Para o Tenente, é uma grande oportunidade manter vivo os feitos dos Pracinhas. (Fotos: Arquivo Pessoal)
Para o Tenente, é uma grande oportunidade manter vivo os feitos dos Pracinhas. (Fotos: Arquivo Pessoal)

No dia 22 de agosto de 1942, o então presidente da República, Getúlio Vargas, declarou que o Brasil entraria na Segunda Guerra Mundial para apoiar os Aliados – grupo composto por Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos. Hoje, mesmo após oito décadas de um dos períodos mais difíceis para o mundo, os feitos dos mais de 25 mil homens que lutaram pelas Forças Expedicionárias Brasileiras (FEB) estão vivos na memória de muitos brasileiros. E, entre eles, está o primeiro tenente do Quadro Auxiliar de Oficinas do Exército, o morador de Venâncio Aires Charles Bertuol, de 51 anos. Atualmente, ele mora em Pistoia, na Itália, onde cumpre uma das missões mais importantes da sua vida: manter viva a história dos Pracinhas.

História

A obrigatoriedade era entrar para o quartel aos 18 anos, mas não ficar pelos próximos 32 anos. Charles Gustavo Bertuol, nascido em Caxias do Sul, na serra gaúcha, veio para Vila Estância Nova – antes, Estância Mariante, no interior da Capital do Chimarrão – com a mãe Terezinha Bertuol, aos 4 anos de idade. Irmão mais velho de Fábio Bertuol, de Émerson dos Santos – o Tuta, dono da Kombi Yolanda – e de Éverton dos Santos, teve a infância toda em Venâncio, onde estudou no Colégio Agrícola, hoje Wolfram Metzler, até o Ensino Médio. Depois, mudou-se para Viamão, para seguir no ramo da agricultura.

“Mas o alistamento militar era obrigatório e, com 18 anos, eu me alistei”, recorda Bertuol, que se mudou para São Gabriel para cumprir o período militar como soldado. Nesta época, descobriu uma nova paixão, deixou a agricultura e seguiu como militar. Hoje, aos 51 anos, o tenente vive em Pistoia, na Itália, com a esposa Silveti Bertuol, de 51 anos, e a filha, Amábile Bertuol, de 16 anos. “O nome da nossa filha é italiano”, comenta.

Após muitos anos rodando o Brasil, o militar chegou em Pistoia, depois de um processo seletivo. “Um dos requisitos era saber a língua. Eu já havia feito Espanhol e Inglês para o quartel. Em 2018 comecei a estudar o Italiano como realização pessoal. Esse processo facilitou minha ida”, explica.

Bertuol vive na Itália com a filha Amábile e a esposa Silveti.

Monumento

“Eu tirei foto com alguns Pracinhas quando era criança, tenho vivos na minha memória alguns deles. Para mim, são heróis”, diz. E é com esse pensamento que Bertuol recebe os visitantes no Monumento Votivo Militar Brasileiro, onde estiveram enterrados, antes da construção de um memorial, 465 Pracinhas que lutaram na Segunda Guerra Mundial, na Itália. Após a retirada dos restos mortais dos homens, eles foram levados para o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde foi construído o Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial, em 1960.

Mas, por qual motivo não deixar estes homens onde estavam? Bertuol salienta que foi o desejo do general Mascarenhas de Morais – comandante da FEB -, trazer os ‘garotos’ de volta para casa. “Tem uma placa ao lado do posto dele no monumento que diz assim: ‘Eu os levei para a guerra. Cabe a mim levá-los de volta ao seio da pátria amada para receber as honras merecidas”, recita.

Já o monumento em Pistoia foi construído, também, em 1960, com o objetivo de manter viva a história dos homens brasileiros que combateram na Itália durante a guerra. “Os militares brasileiros são muito bem vistos aqui, por conta do que foram para os civis na época. Não era permitido repartir comida, mas eles davam”, diz. Bertuol afirma que quem dá esse relato são os idosos que viveram este período quando eram apenas crianças.

