Futebol de veteranos: a cadência da ‘canhotinha’ de Jamir Bruch, o Sabiá

-

Há quem diga que cadência é sinônimo de lentidão. Pode até ser, mas no futebol o bacana é quando enxergamos nela o mesmo que ritmo e regularidade, especialmente no meio-campo, o ponto nevrálgico de criação das jogadas. Alguém que coloque a bola no chão e mantenha a cabeça erguida, distribuindo as jogadas. Dá gosto ver, né?

Pelos campos amadores de Venâncio Aires e região, um jogador com apelido de um passarinho querido dos brasileiros carrega essas características. Claro que é curioso, porque os sabiás de verdade cantam lindamente e são muito rápidos. São diferentes do personagem a seguir, um canhoto que não gosta muito de ‘cantar’ as jogadas, nem acelerar demais um movimento, mas, pela cadência e habilidade, não deixa de ‘voar’ em campo. Essa é a história de Jamir Luis Bruch, o Sabiá.

As traves e as frutas no campo do Botafogo

No fim dos anos 1970 e início dos 1980, nos campinhos entre as então vilas Coronel Brito, Caída do Céu e Cruzeiro, era comum ver um guri magrinho e comprido, que não arredava pé de onde tivesse um pouco de grama e uma bola. Não precisava nem de time inteiro, bastava um ou dois para sair um joguinho e lá estava Jamir Luis Bruch, o Seco, como a piazada amiga chamava na época.

Sabiá, com cerca de 10 anos, nos tempos de Colégio Aparecida. Na época, o apelido dele ainda era Seco (Foto: Arquivo pessoal)

A ‘iniciação’ no futebol aconteceu ainda no extinto Vasco, de Linha Coronel Brito, onde o pai, Hélio (já falecido), jogava na lateral e zaga, e alimentava a família plantando tabaco. Jamir é o terceiro dos quatro filhos de Hélio e Geni (hoje com 81 anos) e virou colorado, ao contrário do pai gremista. A torcida do menino se explicava, afinal, nos anos 70, quem mandava no futebol nacional era o Inter, tricampeão brasileiro.

Em tempos que TV era luxo para qualquer venâncio-airense, o pequeno Jamir aprendeu muito sobre o mundo da bola ouvindo as transmissões esportivas no rádio, vibrando a cada gol narrado pelas vozes de Haroldo de Souza, na Gaúcha, e Armindo Ranzolin, na Guaíba; e lamentou profundamente a forma como o Brasil foi eliminado na Copa de 1982, ainda mais num time que tinha Zico, o 10 batedor de faltas, que virou seu maior ídolo no futebol, além de Éder, inesquecível ponta-esquerda.

Foi assim, tentando reproduzir a habilidade na bola parada desses dois atletas da Seleção, que a gurizada começou a ‘brincar’ no então campo do Botafogo (atual Cruzeiro), às margens da RSC-453. Mas, em vez de tentar balançar as redes, a missão era acertar a trave, dando precisão ao chute. E foi em meio a essa brincadeira, que Seco virou Sabiá. “Tinha uns pés de frutas no fundo campo e eu ia comer muita bergamota e laranja. Daí diziam que eu parecia um passarinho, um sabiá, porque ficava lá comendo fruta”, relata Jamir, hoje com 53 anos.

“Onde está esse guri?”

Sabiá conta que não era lá muito dado aos estudos e o que queria era jogar bola. Nos fins da tarde, não prestava atenção ao movimento do sol e, enquanto houvesse um fiapo de luz, não arredava pé. Muitas vezes, já noite, Geni chegava em casa e não encontrava o filho. “Onde tá esse guri?” Ali decidiu que o jeito era achar uma ocupação para o adolescente. Por isso, com 14 anos, Sabiá começou a trabalhar como calçadista, na antiga Strassburger. Depois, passou pela Umbro, onde conheceu Jorge Sbruzzi, que organizava times para participar de campeonatos do Sesi. Ou seja, mesmo com trabalho de carteira assinada, a bola seguia perseguindo Sabiá (e vice-versa).

