Futebol de veteranos: Valdir, o interminável Furacão das Colônias

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O futebol amador de interior, aquele bem ‘raiz’, sempre tem torcida pendurada no alambrado ou assistindo do barranco. Tem preliminar com jogo do ‘segundinho’, às vezes mais pegado que dos Titulares. Tem improviso numa transmissão de rádio, onde os repórteres se ajeitam sobre um caminhão ou dentro de uma casinha de madeira que vira cabine. Esse cenário, tão peculiar e que gera tanta simpatia de quem acompanha, é bastante comum nos campos de Venâncio Aires e por isso, também, guarda situações inusitadas, momentos que vão gerar histórias contadas por anos.

Uma dessas histórias também nasceu num campo de ‘colônia’ e ainda segue contada pelo personagem principal. Um goleador que, de tantos títulos e que dificilmente parava na marcação adversária, começou a ser chamado de furacão. Essa é a história de Valdir Scheibler, que aos 55 anos continua ‘gastando’ a bola – um verdadeiro fenômeno no futebol de veteranos.

Foto: Nas comemorações de gol, o dedo indicador para o céu, homenageando a mãe, já falecida (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Os treinos de cabeceio à sombra de uma árvore

No início dos anos 1970, muitas localidades de Venâncio Aires ainda não ‘ostentavam’ a energia elétrica e ter rádio era luxo. TV, então? Coisa de outro planeta. Assim também o era para os lados do barro vermelho, mas de alguma forma se sabia que o Brasil de Pelé era tricampeão mundial. A década também seria uma das mais vitoriosas do Internacional, três vezes campeão brasileiro.

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

Foi em meio a essa euforia popular pelo esporte, que as crianças dos Scheibler, em Vila Santa Emília, cresceram. Os quatro guris e as quatro gurias de Edgar e Lorena viviam correndo atrás de uma bola. A exceção era o tempo de estudo na escola São Luiz e quando ajudavam nas lides da casa, porque no resto do dia e até tarde da noite, só o que se ouvia era o som dos chutes contra as tábuas do galpão. Primeiro com uma bola de pano, depois uma de plástico que ‘ardia’ o pé. De couro mesmo, veio como presente. “Com 10 anos, ganhei uma bola de couro do meu tio Ornélio. Era vermelha, porque ele era colorado como eu. Um dia a bola foi parar dentro da fornalha de fumo e estourou”, lembra Valdir, hoje com 55 anos.

Foi o mesmo tio, que morava em Campo Bom, que o levou para a região metropolitana com 16 anos, para trabalhar em fábrica de calçado. Sem esquecer o futebol, o destino dos fins de semana eram os campos. Embora fosse de Santa Emília, a família morava na divisa com Linha Cecília, comunidade da qual também sempre foram muito participantes. Por isso, a trajetória de Valdir começou lá, como volante. Só no Cecília, conquistaria o recorde de oito títulos da Taça da Amizade.

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

Aos 18 anos, prestou serviço militar em São Leopoldo e integrou o Pelotão de Operações Especiais de Campo, jogando na seleção do quartel. “Ali eu encorpei e adquiri muito preparo.” Tal condição também lhe ajudou a aprimorar sua melhor característica em campo: a boa impulsão para o cabeceio. “Eu pendurava a bola num pé de sombra do pai e ia deixando cada vez mais alta. Assim que treinava a impulsão e as cabeceadas”, relata o jogador, que mesmo com ‘apenas’ 1,70 metro, dificilmente perdia um lance de cabeceio entre os marcadores dentro da grande área. Entre os ídolos, curiosamente está um gremista: Jardel, centroavante multicampeão com o Grêmio na década de 1990, foi uma grande inspiração, já que também se destacou como goleador e ficou conhecido pela boa impulsão e cabeçadas certeiras.

Mais de 100 títulos

Na casa dos 20 anos, Valdir começou a trajetória no Esporte Clube São Luiz, de Vila Santa Emília, pelo qual participou de campeonatos municipais e regionais, jogando até hoje, tanto veterano, como pelo livre. Só no time ‘de casa’, foram cerca de 20 títulos, jogando com a 9, de centroavante. “Se for contar tudo, dá mais de 100 títulos por onde passei. Sobre os gols, o pessoal conta por aí que passei dos mil. Nunca calculei, mas que é um monte, isso é.” No campo, Valdir já jogou por quase 40 times de 15 cidades. Em Venâncio Aires, vestiu as camisas de Cecília, São Luiz, Flor de Maio, Tangerinas, 25 de Julho e Juventude de Vila Arlindo.

