Futebol de veteranos: Delmar, o cabeça de área que nunca foi expulso

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Nos últimos anos, se popularizou o termo fair play (jogo limpo), conceito que está ligado à ética, no qual se deve jogar sem prejudicar o adversário de forma proposital. A Fifa, entidade máxima do futebol, tem promovido campanhas e criou até uma premiação para reconhecer comportamentos exemplares. Se trata de um movimento importante no esporte, mas não é necessariamente uma novidade quando o assunto é jogo leal. Na história em preto e branco do Brasil, quando por aqui ainda era football, se conta que um zagueiro, de tão íntegro que era, certa vez chegou a avisar o árbitro sobre um pênalti que havia cometido e que não foi marcado. O nome dele era Belfort Duarte (1883-1918), que por ser muito disciplinado, virou nome de prêmio no anos 1940. A honraria previa a entrega de uma medalha para o jogador que passasse 10 anos sem ser expulso. Telê Santana e Didi foram alguns dos que conquistaram o prêmio que, se ainda existisse, já poderia ter sido entregue a um venâncio-airense. E pelo menos umas cinco vezes, considerando que o atleta em questão tem mais de 50 anos de futebol. Essa é a história de Delmar João Lopes, 67 anos, que mesmo jogando como volante, na cabeça de área, não é faltoso e nunca recebeu cartão vermelho.

A gurizada que buscava as bolas no Edmundo Feix

Delmar João Lopes tinha cerca de 10 anos e ainda morava na Linha Hansel, no interior de Venâncio Aires, quando ganhou a primeira bola. Foi um presente do tio Janito de Borba, que estava no quartel e seguia de ônibus pela então ‘faixa’ para Santa Cruz, hoje a Estrada Velha. “Malico, espera na parada que vou te entregar um presente”, tinha sido o recado. Malico era o apelido de infância de Delmar entre os familiares e a parada em questão ficava na frente da casa dos avós maternos dele. Assim, quando o Albatroz reduziu a velocidade, Janito jogou um pacote pela janela. Dentro, uma bola de borracha marrom, “daquelas que ardiam o pé”, mas que fez os olhos do guri brilharem.

Delmar à direita, com o irmão Vanderli, na 1ª comunhão. Delmar tinha 11 anos e esta é a primeira fotografia dele (Foto: Arquivo pessoal)

Com 11 anos, Delmar se muda para a cidade, na então região do Campo da Aviação, onde o pai João abriu um armazém, o Bar do Dico, como chamavam. Numa área da cidade que levava ‘campo’ no nome, o que mais tinha eram descampados, com espaço de sobra para a gurizada correr e bater bola. Como todo menino que viveu 1970 e a Seleção mágica de Pelé (que ele viu ser tricampeã mundial numa TV em preto e branco no Bar Chaves), Delmar também vibrava com as transmissões esportivas da rádio Guaíba e sonhava que um dia alguém também transmitiria um jogo seu.

Além de bater bola nos campinhos da vila, a gurizada vivia no entorno do estádio Edmundo Feix. Nesses momentos, eram duas missões: prestar atenção aos movimentos dos jogadores (Delmar admirava a habilidade de Romeuzinho na ponta) e buscar a bola atrás das goleiras. “A gente adorava e, depois de cada jogo, tentava repetir as jogadas no nosso campinho. A gente treinava sério. Tinha dias que só jogava com a perna esquerda, até pegar jeito. Jogador bom joga com as duas pernas”, destaca Delmar, hoje com 67 anos e que trabalha como operário, no funcionalismo público.

Num desses jogos na vila, ele foi convidado pelo ‘Tião do Guarani’ para treinar com outros meninos. “Era tipo uma escolinha do Guarani, mas cada um levava uma camisa branca para o treino. Não era como hoje. Logo depois, comecei no time da Fumossul, onde fiquei até os 18 anos. Foi na fumageira meu primeiro emprego também.”