Um 10 que se machucou com a 11 e adotou a 16

Nos times que jogou (ele nem lembra de todos porque são dezenas), Sabiá atuou como ‘o quarto homem’ no meio-campo, cadenciando, como um legítimo 10 faz. Chegou a usar o número na camisa, aliás, mas também vestiu a 11, que preferiu abandonar depois de se machucar. “Achava que dava azar, daí vi o número 16 e gostei. Não sei por que, mas gostei e uso a 16 até hoje.”

Mesmo com altura de zagueiro e centroavante (1,86 metro), Sabiá deixa a modéstia de lado para dizer que sempre foi bastante habilidoso com a perna esquerda, por isso virou meio-campista. “A perna direita serve só para subir no ônibus”, reconhece, entre risos.

Chegou a treinar no juvenil do Guarani, mas não conseguiu continuar porque precisava trabalhar e ajudar em casa. Ainda assim, as oportunidades que o futebol amador lhe proporcionou, também são inesquecíveis. Vestiu inúmeras camisas. Entre elas, só para citar algumas, Flor de Maio, Olaria, Floriano, Négo, Onze Unidos, Fluminense de Linha Sapé, Assespe e Juventude de Vila Arlindo (Venâncio Aires); Fluminense de Mato Leitão; Aliança, Boa Vista, Pinheiral, Saraiva, Ponte e Irmãos Coragem (Santa Cruz do Sul); 25 de Julho de Cruzeiro do Sul; Malhadense de Passo do Sobrado; Vila Mellos de Vale Verde; Sinimbu; Clube e Ferraz (Vera Cruz), União de Lajeado, Flor de Maio de Araçá e Juventude de Monte Alverne. Também jogou nos times das empresas Umbro, Rubra e Móveis Hickmann.

Entre as equipes, a que mais jogou foi pelo Juventude de Vila Arlindo, sendo levado para lá por Irineu Henn. Também está na história da Assoeva, na retomada do futsal em Venâncio Aires, no início dos anos 2000, e já jogou muito Bolamar, nas areias do Litoral Norte.

Jogador veterano guarda fotografias e recortes de jornal, que registraram os títulos (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Sete fichas ao mesmo tempo

Com tamanho gosto por futebol, Sabiá chegou a estar inscrito, há cerca de 20 anos, em sete times ao mesmo tempo. “Eu cheguei a ter sete fichas diferentes. O problema é quando tinha jogo no mesmo dia.” Essa situação aconteceu, por exemplo, num Municipal, quando o Juventude de Vila Arlindo se sagrou campeão. “Eu joguei o primeiro jogo da final. No segundo, tinha compromisso pelo Aliança, de Santa Cruz. Mas voltei para comemorar o título”, lembra. Atualmente, o compromisso do já veterano Sabiá é, ‘apenas’, com a Associação Independente de Veteranos (Assive), com o time da AABB de Santa Cruz e por alguns times de futebol 7 em Venâncio, Vale Verde e Passo do Sobrado.

Sabiá, no detalhe, quando jogava no Olaria, de Linha Arroio Grande (Foto: Arquivo pessoal)

O problema de saúde que também cadenciou a vida

Mesmo jogando futebol com frequência e, em tese, com a saúde em dia, em 24 de abril de 2021 Sabiá passou por um grande susto. Num jogo em Linha Travessa, começou a sentir uma ‘dorzinha’ no peito que não passava. “Cansei, saí do jogo, deitei na grama e não passava. Daí o Edson Picoli, o Capela, que chamo de ‘Anjinho da Guarda’, insistiu que me levaria na UPA. Foi a sorte, fui direto para o hospital. Eu infartei e poderia ter sido tarde. Uma veia obstruiu no coração, tive que fazer um cateterismo e fiquei dois dias na UTI”, relata.

Depois de receber alta, Sabiá, que não se esquecia da bola, achou que talvez precisasse deixá-la de lado. “Eu tive muito medo no início, mas o exercício era importante. Comecei devagar e o jeito foi cadenciar o jogo e a vida também. Voltei a jogar, mas além da bola, também tenho um compromisso de visitar o médico mais seguido. A gente aprende a dar valor e viver um dia após o outro.”