Nos recortes e pôsteres de jornais, as lembranças dos inúmeros títulos, por diversos times. Também coleciona dezenas de medalhas e troféus (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

A origem do apelido

Entre os jogadores de futebol, muitos já levam na camiseta o apelido. A maior parte remete ao gentílico ou ao diminutivo do nome. Há dezenas de ‘gaúchos’, ‘paulistas’ e ‘baianos’ e tantos outros terminados em ‘inho’. Mas tem aqueles que, além do nome oficial, ainda recebem alcunhas da torcida ou da própria imprensa, devido a alguma característica. Carlos Alberto Torres virou ‘Capita’, Ronaldo virou ‘Fenômeno’ e, nas gerações mais novas, Cristiano Ronaldo virou o ‘Robô’.

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

No caso de Valdir Scheibler, ele também ganhou um apelido especial, que tem tudo a ver com o interior. Quem lembra dessa história é Diogo Fedrizzi, então repórter de campo da Rádio Venâncio Aires AM, no início dos anos 2000. “Era comum eu e o Carlão [Carlos Roberto de Oliveira] nas transmissões ‘apelidar’ alguns jogadores conforme o estilo de jogo deles, sempre de uma forma positiva, buscando valorizar os atletas e os campeonatos, além de chamar a atenção do ouvinte.”

Segundo Fedrizzi, num jogo do São Luiz, ele percebeu que alguns torcedores no alambrado começaram a chamar Valdir de ‘furacão’. “Além de goleador, tinha muita força e velocidade. Literalmente, o Valdir levava tudo o que vinha pela frente. E na hora eu e o Carlão fizemos uma brincadeira no ar com a expressão ‘furacão’ e completei com o ‘das colônias’, porque era comum o pessoal de Venâncio se referir ao interior como colônia.”

O jornalista conta que Valdir aceitou ‘numa boa’ e os torcedores também aprovaram. “O apelido ganhou mais visibilidade depois, com o sucesso do Juventude de Vila Arlindo nas competições regionais, principalmente com os títulos do Regional da Aslivata e da Supercopa.” No campeonato de 2001, pelo Juventude, aos 33 anos, o jogador marcou 28 gols em 18 jogos. Muitos de cabeça, mas tantos outros com o pé direito, o ‘bom’, calçando chuteira número 40.

Dos troféus e quadros na galeria de campeões dentro do ginásio Luizão, em Santa Emília, Valdir ajudou a conquistar a maioria deles, nos últimos 30 anos. Entre eles, o Regional da Aslivata de Veteranos, em 2023 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

A promessa para a mãe

• Beijar o escudo da camiseta, correr de braços abertos para a torcida e dar um soco no ar são formas corriqueiras de se comemorar um gol. Valdir também já comemorou de muitas formas, como colocar a bola sob a camisa durante a gravidez da esposa. Mas nos últimos anos o gesto que se repete é outro: o indicador da mão direita apontando para o céu.

• A cada gol, a homenagem é para a mãe, Lorena, que faleceu em 2005. Fanática por futebol, ela sempre foi uma das maiores incentivadoras dos filhos. “Quando ela faleceu, prometi que quando ganhasse um Municipal pelo São Luiz levaria a medalha para ela.”

• Valdir conseguiu cumprir a promessa em 2009 e, como a conquista foi no campo da Soessa, em Sampaio, caminhou cerca de 10 quilômetros depois do jogo, até Santa Emília, para levar a medalha ao túmulo da mãe.

“O profissional não era para mim”

Só pelo São Luiz, Valdir contabiliza mais de 20 títulos. No Boa Vista, de Santa Cruz do Sul, venceu oito vezes, sendo quatro como artilheiro. A quantidade de gols e as taças até o levaram a tentar viver exclusivamente do futebol, mas “o profissional não era para mim”, afirma, ao lembrar dos tempos que treinou no Guarani de Venâncio. “Sinceramente compensava mais ficar no amador. Minha primeira moto [uma Honda XLX 250] comprei com o dinheiro que recebia nos fins de semana.”

Na carteira de trabalho, além dos tempos de roça, Valdir já trabalhou como calçadista, em indústria de tabaco, fábrica de móveis e frigorífico, descarregando muitas cargas de carne por dia, subindo e descendo escada de caminhão. Ao trabalho braçal, ele também credita a boa forma física e mantém os mesmos 70 quilos há mais de 30 anos. Atualmente, é pintor e sai muito cedo, só voltando à noite para casa, no bairro Bela Vista. Ainda assim, segue mantendo a rotina da bola de segunda a sexta, jogando futsal, vôlei e até bocha. Nos fins de semana, é campo. Além do futebol 11, joga há 16 anos no 7 (minicampo) pela AABB de Santa Cruz, sendo bicampeão brasileiro. Já jogou em estados como Bahia, Alagoas, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina. Todo verão, ele também é figura carimbada nas areias do litoral, em torneio de beach soccer.