Com 18 anos, em 1975, quando integrava o time da Fumossul (Foto: Arquivo pessoal)

O falso lento

Em 1976, serviu o Exército em Santa Cruz e jogou no time da companhia. Se destacou e entrou para a seleção do quartel. Novamente foi um destaque e isso lhe garantiu um convite: integrar os juniores do Avenida, embora nutrisse o desejo de disputar campeonatos pelo Guarani. “Mas não houve oportunidade”, lamenta. Ali, já se destacava como cabeça de área, como é conhecido o primeiro volante, logo à frente dos zagueiros. “Eu sempre fiz poucas faltas e sabia sair jogando. Era um falso lento”, comenta, se referindo à característica dos atletas que parecem não ter pressa no jogo. Mas o ‘falso lento’, aqui, também se encaixa em outra situação. Nos tempos de quartel, Delmar surpreendeu todo mundo no atletismo, quando ficou em segundo lugar numa prova de 400 metros rasos. “Quando queria, eu sabia correr”, lembra, entre risos.

Em 1981, quando jogava pelo Flor de Maio de Linha Araçá. Delmar está agachado, com o filho Rondineli (Foto: Arquivo pessoal)

O gol de Rondinelli e o ‘prêmio’ a ponto de faca

Delmar casou em 1979 com Rosane, hoje com 62 anos. Em 1980, quando esperavam o primeiro filho, o casal gostava de frequentar o Cine Imperial, o antigo cinema da rua Júlio de Castilhos. Antes de cada sessão, era comum a reprodução de lances de jogos de futebol, no Canal 100.

Numa dessas, foi reproduzido um gol do Flamengo, marcado de cabeça pelo zagueiro Rondinelli. Ambos gostaram e o primogênito foi batizado com o mesmo nome do jogador de futebol. Delmar e Rosane também são pais de Samuel, 37 anos. O nome não é nenhuma homenagem a jogador, mas ele estava no ventre da mãe quando a família viveu uma história inusitada.

Em 1985, quando jogava pelo Flor de Maio de Linha Araçá, Delmar levou um prêmio não muito convencional. Depois de perder de 4 a 0 na partida de ida da final contra o São José de Monte Alverne, o Flor de Maio entrava em campo no jogo de volta, quando um torcedor puxou Delmar pelo braço e prometeu. “Se a gente ganhar, te dou um porco a ponto de faca [pronto para carnear].”

Quis o destino que Delmar fizesse um gol de falta, na vitória simples de 1 a 0 e que forçou a terceira partida. A família foi buscar o prêmio na Variant azul 1976 que era do pai de Delmar. “O Rondineli era pequeno e aí pegou um leitãozinho nos braços. O homem disse que podia ficar, então ainda levamos um brinde”, relata Delmar, entre risos.

Delmar com a família, no casamento do filho Samuel (Foto: Arquivo pessoal)

A ‘panela’ do Aviação e a panela de ferro

Em 1992, Delmar, já com 35 anos, integrava o time de veteranos do bairro Aviação e um dia ouviu um comentário não muito amistoso sobre o grupo: “Isso é uma panela.” Depois da ‘corneta’ ele entendeu que estava na hora de mudar o nome do time. “Lembrei daquele comentário e pensei, vai ser ‘Panela’ o nome. Mas daí ficou meio vazio e alguém sugeriu Panela 22. Como já tinha o Clube 22 de Veteranos, sugeri o 24, que soou bem. Então ficou Panela 24”, lembra Delmar, um dos fundadores de um dos times de veteranos mais tradicionais de Venâncio Aires.

Foi o próprio jogador, aliás, que concebeu o escudo do time. Dentro de uma panelinha de ferro, colocou uma bola e, sobre ela, confeccionou uma cartola de papelão, para simbolizar a faixa etária já mais experiente dos atletas. A partir desta montagem, fez-se o desenho. O detalhe é que a panelinha de ferro usada de modelo para o escudo, segue na casa de Delmar, enfeitando a mesa do quiosque. O utensílio de cozinha pertenceu à Hilda, a avó materna de Rosane (esposa de Delmar) e tem aproximadamente 100 anos.

