Programa Professor do Amanhã foi lançado pelo Governo do Estado neste ano com previsão de mil bolsas para estudantes gaúchos
“Eu – no sexto, sétimo ano – e a minha irmã, que estava nos anos iniciais, brincávamos de aula. A gente ficava sozinha e eu colava um cartaz na parede, pegava umas canetinhas. Eu era professora e ela, aluna. E olha que eu era uma professora brava.” Se tornar professora sempre foi um objetivo de Angelita Horbach, 23 anos, que afirma ter ajudado a irmã Ângela a aprender a ler.
Atualmente, aluna do segundo semestre de licenciatura em História na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), ela viu seu desejo de estudar em uma instituição de ensino de boa reputação se concretizar graças ao programa estadual Professor do Amanhã, que oferece bolsas para cursos de licenciaturas. Como recorda, foi folheando o Jornal Folha do Mate, posto sobre a mesa da cozinha no prédio da empresa onde trabalhava na época, que se deparou com a boa notícia no início deste ano.
Ela já tinha conhecimento do projeto, mas aguardava a sua confirmação. Angelita fazia graduação em uma universidade de cursos de Educação à Distância (EAD) e queria migrar para a modalidade presencial. Com a ratificação do programa, que ocorreu no início deste ano, a jovem tratou logo de se inscrever no edital. “A prova já era na próxima semana. Era uma redação para poder ingressar. Eu fiz então, mas na incerteza. Estava com receio de trocar a minha zona de conforto para começar a ir três ou quatro vezes para Unisc todos os dias”, explica a moradora do bairro Aviação, em Venâncio Aires.
A universidade santa-cruzense foi uma das instituições comunitárias de educação superior (ICES) contempladas pelo chamamento público realizado pelo Estado e recebeu 100 bolsas – número máximo permitido. Na região, a Universidade do Vale do Taquari (Univates) também integra o programa, com 56 vagas para bolsistas.
Para Angelita, o auxílio mensal de R$ 800 por quatro anos (além de poder cursar de forma gratuita a faculdade) foi decisivo para a mudança de universidade. “Esse incentivo financeiro me ajuda muito com o deslocamento todos os dias. É transformador aprender com os melhores professores, hoje tenho uma visão de mundo completamente diferente de antes do ingresso na universidade. A vivência agrega em muito na nossa construção de professor. Vamos trabalhar com pessoas, precisamos ter posicionamento e contato. Antes, no EAD, era eu e o computador”, considera.
Professor do Amanhã como política pública
Diretora de Gestão da Inovação da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sict), do Governo do Estado, Paola Schaeffer, explica que o objetivo da iniciativa é reverter a escassez de professores para atender a rede pública de ensino – cenário que se desenha em todo o país: “Eu não vejo apenas como um programa, mas como uma política pública. A gente sabe que o estado do Rio Grande do Sul, no atual momento, sofre com a carência e a escassez de professores. Assim, o programa busca enfrentar esse grande desafio.” Em 2020, o Instituto Semesp divulgou um estudo que aponta que, em 2040, o Brasil corre o risco de enfrentar um ‘apagão’ de professores na educação básica por conta da falta de interesse na profissão.
Além disso, há também uma preocupação em relação à qualidade das formações. O exemplo de Angelita se repete com outros tantos jovens gaúchos. De acordo com dados recentes do Ministério da Educação, o Rio Grande do Sul é o segundo estado com o maior percentual de alunos matriculados em cursos a distância. Os maiores níveis de matrículas na modalidade são nos cursos de licenciatura e Pedagogia.
Bolsas na região
- Unisc
100 estudantes nos cursos de História (24), Letras – Português (33), Matemática (24), Biologia (4) e Geografia (15) - Univates
56 estudantes no curso de Letras – Português ou Inglês
Sobre o programa Professor do Amanhã
O programa Professor do Amanhã é voltado a pessoas que tenham cursado o Ensino Médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral.
Além disso, é voltado a professores efetivos da rede pública estadual, que tenham pelo menos três anos de exercício da profissão e não possuam de diploma de graduação. Todos devem ter realizado o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Como contrapartida, o bolsista deverá realizar prática de ensino de, no mínimo, 300 horas na rede pública estadual. Após a conclusão, deverá ter, como professor, o mínimo de 1.920 horas nas escolas do Estado.
“Surpreendente número de inscritos e excelentes resultados acadêmicos”
A primeira edição do programa Professor do Amanhã tem obtido resultados muito bons, conforme avalia a diretora de Gestão da Inovação da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Paola Schaeffe. “Das mil bolsas de estudo oferecidas no estado, nós tivemos um processo seletivo com mais de 4 mil candidatos. Esses números são muito surpreendentes, não são observados nem mesmo nas universidades públicas. Então a gente mostra que justamente o programa foi bem desenhado como política pública. Tivemos algumas universidades comunitárias que chegaram a ter 10 candidatos por vaga para determinados cursos. Além do surpreendente número de inscritos, temos observado excelentes resultados no desempenho acadêmico dos alunos”, exalta.
Ela também destaca a diversidade apresentada pelo Professor do Amanhã, tanto em termos de faixa etária quanto de raça e gênero, pois há requisitos relacionados a cotas. Na manhã desta terça-feira, o Estado anunciou a renovação do programa para 2025, com 500 bolsas.
Qualidade e quantidade
O programa estadual de formação docente estabelece um olhar quantitativo e qualitativo. Com base em bancos de dados das Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) e projeções de aposentadorias de atuais servidores, cinco áreas com maiores carências foram identificadas: Letras (Português e Inglês), Matemática, História, Geografia e Biologia. Nos estudos realizados para a definição do programa, os avaliadores constataram que o cenário se repete em todas as regiões do estado.
