Para as gerações mais novas, talvez seu rosto seja conhecido do balcão da farmácia que administra, na parte baixa da cidade. Ou já o tenham visto correndo pelas ruas de Venâncio Aires, pois faz maratonas (42 quilômetros) com um fôlego de dar inveja para quem tem quase 60 anos e já participou de várias edições da São Silvestre, a corrida de rua mais tradicional de Brasil.
Mas talvez quem o vê correndo hoje não imagina que, durante muito tempo, ele correu pelos gramados de Venâncio e do Rio Grande afora. Corria atrás de atacantes, de todos os lados e posições. Afinal, ele próprio, também variou em campo: jogou na terceira e quarta zaga. Foi lateral direito e, mesmo destro, muitas vezes escalado no flanco esquerdo. Com o número 5 nas costas, era o cabeça área de confiança, na primeira volância, protegendo bem os zagueiros. Foi, de fato, um grande marcador, quase incansável na perseguição dos adversários. Fazer gol era coisa rara, mas tem um que marcou história, nos primeiros anos do Guarani no Gauchão. A Folha do Mate conta a seguir a trajetória de Carlos Silberschlag, 59 anos, que, antes de ser maratonista, se destacou pela liderança e pela polivalência no futebol.
Das linhas de cal ao título amador de 1988
Carlos Silberschlag morava a poucos metros do campo do Fluminense, de Linha Sapé. Se criou nele, ainda mais que o pai, Paulo, foi presidente do clube durante muito tempo. Ainda guri, quando a idade não lhe permitia vestir a camisa tricolor, se fez protagonista de outra forma nos gramados: era ele quem pintava, com todo capricho, as linhas divisórias. Usando um pincel, cal e água, delimitava o campo. Mas Carlos gostava mesmo é de bater bola e aproveitava os intervalos para fazer isso com as outras crianças. Com 14 anos, começou no ‘segundinho’. Às vezes eram apenas 10 minutos de oportunidade e, mesmo destro, jogava na ponta e lateral esquerda, dando mostras de uma polivalência que o acompanharia por anos no futebol. Aos 17, já estava entre os Titulares, disputando campeonatos como lateral, de ambos os lados.
Na adolescência, quando já morava com os avós na cidade, perto do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) – o avô paterno, Armindo, era presidente – , Carlos estudou no Colégio Gaspar, onde fez o Técnico em Contabilidade; foi entregador do jornal Folha do Mate e estafeta da Caixa Federal. Adulto, começou a trabalhar no Expresso Cruzador e foi lá que o futebol novamente lhe bateu à porta, literalmente. “Disputamos um campeonato do Sesi. Fiz um jogo normal, na minha opinião. Mas depois desse jogo recebi um convite”, lembra Carlos, hoje com 59 anos.
Dias após esse jogo, Paulo Morsch e João Percy Lenz, então dirigentes do Guarani, foram à casa de Armindo e convidaram o neto dele para integrar o elenco do Guarani. “Na hora falei que não. Eu era um ‘bicho do mato’, sempre fui muito na minha. Mas eles insistiram e acabei indo.”
Assim, Carlos passou a integrar o Guarani e entrou para a história ao compor o time campeão gaúcho amador de 1988, jogando com a camisa 5, de primeiro volante. “Foram três empates em 0 a 0 com o Sapiranga. Nos pênaltis, bati e marquei e depois o Mano [Menezes] converteu o do título.”
O volante vira zagueiro
Em 1989, na chamada ‘Segundona’ do Campeonato Gaúcho, Carlos, com seu 1,85 metro, vira zagueiro. Naquela temporada, faltou apenas um ponto para o Guarani subir. O acesso vem em 1990, quando Carlos formou dupla de zaga com Bolívar Modualdo Guedes, ou apenas Bolívar (pai do ex-zagueiro colorado, também conhecido pelo mesmo nome). Além de Bolívar, Carlos lembra da parceria com Gilmar Iser na zaga. “Em 1991, ficamos 19 jogos sem perder. Foram dois grandes companheiros de time.”
Mesmo jogando profissional, Carlos continuava trabalhando no Cruzador. “Um dia, o seu Ottmar Benno Schultz e os filhos me chamaram e disseram que eu poderia continuar trabalhando lá e estaria liberado para treinar. Consegui conciliar por seis temporadas.”
O gol de falta
Embora seu forte fosse a marcação, Carlos conta que, eventualmente, se arriscava em bater faltas. Ou melhor, o fazia quando ninguém queria assumir a cobrança. No campeonato de 1990, contra o time de Três Passos, no Edmundo Feix, o zagueiro marcou um gol até hoje falado na cidade.
Era uma falta na intermediária esquerda. Era tão longe, que quando se posicionou para o chute, estava quase na linha de meio campo. “Bate direto, Carlos, bate direto”, ouviu de Vovô, companheiro de equipe.
O chute saiu muito forte e entrou à meia altura, do lado direito do goleiro, na meta que fica para o lado da rua Jacob Becker. “Acho que o goleiro deu uma escorregada e poderia ter chegado na bola”, avalia, modesto. O gol foi decisivo e contribuiu para o Guarani conseguir o acesso naquele ano.