Conselho para Bolívar

Valdir Scheibler também destaca que a vida de boleiro lhe oportunizou conhecer grandes nomes do futebol. “Tive o prazer de jogar a favor e contra Serginho Chulapa, Mano Menezes, Mário Sérgio, Ronaldinho Gaúcho, Dunga, Dinho, Washington, Pedro Henrique e Bolívar.”

Sobre Bolívar, aliás, bicampeão da Libertadores com o Inter em 2006 e 2010, o Furacão lembra de um episódio quando o jogador ainda tinha cerca de 17 anos e dividia o gramado com Valdir, no Boa Vista de Santa Cruz. “Ele jogava na frente. Mas um dia cheguei e disse: tu não sabe jogar na ponta, vai lá para trás.” Se foi ou não graças ao conselho de Furacão, fato é que Bolívar ganharia projeção justamente como defensor: foi campeão gaúcho do interior em 2002 jogando como lateral direito no Guarani e, depois, campeão da América pelo Inter como zagueiro.

Pensamento na bola até dentro do hospital

• Imparável pelos adversários dentro de campo, também o era fora dele. Nem no hospital eram capazes de segurá-lo. Uma vez precisou internar por sete dias, devido a uma infecção generalizada. Naquele fim de semana, tinha um jogo decisivo, mas o médico não lhe deu alta. Bateu pé e convenceu a esposa Márcia a assinar uma liberação.

• “Quando me levantei, fiquei tonto e caí na cama de novo. Foram mais quatro dias internado. Se tivesse jogado, não sei o que aconteceria.” Se nem uma infecção grave parecia capaz de pará-lo, dedão ‘destroncado’ seria desculpa. “Já joguei com dedos quebrados e tenho problemas no ciático. Mas tomava injeção e ia. Minhas costelas têm nódulos, por causa do choque com os zagueiros. Uma vez levei uma bolada na cabeça e até fiquei desmemoriado por umas horas. Mas não consigo parar.”

Valdir sempre contou com o apoio e a torcida da esposa Márcia e dos filhos Vinícius e Vicente. Os meninos também já seguem os passos do pai e jogam futebol (Foto: Arquivo pessoal)

O sonho de jogar com o filho

Como dito no início, a família Scheibler sempre foi apaixonada por uma bola de futebol. O pai, Edgar (que faleceu há poucos meses), foi um ponta direita rápido e jogou por Cecília e São Luiz nas décadas de 1960 e 1970. As meninas também disputaram campeonatos femininos e, entre os rapazes, Vanderlei (Traíra), 47 anos, e Luciano, 51, também são bastante conhecidos em Venâncio. “O pessoal sempre fala dos ‘vermelhos’, somos nós”, comenta Furacão, em referência à cabeleira ruiva, característica dos Scheibler.

Quem também puxou os cabelos cor de fogo foram os filhos de Valdir: Vinícius, 14 anos, e Vicente, 10, ambos colorados e já bons de bola, como o pai. Os meninos também são filhos da professora Márcia Hackenhaar, 48 anos, companheira de Valdir há mais de 30 anos e outra grande incentivadora, sempre presente nos jogos do marido e filhos.

Vinícius, mesmo ainda muito novo, já joga pelo Aspirantes do São Luiz. Para realizar o sonho do pai, de disputar um campeonato com ele, o filho vai precisar fazer duas coisas, de acordo com Valdir. “Eu não jogo ‘segundinho’, então ele vai ter que subir de categoria. E como o Vini também é centroavante, quando jogar comigo, vai para a ponta”, determina, Furacão, entre risos.

Foto: Valdir com os filhos Vicente e Vinícius (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

E a aposentadoria?

Perguntado sobre até quando vai jogar futebol, Valdir despista, mas diz que, pela categoria livre, talvez os dois próximos anos sejam os últimos. “Daí vai ser ‘só’ pelo veterano. Mas parar, só se eu não caminhar mais.”

Quanto ao que representa o futebol, afinal, são quase 40 anos disputando torneios sem parar, Furacão diz que o esporte lhe trouxe ‘o melhor’. “Fico feliz e orgulhoso por todos os momentos de alegria que proporcionei às pessoas, dirigentes, torcedores, família e clubes. Agradeço sempre a grande quantidade de amigos que o futebol me trouxe, as pessoas que confiaram e ainda confiam em mim e nas minhas habilidades, e ao apoio da Márcia e dos meus filhos, familiares e amigos.”

“Futebol para mim é tudo. É alegria, amizade e família. Enquanto eu caminhar, vou jogar. Talvez o furacão não passa mais com tanta força, mas ainda faz um ventinho por aí.”

VALDIR SCHEIBLER – Pintor e jogador de futebol amador



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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