Do ponto de vista qualitativo, o Professor do Amanhã estabeleceu que, para as instituições de ensino poderem receber as bolsas, estas devem atender a uma série de requisitos, como os currículos dos cursos estarem de acordo com a Base Nacional Comum de Formação Inicial (BNC-FI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Também é necessário, segundo o Governo do Estado, que os cursos atendam às competências para o século XXI, determinadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), divididas em três grupos: cognitivo, intrapessoal e interpessoal, e às práticas de letramento racial e social. Os cursos devem prever, ainda, aproximações com ambientes de inovação.
ENTREVISTA: Coordenador do programa na Unisc destaca a importância da iniciativa
Uma das instituições gaúchas que obtiveram o número máximo de bolsas possível – 100 – foi a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Na instituição, o coordenador do programa, responsável por fazer o contato com os bolsistas e auxiliá-los, é o professor José Antônio do Nascimento. “Nós tivemos uma boa procura pelo programa e a maioria dos alunos continua realizando o curso com boas perspectivas de se formarem em um número muito perto dos 100 nos próximos três anos”, comenta.
Para Nascimento, que é mestre e doutor em História, a importância do programa está na oferta de formação para professores e também na qualidade dela. “As características do programa determinam algumas regras em que há uma preocupação bastante grande com a qualidade da formação. Na Unisc, nos inscrevemos para o programa e atendemos os pré-requisitos que eram apresentados. Estamos formando profissionais de qualidade que vão atuar nas salas de aula.” Na entrevista a seguir, ele aborda mais sobre a iniciativa.
Folha do Mate: Por meio do programa, o Estado reconhece, de certa forma, a dificuldade atual de encontrar professores especialmente para a rede pública estadual. No seu entender, a estratégia de oferecer bolsas, como forma de incentivar a procura por cursos de licenciatura, é positiva?
José Antônio do Nascimento: Sim, o Governo do Estado, reconhece a falta de professores. Os dados que são apresentados mostram que já estão faltando professores na rede estadual, em algumas áreas muito mais do que outras. Então, a ideia de criar o programa Professor do Amanhã é justamente nesse sentido de incentivar a formação. Por isso, é uma iniciativa extremamente positiva, que está dando a possibilidade de formação de novos professores.
Na sua opinião, por que há essa dificuldade?
A dificuldade para se encontrar professores para atuar na rede pública estadual está relacionada ao fator principal, que é a desvalorização da carreira docente. Não só em termos financeiros, mas uma desvalorização pelo trabalho em si do professor, que a própria sociedade expressa. O desrespeito no sentido de que várias pessoas, que não têm informação na área do Magistério, se acham no direito de intervir e dizer o que pode ser trabalhado em sala de aula. Junto disso, os salários que deveriam ser mais atrativos e não são nas redes estadual e municipal. Também, a própria dificuldade dos adultos e jovens de cursar uma licenciatura, dadas as dificuldades financeiras para conseguir pagar mensalidade ou mesmo de se manter nas universidades públicas, quando não tem o pagamento mensal.
Entre os jovens, são raros os que almejam se formar em licenciatura hoje em dia. Por outro lado, há uma sensação de que os cursos de Pedagogia não passam pela mesma dificuldade. É possível fazer uma análise sobre o cenário?
Eu acho que essa afirmação está equivocada. Como eu tenho acompanhado aqui a formação de professores na Unisc há quase 20 anos, sempre nós tivemos o interesse de jovens e adultos por cursarem licenciatura, em alguns momentos mais, outros momentos menos. Entretanto, o programa nos chamou a atenção para um fato bastante interessante. De fato, os cursos de Pedagogia têm sempre uma grande demanda. Entretanto, o programa nos mostrou uma questão bem interessante: nós tínhamos 100 bolsas e tivemos quase 700 candidatos. Então, a questão não é que os jovens e adultos não têm interesse em se formarem em licenciatura. O problema é que eles não têm condições de bancar a sua formação e o programa evidenciou muito bem isso. Se tiver financiamento público para formação de professores, nós teremos certamente muitos professores com boa qualificação. Se nos atermos aos dados do início dos anos 2000, quando nós tínhamos, no Brasil, um programa e uma ação governamental preocupada com a formação de professores, os cursos de licenciaturas das universidades tinham uma demanda muito grande. Na Unisc nós tínhamos mais ou menos o triplo de alunos nas licenciaturas do que nós temos hoje.
Na sua opinião, apenas o programa basta para que mais jovens se sintam mais atraídos para irem para as salas de aula? Se não, o que mais precisaria ser feito?
Só esse programa não é suficiente. Tanto na rede estadual, quanto na municipal, professores têm saído das redes, na sua grande maioria, por aposentadorias, mas também alguns porque acabam desistindo de serem professores. Por isso, todo ano está aumentando a demanda e o que está sendo formado de professores não consegue dar conta dessa necessidade. O que precisaria ser feito é ter mais financiamento público. Se fosse mais bolsas, melhor, mas ainda não tendo bolsas, que se tivesse um programa de financiamento público que fosse atrativo para os estudantes. A rede estadual já está sentindo a falta de professores. Quando se abrem contratos, nós temos, em algumas áreas, estudantes que ainda não estão formados nas licenciaturas sendo professores nas escolas. Então, sim, é preciso a manutenção desse programa, que veio em boa hora, mas só ele é insuficiente para atender a demanda.