Escudo da camisa do Panela 24 foi inspirado nessa panelinha de ferro quase centenária (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)
Foto: Débora Kist/Folha do Mate

Historinhas

No mundo do futebol, são comuns as resenhas que viram ‘patrimônio’. No Panela, tem algumas, como a vez que o time foi a campo apenas com 10. “Teve um dia que o Mário Hochscheidt era o técnico [quem está lesionado vira técnico] e nós só tínhamos 11. Mas ele tirou um e mandou ficar no banco, dizendo que precisava de um reserva caso alguém se machucasse”, entrega Delmar.

O outro ‘causo’ é de quando o Panela foi a campo com 12 jogadores. “Nós levamos um gol e reclamamos. Daí um cara do outro time falou: ‘mas vocês têm 12 e ainda estão reclamando’?” Conforme Delmar, entre os integrantes da turma, a expectativa é para que Milton da Silva, o Foguinho, finalmente termine ‘a história da onça’. “Já tentou contar várias vezes, mas o pessoal sempre interrompe, brinca, e ele nunca consegue terminar”, revela, em tom de brincadeira.

Em casa, Delmar tem um cantinho especial onde estão expostas fotos de muitos times pelos quais jogou (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Quase 30 times e zero expulsões

Em 2009, Delmar ajudou a fundar o Masters do Guarani, com direito a carteirinha na Federação Gaúcha de Futebol e disputou estaduais. Para ele, se na juventude a oportunidade de vestir a camisa rubro-negra não aconteceu, o tempo se encarregou de recontar a história como veterano.

Ao todo, Delmar jogou por quase 30 times, de diferentes localidades de Venâncio, Santa Cruz e Mato Leitão. Só de masters ou veteranos, além do Guarani, jogou pelo Forquetense, Velhos Amigos, Velha Guarda e Assive. Atualmente, é o capitão do sênior (acima 55 anos) do Panela 24 e também joga futsal pelo Giba Zé e tem o Veteranos da Segunda.

Em toda a carreira, Delmar se orgulha de ter primado pelo jogo leal e fez poucas faltas, mesmo jogando como volante. Ele conta que jamais levou cartão vermelho, portanto nunca foi expulso. Também nunca foi suspenso, já que não ficou de fora de nenhuma partida por três cartões amarelos.

Jogando como volante, fez poucos gols na carreira, mas na maioria dos times, era o cobrador oficial de pênaltis. Ele contabiliza cerca de 50 penalidades convertidas e apenas duas perdidas.

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

O gosto pela meia esquerda e os ensinamentos de Falcão

No Panela 24, Delmar joga com a 10 e na meia esquerda. “Eu adoro jogar na meia, mas sou melhor como cabeça de área.” O número da camisa, aliás, foi por troca, após um sorteio. “O Maurão, que é zagueiro, pegou a 10. Mas daí disse que não era pra ele e trocou comigo, ficando com a 21.”

Embora hoje tenha liberdade de jogar na meia, foi, de fato, com a camisa 5, na volância, que ele se destacou. Delmar, que virou colorado na infância só para contradizer o irmão gremista Vanderli, tem em dois jogadores históricos do Inter suas maiores referências: Caçapava e Falcão.

Entre os mais próximos, Delmar é o ‘Paiero’, apelido da juventude. “A gente fumava escondido uns cigarrinhos de palha. Mas cigarro mesmo nunca fumei e comecei a tomar uma cervejinha depois dos 32 anos. O Falcão sempre disse que cigarro e bebida não combinavam com atletas.”

Além disso, foi vendo o jogador colorado e da Seleção ‘desfilar’ categoria em campo, que Delmar também procurou ser um volante de bom passe, para iniciar a jogada. “Acho que além da marcação leal, sempre trabalhei a precisão e me cuidei muito. Por isso sigo jogando, com 67 anos, e vou continuar. O futebol é especial demais.”

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

“O futebol me trouxe muitas amizades e me ensinou muito. Aprendi a ganhar e a perder e isso a gente deve levar para a vida.”

DELMAR JOÃO LOPES – Funcionário público e jogador veterano



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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