Sabiá com a companheira Delci e a filha Caroline (Foto: Arquivo pessoal)

Família

Sabiá brinca que nem a própria mãe o chama pelo nome de batismo. Na rua, se perguntarem por Jamir, ninguém saberá quem é. Mas o Sabiá todos conhecem. Assim é o Sabiá, companheiro de Nelci Schwendler, 58 anos, e pai da Caroline, de 28 anos.

O nascimento da filha única, aliás, também tem relação com o futebol. Ela nasceu em 1º de janeiro de 1996 e, no dia anterior, antes da virada do ano, Sabiá tinha um jogo decisivo em Santa Cruz. Mas deu tudo certo. Ele pôde cumprir seu compromisso com o futebol e chegar a tempo de acompanhar o nascimento do seu ‘maior troféu’.

Sabiá também ressalta a família que o futebol lhe trouxe, fazendo inúmeros amigos. Inclusive, destaca as oportunidades de trabalho que teve ao longo da vida, por causa da bola. “Trabalhei no calçado e com móveis, por intermédio de pessoas que conheci no futebol.” Assim também aconteceu com o emprego atual dele, no qual está há 23 anos, como vendedor de uma empresa de purificadores de água.

Em casa, guarda centenas de medalhas conquistadas ao longo dos anos. Atualmente, ele joga pela Assive (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Treze gols num único jogo e a promessa cumprida

Sabiá não sabe quantos gols fez nesses mais de 30 anos de futebol, mas diz que a maior parte foi de falta, aproveitando uma de suas principais características. Embora meia, encarregado de ‘pifar’ o atacante, viveu momentos de artilharia. Uma dessas histórias foi bastante inusitada, porque bastou um jogo. Numa final de Taça dos Campões, que ele não lembra o ano, o Olaria venceu o Vila Mellos por 19 a 1 e Sabiá marcou incríveis 13 gols. “Precisei de um jogo para ser artilheiro”, comenta, em tom de brincadeira.

O jogador também lembra de ter cumprido uma promessa que nem fez, quando jogava pelo São João de Estância Nova, contra o Palmeiras de Arroio Grande. Após o término de uma partida transmitida pelo rádio, o locutor Carlos Roberto de Oliveira, o Carlão, ‘soltou’ que Sabiá havia prometido um gol de falta. “O próximo jogo foi no campo do Gressler e a gente empatava em 1 a 1. No fim, tivemos uma falta e bati direto. Fiz o gol e aí cumpri a promessa que nem tinha feito. O Carlão me botou no compromisso, então sorte que fiz”, relata, entre risos.

Jogador usa o número 16 na camisa há muitos anos. “A 11 me dava azar.” (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

A canhotinha que lembra Éder

Se o próprio Sabiá reconhece que a perna direita mal serve para subir no ônibus, por outro lado a canhota tem uma fama grande entre os boleiros. Há quem até já o comparou a Éder Aleixo, ponta-esquerda que se destacou no Grêmio e no Atlético Mineiro, titular do Brasil na Copa de 1982.

Pela força e precisão, Éder ficou conhecido como ‘O Canhão’. Sabiá, apesar de sempre ter sido mais franzino, também aprimorou um chute forte. Por isso, volta e meia, os conhecidos comentam com ele. “E essa ‘canhotinha’, aí? Parece o Éder…” Sabiá, também experiente, garante que, mesmo para a força, importante também é ter jeito.

“O futebol é muito importante na minha vida. As oportunidades que tive, nos times e no trabalho, foram pelo futebol. Sem falar nas amizades, que são para a vida toda.”

JAMIR LUIS BRUCH, O SABIÁ – Vendedor e jogador de futebol veterano



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

Clique Aqui para ver o autor

    

Destaques

Últimas

Exclusivo Assinantes

Template being used: /var/www/html/wp-content/plugins/td-cloud-library/wp_templates/tdb_view_single.php
error: Conteúdo protegido