afirma que, naquela época, o Hospital São Sebastião Mártir ainda era “muito rudimentar, sem enfermagem de alto padrão, com raio X antigo e um pequeno laboratório”. Também não havia leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e os consultórios eram nas residências dos médicos, que exerciam clínica, cirurgia geral e obstetrícia. “Em 1976, com a meningite disseminada, atingindo grande número de pessoas, chegamos a ter sete pacientes hospitalizados com meningite, obrigando a criação de um setor de isolamento no HSSM”.
Para evitar o contágio, não era permitida a visita, e apenas os profissionais da área da saúde circulavam pelos corredores. Seibt relata que, muitas vezes, ele teve que ir de madrugada para o hospital, durante as baixas temperaturas de inverno, para prestar assistência às vítimas de meningite meningocócica.
Devido ao alto risco de contaminação, durante a epidemia, ele e a esposa tiveram que levar a filha para morar com a avó. “Ela não entendia porque estávamos sempre vestidos com roupa de cirurgião e máscaras. Só reconhecia a nossa voz, mas não conseguia entender porque estávamos naquela situação. Foram momentos muito difíceis que vão ficar marcados para sempre”, relembra o profissional.
PACIENTE
Com apenas 7 meses e meio, Vandir Luiz Dessoy foi a primeira vítima de meningite a ser atendida por Seibt, em Venâncio Aires. A família procurou o médico porque percebeu que o bebê não estava bem. “Ele chorava muito e jogava a cabeça para trás”, recorda a mãe, Hilda Dessoy, que na época ficou em choque com a situação de saúde do filho único.
Ela e o marido, naturais de Mato Leitão, tiveram que ficar 18 dias no hospital, durante a recuperação de Vandtir. “Ninguém podia entrar, só os pais, foi uma situação muito preocupante. Saímos de lá direto para o banho”, lembra Hilda.
Após este período, a família foi para casa com o bebê, que se recuperou totalmente, depois de dois meses. Apesar de não lembrar da situação, Dessoy guarda muita gratidão pelo profissional. “Ele salvou a minha vida”, salienta.
EPIDEMIAS MUNDIAIS
Um resumo de três pandemias que marcaram a história mundial, elaborado pelo professor de História e Relações Internacionais Mateus Dalmáz:
- Peste Negra – Um dos casos mais conhecidos de pandemias, a Peste Negra atingiu Veneza, em 1347, e causou milhões de mortes por contágio de bactéria. A proliferação de ratos e pulgas na cidade, muitos dos quais saídos de embarcações mercantes provenientes das mais diversas regiões, foi facilitada pelas péssimas noções de higiene dos europeus naquele século, que viviam em núcleos urbanos sem planejamento, luminosidade, ventilação e limpeza. Como modo de combater a peste bubônica, a curto prazo, houve migrações para o campo, para evitar aglomero de gente, e, a longo prazo, foram desenvolvidas melhores estruturas urbanas e arquitetônicas, além de hábitos de higiene pessoal.
- Gripe Espanhola – Em 1918, o vírus influenza do tipo A H1N1 provocou milhares de mortes no Ocidente. A chamada Gripe Espanhola, cuja origem é incerta e a alcunha “espanhola” é equivocada, atingiu países do hemisfério Norte no auge do inverno por lá e não tardou a chegar no Sul, provocando mortes inclusive no Brasil. A gripe ficou também ficou famosa por vitimar o presidente recém-eleito Rodrigues Alves. Sua morte provocou eleições presidenciais extra no início de 1919, algo inédito na história do país. Como forma de combate ao vírus, além das pessoas terem feito uso de reclusão social, foi importante o papel do Estado, que colaborou com a campanha do isolamento e com distribuição e aplicação de vacinas. Comparando com o século XIV, no início do século XX, o avanço da medicina esteve acompanhado do poder público numa política de combate ao vírus.
- Gripe Suína – O exemplo mais recente é da Gripe Suína, de 2009, que se disseminou a partir do México. Naquele ano, uma variação violenta do vírus H1N1 também fez com que o Estado e a sociedade civil se mobilizassem em torno de isolamento social. Escolas, empresas, clubes e outras instituições tiveram suas atividades encerradas por um curto tempo e o poder público atuou mais uma vez na distribuição e aplicação de vacinas.
* Colaboração: Taiane Kussler