Era início da madrugada do domingo, 22 de março de 2015, quando Venâncio Aires entrou no mapa da violência por ter sido palco do primeiro feminicídio do Brasil. Uma mulher de 34 anos foi morta a tiros, em frente ao Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), onde foi buscar atendimento médico, após ter sido agredida pelo ex-companheiro. O autor do crime foi preso no dia seguinte e segue na cadeia, mas, agora, pelo descumprimento das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, solicitado por outra vítima dele. Desde então, outras sete mulheres foram vítimas de feminicídio no município.
A Lei do Feminicídio entrou em vigor no dia 9 de março de 2015. Nessa época, a primeira vítima de um crime contra mulher, pelo fato de ela ser mulher, já sofria com as ameaças e agressões praticadas pelo ex-companheiro. A exemplo da maioria dos agressores, Júlio César Kunz não aceitava o fim do relacionamento. No dia 21 de março, ele perseguiu sua ex-companheira pelas ruas de Venâncio e, quando o carro onde ela estava saiu da rua Osvaldo Aranha e ingressava no acesso Dona Leopoldina, foi ‘fechado’ pelo veículo conduzido por Kunz.
A mulher foi agredida e, com a ajuda do então namorado dela, se desvencilhou do ex e posteriormente foi até a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) comunicar o caso. Porém, ela não havia se medicado e, como o plantonista estava sozinho no órgão policial (o que acontece até hoje, pois os plantonistas trabalham sozinhos), orientou a vítima a ir até o HSSM e depois retornar.
Mas ela não teve tempo. Enquanto aguardava atendimento, foi surpreendida por Kunz, que invadiu o local, armado com um revólver, e arrastou a ex-companheira para a rua. O vigilante do HSSM tentou intervir e foi ferido com um tiro. Miriam Roselane Gabe foi executada com quatro tiros, na calçada, morrendo no local. O vigilante sobreviveu.
Júlio César Kunz, hoje com 44 anos, foi levado a júri em junho de 2017 e condenado a 28 anos pela morte da ex-companheira e por tentativa de homicídio ao vigilante, mas posteriormente teve a pena reduzida para 19 anos e seis meses. Ele cumpriu parte da sua pena e, usando tornozeleira, voltou à rua, para trabalhar; no entanto, rescindiu. Em novembro de 2023, ele descumpriu as medidas protetivas solicitadas por uma mulher com quem se relacionava na época, foi preso e voltou à cadeia. Ele está recolhido no Presídio Estadual de Encantado.
Pena severa
Responsável pelas denúncias oferecidas pelo Ministério Público, o promotor Pedro Rui da Fontoura Porto lembrou que, a partir do dia 9 de outubro do ano passado, o feminicídio tem uma pena de 20 a 40 anos de reclusão, podendo ser aumentada de um terço à metade. O artigo 121-A menciona que “considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Ainda segundo o promotor, a lei diz que a pena do feminicídio é aumentada de um terço até a metade se o crime é praticado durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança. Também servem para aumentar a pena certas circunstâncias qualificadoras do homicídio em geral, como emprego de veneno, fogo, asfixia, afogamento, incêndio, tortura ou qualquer meio cruel, crime cometido à traição, mediante dissimulação ou com emprego de arma de uso restrito ou proibido.
“Este incremento punitivo aportado ao Código Penal desde outubro de 2024 fez com que o feminicídio seja o crime punido com maior severidade no sistema penal brasileiro, mais do que o latrocínio (pena de 20 a 30 anos), a extorsão mediante sequestro com morte (24 a 30 anos) ou o estupro com resultado morte (12 a 30 anos)”, explica. Pedro Porto ressalta que, em caso de feminicídio, o regime inicial é o fechado e o condenado será progredido após o cumprimento de 50% da pena, se primário, ou 70%, caso condenado por crime hediondo. “Isso faz com que mesmo apenado no mínimo de 20 anos, um réu primário, teria de ficar 10 anos em regime fechado.”
Outra novidade recente que deverá repercutir muito em matéria de feminicídio, revela o representante do Ministério Público, é a nova orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de que condenados em regime fechado, no júri, sejam presos de imediato. “Assim, se alguém responder por feminicídio em liberdade, mesmo tentado, poderá ser preso no dia do julgamento, caso condenado.” Nesse ponto, segue o promotor, “é importante salientar que uma tentativa de feminicídio já terá pena de 20 a 40 anos, reduzida de um terço a dois terços”.