Por conta do trabalho, que na verdade é uma missão de um ano, o gaúcho acrescenta que tem a oportunidade de conhecer muitos parentes de Pracinhas. “É um momento muito emocionante”, afirma. No Monumento Votivo, como não há mais os restos mortais, foram gravados os nomes dos soldados em uma parede. “Abaixo há um espelho d’água e os nomes refletem nela. E o céu se refletindo na água, leva o nome dos heróis ao céu, que é a glória maior dos heróis ter seus nomes escritos entre as estrelas”, explica.

Soldado Desconhecido e o fim da missão

A construção do memorial italiano demorou seis anos. No dia da inauguração, em 7 de julho de 1966, uma revelação. Um civil italiano que participou da cerimônia relatou ao guardião – que cuidaria do monumento e que também era militar -, que tinha visto os soldados alemães despejarem um corpo de um brasileiro em um buraco, na cidade de Montese, 45 quilômetros distante de Pistoia.

“Imagina, ele ficou 22 anos com aquilo na cabeça, e no dia da inauguração ele contou”, comenta Bertuol. Com isso, o cidadão indicou o local onde tinha presenciado a cena e iniciaram as buscas. “Ele relatou que pegou as botinas e relógio desse soldado. Pensa o quanto isso era valioso durante a guerra. Ele trocou por comida para poder alimentar a família”, considera.

A partir daí iniciou a procura pelo soldado, e em 1967 ele foi encontrado, identificado apenas pelo botão da blusa – um alto relevo, com as estrelas do Cruzeiro do Sul. Em seguida, foi enterrado junto ao monumento e ficou conhecido como Soldado Desconhecido. Bertuol confirma que, até hoje, dois Pracinhas não foram encontrados e, no memorial brasileiro, há mais 10 homens sem identificação. “Nas lápides há uma escrita que diz: Deus sabe seu nome”, esclarece.

O trabalho desempenhado pelo primeiro tenente é uma missão. “Minha missão como guardião do monumento iniciou no dia 15 de setembro de 2021 e terminará no dia 14 de setembro de 2022. Eu vim já sabendo quando ia voltar”, relata. Ele afirma que o intuito da missão era cultural, em que teria a responsabilidade de manter viva a história dos Pracinhas. No entanto, acabou se tornando assessor do Adido Militar do coronel Sérgio Oliveira, de Roma, e, por conta da função, faz a parte administrativa e de manutenção do local.

Em setembro, o militar retorna para a capital do Brasil, onde permanecerá nos próximos dois anos. “Eu fico até lá e retorno em 2024, se tudo ocorrer bem, como militar da reserva”, conclui.

O local é visitado por turistas brasileiros e italianos que desejam saber mais sobre a história da guerra.

Turistas

• Bertuol afirma que no monumento, mantido pelo Ministério das Relações Exteriores, passam cerca de 120 pessoas por mês e, desse total, 80 são brasileiros. “Muitos brasileiros vivem aqui na Itália e muitos turistas vêm conhecer. Os italianos também mantêm essa recordação sempre ativa. Ninguém quer que a história seja repetida”, salienta.

• Em adição aos nomes na parede, quem visita o monumento na Itália pode conferir uma pequena exposição com artefatos que foram salvos da guerra. “Há outros monumentos espalhados pela Itália, pela Segunda Guerra ser muito viva no país”, finaliza.

Trajetória militar

1990 – Ingresso no serviço militar obrigatório, como soldado recruta, em São Gabriel. Neste mesmo ano já iniciou curso para cabo.

1991 – Início do curso para sargento temporário, do qual já saiu como terceiro sargento. Em 1992, prestou concurso para sargento.

1993 – Entrou para a Escola de Sargentos das Armas, na cidade de Três Corações, em Minas Gerais. Neste ano, Silveti e Charles se casaram. Em 1994, foi designado para trabalhar no 54º Batalhão de Infantaria de Selva, na cidade de Humaitá, na Amazônia.

1996 – Voltou para Santa Cruz do Sul, onde ficou até 1999, mesmo ano que se mudou para Manaus, para atuar como instrutor do Curso de Guerra na Selva. Já em 2002, foi para Blumenau, onde nasceu a filha Amábile, e ficou até o ano de 2008.