Um tombo no escuro e o intermediador de autógrafos
Os tempos de Guarani rendem lembranças boas para Carlos, muitas delas engraçadas. Em 1991 tinha jogo contra o Inter, pelo Gauchão. Depois do coletivo na sexta, Carlos vai para casa ficar com a esposa Marinita, hoje com 61 anos, e o primogênito, Adriel, então um bebê de poucos meses.
Certa hora da noite, o menino começa a chorar e, sem querer acordar a esposa, se levanta no escuro e vai acalmar o filho. Na volta para quarto, Carlos ‘erra’ a posição da cama e senta na ponta, caindo de costas na lateral, próximo à parede, com as pernas para cima. Um dos pés bate no vidro da janela e ele sofre um corte profundo perto do tendão de Aquiles.
Foi para o hospital, tomou pontos e pensou: como iria explicar isso? “Sábado de manhã cheguei no estádio e não pude treinar. Fiquei dias sem jogar e depois ainda precisei de uma chuteira maior. O pior é que ninguém acreditou na minha história”, relata.
Outra história remete a um jogo contra o Inter, no Edmundo Feix. Terminada a partida, torcedores começaram a gritar por Carlos e Eldor Bohn, para que se aproximassem. “Eu disse pro Eldor pra gente ir lá, talvez quisessem um autógrafo. Daí chegamos perto e realmente eles queriam autógrafo, mas dos jogadores do Inter e a gente era pra entregar o papel e a caneta”, lembra, entre risos.
Como marcar Jardel?
Em 1994, a convite do técnico Celso Freitas, Carlos vai para o Santa Cruz, de Santa Cruz do Sul. Foram duas temporadas lá e, desse tempo, lembra de um dos confrontos mais difíceis, contra aquele que é considerado um dos maiores centroavantes brasileiros na década de 1990: Jardel.
Em dezembro daquele ano, pelo Gauchão, o Grêmio foi a campo três vezes no mesmo dia. “Era o terceiro jogo do Grêmio e os titulares estavam no banco. A gente ganhava por 3 a 1, dentro do Olímpico. Faltando poucos minutos, entram Paulo Nunes e Jardel. Perdemos por 4 a 3.”
Para Carlos, o enfrentamento com o centroavante gremista foi um dos mais difíceis da carreira. “Era complicado marcar ele. Com os pés, até podia deixar sozinho. Agora, na bola área, ele era incrível. A cabeçada parecia um chute.”
A volta para o amador
Em 1995, já com o caçula Douglas nascido, Carlos e a esposa Marinita, que já tinha experiência em farmácia, decidem abrir o próprio estabelecimento. Assim, começa a história da Farmácia do Agricultor, ponto conhecido na parte baixa da cidade. Agora com o foco no próprio negócio, ficaria difícil conciliar o futebol. Por isso, Carlos decidiu parar, pelo menos profissionalmente.
Com cerca de 30 anos, então, volta para o futebol amador, novamente jogando em todas as posições da defesa (menos goleiro) e como volante. Entre os veteranos, vestiu as camisas de Flor de Maio, Monterrey, Onze Unidos, Santa Tecla e Saraiva. Também disputou campeonatos de futsal. Em 1999, devido a uma lesão ligamentar no joelho, se tornou treinador do Fluminense de Sapé, seu time de infância e adolescência, e conduziu a equipe ao título da Taça da Amizade daquele ano.
Da corrida em campo para as maratonas
Conforme os filhos iam crescendo, Carlos seguia com o futebol entre os veteranos. Nos fundos da casa dos avós, na rua Getúlio Vargas, fez um campinho para Adriel e Douglas jogarem, mas nunca impôs o gosto ou a prática do futebol a eles, tanto que Douglas é gremista, enquanto o pai é colorado. Esse campinho, aliás, também foi delimitado com pincel e cal, como Carlos fazia, nos tempos de guri em Linha Sapé.
Com cerca de 48 anos, o ex-jogador do Guarani decide ir parando com o futebol, porque descobre um outro esporte: a corrida. E a história dela começa de forma despretensiosa. O compadre, Marcelo Theisen, lhe convida para participar de uma meia maratona (21 quilômetros). “Nunca!”, respondeu Carlos. Mas, certo dia, ele, o filho Douglas e Marcelo saem correndo do Centro de Venâncio em direção à Linha Pinheiral, em Santa Cruz. “Cheguei 10 minutos na frente deles. Aí provoquei: não sou eu que vou correr com vocês. Vocês vão correr comigo.”
Desde então, Carlos corre três vezes na semana, às vezes mais de 15 quilômetros por dia, além de frequentar academia. Antes da pandemia, chegou a participar seis anos seguidos da São Silvestre, a corrida de rua mais tradicional do Brasil. Em junho, vai participar de uma maratona em Porto Alegre. “Nunca imaginei que iria correr.” Quanto ao futebol, Carlos diz que hoje o jogo é sem compromisso, mas, sempre que surge um convite aqui ou outro ali, dá um jeito de participar.
“O futebol me ajudou financeiramente e me trouxe grandes experiências. Mas principalmente a capacidade de união que proporciona e o ambiente para fazer amizades, as quais carrego até hoje.”
CARLOS SILBERSCHLAG – Empresário, maratonista e ex-jogador de futebol