Pedro Porto menciona que a redução máxima é para tentativas bem leves em termos de ferimentos (tentativa sem sangue, como tiros que não atingiram a vítima). Em geral, havendo lesões graves, a redução é de um terço. “Desse modo, a pena de 20 anos para a tentativa será de 13 anos e quatro meses, ou seja, uma tentativa de feminicídio já teria uma pena maior que a de um homicídio qualificado.”
Julgamentos
Pelo menos dois casos de feminicídio devem ser julgados ainda este ano. Conforme o promotor, o réu Arlei Giovane da Rosa Dornelles, acusado de duplo feminicídio (responde pela morte da ex-companheira e da ex-sogra), deverá ir a julgamento ainda este ano. Isso porque, em 27 de fevereiro, a decisão já foi confirmada pelo Tribunal de Justiça (TJ-RS). Dornelles está preso desde a morte da ex-companheira.
Outro caso que deverá ser julgado este ano é uma tentativa de feminicídio, onde figura como réu Enar José da Rosa, que está foragido. O promotor revela que o caso também está pronto para ser levado a plenário.
Os casos dos últimos 10 anos
Desde que a Lei do Feminicídio entrou em vigor, no dia 9 de março de 2015, Venâncio Aires registrou oito crimes do gênero, além de algumas tentativas de feminicídio. Inclusive, o primeiro caso do Brasil aconteceu no município.
- 2015 – Miriam Roselane Gabe, então com 34 anos, foi morta a tiros, no começo da madrugada do dia 22 de abril. Ela estava separada do ex-companheiro, que não aceitava o fim do relacionamento. Horas antes do crime, a vítima andava na carona de um automóvel, quando o veículo foi interceptado pelo carro conduzido por Júlio César Kunz. A mulher foi ‘arrancada’ do veículo e agredida. Posteriormente, ela foi registrar o caso na DPPA, sendo orientada a medicar-se no hospital e depois retornar. Quando estava na casa de saúde, Kunz invadiu o local, armado com um revólver, e a executou a tiros, sendo preso no dia seguinte.
- 2018 – Nos dois anos seguintes, não se registraram feminicídios. O segundo crime do gênero no município foi praticado dia 25 de novembro, em Linha Travessa. Iris Louveir Fortes de Campos, de 59 anos, foi morta a tiros pelo ex-companheiro, de 62 anos, dentro do quarto da casa dela. Depois, ele se suicidou.
- 2019 – Neste ano, foram dois casos. No dia 5 de maio, Júlia Graziela de Matos Corrêa, de 19 anos, foi morta a enxadadas, desferidas pelo ex-companheiro, de 32 anos. O crime foi praticado na frente de familiares da garota, em Linha Ponte Queimada. Na sequência, ele se suicidou.
Oito dias depois, em 13 de maio, Nélia Bertha Gollmann, de 56 anos, foi morta a tiros pelo marido, de 62 anos, dentro da casa onde residiam, no bairro Gressler. Ele também se suicidou. - 2020 – No começo da manhã do dia 7 de janeiro, Juliani Klamt, de 31 anos, foi morta a tiros pelo ex-namorado, na localidade de Linha Arroio Grande. O assassino, de 37 anos, não aceitou o fim do relacionamento e depois do crime se suicidou em Passo do Sobrado.
- 2022 – O próximo crime foi na noite de 25 de julho, em Linha Sapé, e vitimou Elisane Schneider Noll, de 55 anos. O autor do crime tinha 42 anos e era ex-companheiro da vítima. Ele foi preso em flagrante em poder do revólver usado para matar a mulher e segue recolhido na Penitenciária Estadual de Bento Gonçalves. De acordo com o promotor Pedro Rui da Fontoura Porto, ele também é apontado como autor da morte da ex-sogra, que foi encontrada sem vida, dentro da sua casa, no dia 10 de abril de 2020.
- 2024 – O próximo feminicídio foi praticado na noite de 6 de março, no bairro Gressler. Neusa de Moraes, de 59 anos, foi morta com golpes de faca, na cozinha da casa onde residia. O autor do crime tinha 55 anos e era ex-companheiro dela. Depois, ele se suicidou.