Ainda em 2008, voltou para Santa Cruz para atuar no 7º Batalhão de Infantaria Blindado (BIB). Permaneceu até 2015, quando foi para a Guatemala como primeiro sargento, para atuar em uma missão de um ano.

Depois, retornou a Brasília, onde ficou até 2021, quando embarcou para Pistoia, na Itália. Com todas essas andanças, o militar fala Português, Inglês, Espanhol e Italiano, sempre com facilidade em se adaptar.

Setembro de 2022 é o mês de volta ao país de origem. A previsão é de que em dezembro de 2023 o tenente seja promovido a capitão e, em 2024, entre para a reserva e retorne à Capital do Chimarrão, junto da família.

Getúlio declara guerra ao Eixo

Mesmo com uma postura similar aos países do Eixo – composto por Alemanha, Itália e Japão -, de acordo com a historiadora Angelita da Silva, o presidente Getúlio Vargas foi estratégico. “Ele tinha algumas similaridades com esses países em alguns pontos. Mas, para a guerra, foi esperto. Quem paga mais para auxiliar no combate? Os norte-americanos foram superiores. A guerra foi declarada ao Eixo após bombardearem alguns navios brasileiros”, argumenta.

Angelita explica que a declaração de guerra foi em 1942, mas o recrutamento iniciou em 1943, quando a Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi criada para o alistamento dos Pracinhas. A ida para a Itália ocorreu em 1944. “Há relatos de que o Brasil não tinha estrutura para combater. Tinham armas antigas e roupas que não se adequavam ao frio europeu. Foram os norte-americanos que passaram um treinamento para usarem o armamento mais novo”, explica.

Venâncio no combate

“De Venâncio foram, sim, alguns Pracinhas. Acredito que todos voltaram vivos, pois nem todos foram designados para o combate. Entre os recrutados, destaco o nome de dois capelões: Nilo Kollet e Jorge Brito”, salienta. A professora acrescenta que Brito escreveu o livro ‘Eu fui capelão da FEB’, que traz experiências vividas como padre na guerra. A obra está disponível no Museu de Venâncio Aires. Ela ainda ressalta que continuou como religioso por alguns anos. “Depois ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde faleceu. Já Nilo, foi padre até a morte”, conclui.

Na Praça Henrique Bender, há um monumento construído para homenagear os Pracinhas de Venâncio. Erguido em 2008, em uma iniciativa do Rotary Club Venâncio Aires, o projeto do arquiteto Giovani Bülow traz os nomes de Adão Niedermeier, Alberto José Theisen, Arlindo Cristman, Armindo Nietche, Bertoldo Alberto Posselt, Edmundo Fo Goettems, Helvino Schossler, Padre Jorge Brito, Reinaldo Willms, Sebastião Vieira Chaves, Valdemar Ribeiro, Agapito Gasparini, Alfredo Scheibler, Arlindo Fanck, Balduino Neumann, Carlos Arnoldo Ewald, Emilio Alberto Seidel, Octavio Ramos, Padre Nilo Kollet, Romildo Alves Godoy, Siegesmundo Brandenburg e Walter Bencke.

O nome Pracinhas vem da expressão ‘sentar praça’, que significa se alistar no Exército para a guerra.

Monumento em homenagem aos expedicionários está localizado na Praça Henrique Bender. (Foto: Bruna Stumm/Folha do Mate)

Impressões de repórter

“Na semana em que se completam os 80 anos da entrada do país na Segunda Guerra e se comemora o Dia do Soldado Brasileiro, 25 e agosto, poder trazer a história do Charles é um presente. Uma pessoa simples e humilde, que conta os feitos dos Pracinhas e do Monumento Votivo com muito orgulho. Um desafio repassado pela minha colega Débora Kist, que produz belas matérias históricas, mas que, dessa vez, só disse: ‘Bruna, toca ficha que essa é tua’. E assim foi feita. A publicação da matéria se dá aos 45 do segundo tempo, já que Bertuol volta ao Brasil em setembro, mas deixo aqui minha gratidão e alegria em poder deixar registrado nas páginas do jornal a trajetória do militar”.