No mês de março, quando Folha do Mate e Terra FM propuseram a série ‘Masters, futebol de veteranos’, uma das justificativas era celebrar o esporte mais amado pelos brasileiros e destacar o quão longevo ele se tornou para os atletas nos últimos anos. Além de exemplos mundiais, de craques que levantaram títulos já beirando os 40 anos ou passando deles, em Venâncio Aires são inúmeros casos parecidos. Claro que as proporções devem ser guardadas, mas pelos campos daqui, são muitas histórias de veteranos, já cinquentões e sessentões, que continuam sendo referência.
Homens simples, com trabalhos corriqueiros, com esposas, filhos e até netos, levando suas vidas nos bairros da cidade, mas que ainda respiram o futebol. Valdir Scheibler (Furacão das Colônias), Gerson Weber (Gersinho), Carlos Silberschlag, Jamir Bruch (Sabiá) e Delmar Lopes já entraram em campo, ou melhor, nas páginas da Folha nas últimas semanas. E hoje, para fechar a primeira temporada da série, um dos personagens mais conhecidos em Venâncio quando o assunto é bola. Aquele que leva experiência num apelido que é quase nome próprio. Essa é a história de Paulo Rogério dos Santos, 63 anos, o Vovô, um veterano com preparo físico e fôlego de garoto.
A banguela do menino Paulo
Paulo Rogério dos Santos nasceu em 1960 e é o penúltimo dos oito filhos que tiveram Augusto e Ana Osvaldina. A família chegou a morar na área central de Venâncio Aires, mas depois se estabeleceu na região que hoje fica entre os bairros Xangrilá e Cidade Nova. E foi nesta área, onde ainda haviam grandes descampados e muitos campinhos de futebol, que Paulo cresceu. Paulo, nome esse que ele ‘atendeu’ por pouco tempo, já que desde os 9 anos é conhecido por um apelido que viraria praticamente denominação própria. “Tinha um vizinho, um senhor de uns 80 anos, cabelo branquinho e na boca só os ‘pontas’ [dentes caninos]. Naquela época, eu também estava banguela, daí a gurizada começou a pegar no meu pé, que eu tava igual ao ‘vovô’.” O menino Paulo não gostou muito, mas, como dizem que apelido só ‘pega’ mesmo quando a pessoa fica incomodada, não teve jeito: ele virou o Vovô.
Na adolescência, começou a acompanhar dois dos irmãos mais velhos, João e Almerindo (já falecidos), destaques no antigo time do Herval Mirim, da Cidade Nova. Num campo onde as redes das goleiras eram feitas de barbante de amarrar tabaco, Vovô acompanhava as jogadas dos irmãos e ele também começou a bater bola, usando chuteiras emprestadas, inclusive com numeração menor, mas fazia os pés caberem. Além do Herval Mirim, no início dos anos 1980, integrou o antigo time do Corinthians, no bairro Bela Vista, campeão municipal invicto em 1982. Ali, Vovô já adotaria a camisa 8, como meia pelo lado direito, posição pela qual mais viria a atuar na carreira.
Um chute na Quina
• Em 1980, Vovô e Liege, hoje com 60 anos, decidiram juntar as escovas de dentes. Liege, que sempre acompanhou e apoiou o companheiro no futebol, lembra, em tom de brincadeira, que o apelido dele até gerou confusão no início do namoro. “Namorei um ano até descobrir que o nome dele era Paulo. E meu vô Juvenal me perguntava: o que tu quer com um velho?”, conta, entre risos.
• Nessa época, Vovô começou a trabalhar na construção de redes elétricas, numa empresa terceirizada da CEEE – só na companhia seriam quase 30 anos, entre 1985 e 2014. Em 1986, ele lembra de um chute certeiro que deu, mas que não foi no futebol. “Fizemos um bolão e acertei na Quina.” Com o dinheiro, conseguiu comprar a casa própria e quatro terrenos. E para quem andava, até então com uma bicicleta Caloi, teve condições de comprar uma moto DT 180 e um Passat 1980.
• Vovô conta que foi um momento importante para a família, pensando no lado financeiro, já que tinham dois filhos pequenos. Além de Juliano, 43 anos, e Luciana, 41, ele e Liege ainda são pais de Simone, 36, Paulo (o Júnior), 24, e Victor, 21 anos.
Pelo amador e pelo profissional, um nome na história do Guarani
Em 1986, pelo Cruzeiro, que ainda mandava seus jogos no campo onde hoje é a atual área da UPA, Vovô se sagrou campeão regional amador. As boas atuações lhe renderam um convite para jogar naquele que era o maior rival do Cruzeiro na época: o Guarani, no clássico Gua-Cruz.
Vovô decidiu ir e foi pelo time do Edmundo Feix que viveria diversos momentos importantes para ele e para a história do Rubro-negro. Para começar, em 1988, quando marcou um gol de pênalti na vitória sobre o Pinheiros, de Taquari, na final do regional de amadores. “Fiz poucos gols na carreira e esse considero o mais importante. Porque esse título nos possibilitou disputar o estadual amador e o fim dessa história todo mundo conhece”, destaca Vovô, se referindo ao título gaúcho daquele ano, com gol de pênalti do então zagueiro Mano Menezes.
No Guarani, Vovô jogaria de 1987 a 1993, portanto esteve no time de 1990 que conquistou o acesso para a série A do Gauchão. Durante todo esse tempo de profissional, conseguiu conciliar com o trabalho na CEEE. “Infelizmente não conseguia treinar muito, então eu compensava como dava. Viajava muito pela empresa e de noite, depois do horário do serviço, eu corria todo dia entre 4 e 5 quilômetros, para manter o preparo.” Na equipe venâncio-airense, além de camisa 8, também vestiu os números 2, 6 e 5, portanto, jogou ainda nas duas laterais e como primeiro volante.
