Uma mulher que diz ter passado 35 anos sendo agredida, ameaçada de morte e submetida a todo tipo de humilhação, vai recomeçar a vida. Na noite de terça-feira, 20, pelas mãos da Brigada Militar de Venâncio Aires, a moradora de Linha Arroio do Tigre, no interior de Santa Cruz do Sul, foi libertada deste ‘cativeiro matrimonial’. “Agora vai viver uma vida digna, ao lado do filho, e passar por atendimento psicológico. É uma longa caminhada”, resumiu a capitão Michele da Silva Vargas.
Ainda emocionada e tentando compreender o drama desta mulher de 52 anos, a comandante da 3ª Companhia disse que fica difícil descrever o que essa mulher passou neste tempo em que foi obrigada a conviver com o marido, de 57 anos. “É um absurdo. Não tem nem como relatar o que vimos lá”.
Entre as situações narradas, a mulher citou que era obrigada a fazer todo o tipo de trabalho pesado, não podia sair de casa e nem as suas roupas podia comprar.
Denúncia
O caso chegou ao conhecimento da capitão Michele na tarde de terça-feira, através do filho da vítima, que foi até o quartel da 3ª Cia pedir socorro. Naquele momento ela verificava uma denúncia de maus-tratos a um idoso, no interior de Venâncio. E como foi comprovado que o homem de 68 anos não estava recebendo a medicação indicada, o fato foi levado ao conhecimento da Polícia Civil. Mas assim que o Boletim de Ocorrência foi registrado, a oficial, juntamente com duas guarnições, rumou para a Linha Arroio do Tigre.
A denúncia do filho mencionava que a mãe estava sofrendo e prestes a tentar, mais uma vez, cometer o suicídio. “Ele nos narrou que não morava com os pais, pois ao completar 18 anos foi expulso de casa, pelo pai, e teve que se virar sozinho. Por sorte, foi amparado por uma tia e tratou de trabalhar e cuidar da sua vida. Mas esporadicamente, visitava a mãe e presenciava as agressões e ameaças feitas pelo pai. Por isso – e devido ao passado de uma família conturbada -, aceitava a situação”, explicou a oficial.
Dias atrás, uma prima incentivou o rapaz a denunciar o que acontecia com a mãe dele, depois dela participar de uma roda de conversa ministrada pela Patrulha Maria da Penha. O tema falava da violência doméstica em todos os meios, inclusive na área rural, e citava a existência de uma rede de acolhimento às mulheres vítimas.
No fim de semana o rapaz foi visitar a mãe, que lhe pediu ajuda. Convencido a livrá-la daquela situação, na terça-feira à tarde ele foi até o quartel da 3ª Cia e deu o primeiro passo para libertá-la.
Depois de percorrer estradas do interior e sair do território de Venâncio – a propriedade já se situa no município de Santa Cruz do Sul -, as guarnições chegaram na casa da vítima. Na chegada, a capitão Michele se deparou com uma enorme pilha de lenha e depois soube que aquilo tudo tinha sido carregado pela mulher. “Devia ter um caminhão de lenha e ela disse que carregou e empilhou tudo sozinha”. O homem estava no local, mas até aquele momento não havia nenhuma ordem judicial contra ele. Por isso, as atenções se voltaram exclusivamente ao atendimento da vítima.
Com aparência de uma mulher forte, forjada pelos anos de trabalho forçado, ela apresentava muito abatimento e cansaço físico e mental. Visivelmente, tinha um inchaço na boca, resultado de uma agressão que diz ter sofrido do marido e que se transformou em uma ferida que terá que ser operada. Depois de juntar suas poucas peças de roupas, a vítima foi encaminhada à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), de Santa Cruz, que dará andamento ao inquérito policial.
A delegada Raquel Paim Schneider, titular da pasta, instaurou inquérito para apurar o caso. A vítima solicitou as medidas protetivas da Lei Maria da Penha e foi feita uma representação criminal contra o homem. Perante a autoridade, o rapaz disse ter medo que o pai o procure para lhe fazer algo de ruim.
Sobre o fato de não ter tirado a mãe daquele ambiente, o rapaz mencionou que não tinha condições e que temia as ameaças de morte feitas pelo pai.
Vida sempre foi conturbada
A vida desta mulher sempre foi conturbada. Ainda menor de idade, foi obrigada a casar porque seu pai mandou ela e os irmãos seguirem o seu caminho. Isso aconteceu depois que a sua mãe – que sofria violência doméstica – tomar veneno. “Dai ela casou com o primeiro que apareceu, meio que obrigada”, contou a capitão Michele.
E o martírio desta mulher começou já na primeira semana de casamento, quando começou a ser agredida e ameaçada de morte. Ela relatou que o marido ficava lhe dizendo que a mataria envenenada ou a facadas e a obrigava a fazer trabalhos forçados na roça, para a família e para vizinhos, em troca de compensação de acordos comerciais feitos pelo homem.
Ainda segundo ela, o marido não a deixava sair de casa e, por isso, ele mesmo cortava os cabelos dela. Isso sem contar que ela era obrigada a manter relações sexuais sempre que ele queria. “Por situações como esta, peço que as pessoas denunciem. Não podemos aceitar este tipo de situação”, finalizou a capitão Michele.
“É difícil acreditar que ainda, nos dias de hoje, possamos ter mulheres nessas condições de vida. Mas, infelizmente, sabemos que há muitas, mais ainda nas zonas rurais, onde são agredidas e isoladas. A sociedade precisa se envolver e denunciar, não aceitar essa vida a seu próximo. Nós, da Brigada Militar, estaremos sempre a postos para averiguar qualquer denúncia e levar a justiça para quem descumpre a lei.”
MICHELE DA SILVA VARGAS
Capitão, comandante da 3ª Cia