Vestiário
No vestiário do Edmundo Feix, Vovô conta que viveu vários momentos de emoção, com as conquistas da equipe entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990. E revela momentos engraçados, como durante os intervalos dos jogos, em que o zagueiro Chimbica pedia um pastel e um refri. Ou da vez que Vovô levou um ‘tostão’ e machucou a coxa. “O Camboja [massagista], usou uma garrafa de vidro para massagear minha perna. Parecia que tava abrindo massa”, conta entre risos.
“Como o senhor aguenta?”
Por muitos momentos durante a entrevista para esta reportagem, Vovô, antes de cada resposta, não conseguiu evitar que as lágrimas rolassem, emocionado. À mente, lembranças, saudades e bons momentos que o futebol proporcionou ao longo de quase 50 anos.
Sobre não ter seguido ou apostado integralmente na carreira de profissional, Vovô entende que, se talvez tivesse começado mais cedo, teria outras oportunidades. “Mas não me arrependo de nada”, afirma. Questionado sobre até quando vai jogar, o veterano também é categórico. “Vou enquanto Deus me dá força nas pernas, porque fôlego tenho de sobra.” O preparo físico, aliás, é a principal característica dele. “Quando um cara mais novo joga comigo, geralmente pergunta: como o senhor aguenta? Só sei que aguento até prorrogação e quem sente câimbras e falta o ar são os guris”, comenta, rindo. Em todo o tempo que joga bola, Vovô torceu um joelho em 1992 e, aos 55 anos, ‘arrebentou’ um tendão. “Voltei a jogar em oito meses, como se nada tivesse acontecido.”
Um vovô de cinco netos
Na sala de casa, entre as fotos dos filhos e netos, também estão os registros dos times pelos quais jogou e incontáveis medalhas e troféus. Multicampeão como é, Vovô tem títulos além do futebol, como um troféu de casal campeão de bandinha, do salão Freda, mérito dividido com Liege, parceira da vida e de arquibancada, sempre acompanhando e torcendo pelo marido.
Se as perguntas em torno do futebol provocaram lágrimas em Vovô, o assunto ‘família’ também mexe com o veterano. Orgulhoso da história que construiu com Liege e dos cinco filhos, ele também ‘joga açúcar’, aquele carinho especial de todo vô com os netos, quando fala de Ana, Valentina, Martina, Breno e Thaylor. Este, aliás, não foi para o futebol, mas é promessa em outro esporte e foi convocado para a seleção brasileira sub-18 de basquete, na disputa da Copa América. “Como no meu trabalho eu viajava, passava muito tempo longe dos filhos. Então hoje procuro aproveitar ao máximo estar com eles e com meus netos”, conta ele que, como vovô na família, também parece garoto: fios brancos são poucos e só na barba. Já o óculos é só para leitura.
Na casa de um colorado, o assobio mais ouvido é o hino do Grêmio
Como a maior parte dos meninos gaúchos que cresceram na década de 1970 (período glorioso do Internacional), Vovô virou colorado. Daquele tempo, cita Paulo César Carpegiani como uma de suas maiores referências. Em 1976, ao lado de Falcão e Caçapava, Carpegiani formou no Inter um trio de meio-campo que entrou para a história do futebol brasileiro. Além do jogador colorado, Vovô também cita Pelé e abre um sorriso falando da seleção brasileira de 1970, que ele viu ser campeã do mundo numa TV em preto e branco no antigo Bar do Luizão (hoje prédio da farmácia Panvel, na rua Osvaldo Aranha). “Era um timaço”, resume.
Embora torcedor do Inter, dentro de casa ‘a coisa’ é bem dividida. Para começar por Liege, que é gremista. Recentemente, a esposa de Vovô também ganhou mais uma ‘aliada’. “Eu estava voltando do trabalho, quando esse bichinho pulou nos meus pés. Então eu trouxe para casa”, relata Liege, se referindo à calopsita que ela chama carinhosamente de Menina. E é essa fêmea de passarinho a responsável pelo assobio que qualquer gremista, ao ouvir, sairia cantando “Até a pé nos iremos…” Liege ensinou a calopsita a assobiar o refrão do hino do Grêmio.
Outras equipes
• Vovô jogou por cerca de 20 equipes e, profissionalmente, além do Guarani, defendeu o Avenida, de Santa Cruz do Sul, em 1991, e o Pinheiros, de Taquari, entre 1994 e 1995.
• Entre os times amadores de Venâncio, jogou pelo Herval Mirim, Corinthians, Négo, Cruzeiro, Juventude de Vila Arlindo, Olaria, São Luiz, Tangerinas, time da Fumossul, Fluminense de Sapé.
• Também defendeu equipes de Lajeado, Canoas, Vera Cruz e Santa Cruz, como Boa Vista e São José de Monte Alverne.
• Atualmente, Vovô joga futebol 7 pelo Masters do River Plate, de Linha Marechal Floriano, futsal nas terças e quintas-feiras, e pelo Masters do Guarani.
“Depois da família, o futebol é tudo para mim. Uma paixão e um orgulho. Além da importância para a saúde, me trouxe amigos, oportunidades e participei de momentos históricos. Emoções que jamais vou esquecer.”
PAULO ROGÉRIO DOS SANTOS, O VOVÔ – Operador de guindaste e jogador veterano