Dois anos podem significar muita coisa. É o tempo que alguém leva para fazer um curso, para uma viagem ao redor do mundo, a duração de um namoro ou para construir uma casa. Mas, no caso de Amaro da Silva, dois anos também podem significar uma dúvida que atravessa gerações: quando, de fato, ele faz aniversário?

De acordo com o RG do aposentado, a data de nascimento é 28 de fevereiro de 1920 e, portanto, ontem ele completou 99 anos. Mas, o quase centenário (ou já centenário?), em toda sua lucidez, afirma: “Tá errado. Fui registrado dois anos depois.”

Amaro não tem como provar, apenas confiar na memória do que lhe contaram quando criança. Para esta repórter, que também precisa acreditar no que lhe é relatado, é um exercício diário de confiar naquilo que ouve e, por isso, essa história está sendo contada.

Nas contas de Amaro, ele nasceu em 1918. Foi há 101 anos que o casal Izidro e Matilde da Silva tiveram mais um menino, nas bandas de Vila Mariante, ou entre o Taquari Mirim e o Mangueirão. Naquela época, as fronteiras podiam variar. “O que mandava na época era a prata e o vintém. Não se tinha dinheiro pra isso e ninguém se preocupava com essas coisas.”

A questão financeira referida pelo Amaro até faz sentido. Segundo a registradora substituta do Cartório de Registro Civil de Venâncio Aires, Carmem Druciaki, antigamente haveria a imposição de uma multa para registros com atraso. “Por isso, os pais forneciam uma data diversa para se eximir do pagamento dessa multa. Talvez seja essa uma das razões.”

Foto: Débora Kist / Folha do MateAmaro da Silva mostra o RG, onde está registrado que nasceu há 99 anos
Amaro da Silva mostra o RG, onde está registrado que nasceu há 99 anos

OUTROS ‘ATRASOS’

Se Amaro foi registrado com atraso, o mesmo aconteceu com duas filhas dele: Marina Edi da Silva teria sido registrada apenas dois anos depois de nascer. Isso, conta a irmã dela, Sebastiana da Silva, teria lhe prejudicado na hora de fechar as contas para a aposentadoria. Outra irmã, Maria Cecília da Silva, foi ainda mais tarde: três anos de atraso.

NOVA FESTA

Em 2018, a família aceitou a data defendida por Amaro, por isso uma festa no Négo para cerca de 200 pessoas comemorou os 100 anos do aposentado. No próximo domingo, 3 de março, um almoço será realizado na sede do bairro Brands. Novamente, para comemorar o centenário. “Vamos pra segunda festa dos 100 anos e seguimos assim, até ano que vem, até fechar com a conta do RG”, comenta, entre risos, o filho Atildes Irineu da Silva, 56 anos, o Lula.

Pelo jeito que vai, Amaro ainda tem muito tempo pela frente. O pai, Izidro, chegou aos 108, assim como uma tia, também centenária. Mesmo com a longevidade sendo algo de família, o aposentado é comedido e prefere não arriscar: “Quem sabe do quanto ainda vivo é Deus.”

Foto: Arquivo pessoal / Lembrança da época do casamento com a esposa Maria Erci, no início da década de 1940
Lembrança da época do casamento com a esposa Maria Erci, no início da década de 1940

FAMÍLIA

Amaro da Silva casou com Maria Erci Lopes (depois da Silva), no início da década de 1940. Casaram porque a primeira filha já estava a caminho, a Sebastiana, nascida há 76 anos, em 20 de janeiro, dia de São Sebastião. O casal teve nove filhos, sendo três já falecidos. Sobre quantos netos, bisnetos e tataranetos, ninguém soube precisar. “A família é grande”, resume o filho Lula.

Durante a vida, Amaro trabalhou na roça e como pedreiro. Mas paixão mesmo, foi a música. Ele e os irmãos tinham uma banda nos arredores de Mariante e seu instrumento era a gaita. “Eu não parava em casa, minha filha, vivia pra música”, lembra o aposentado.

Nos anos 1970, a família se mudou para a cidade. Foi no bairro Macedo, onde ainda segue a maior parte da família, que Amaro e a esposa foram morar. “Se for Silva, na Macedo, é parente”, destaca Lula. Desde que enviuvou, Amaro mora na própria casa, mas pertinho do filho Lula e da filha Sebastiana, no bairro Santa Tecla.

Se são 99, 100 ou 101 anos, fato é que Amaro da Silva tem a saúde melhor que muita gente. Não precisa de óculos (joga pife todos os dias), não tem restrições alimentares, nem nada. Adora mate doce e balas, mas a diabete está normal. Remédio? Só quando dá uma ‘dorzinha nas cadeiras’.

Curiosidade

Se consideramos que Amaro nasceu mesmo em 1918, ele veio ao mundo quando a 1ª Guerra Mundial ainda estava em curso. No aspecto local, Venâncio Aires não tinha nem 30 anos de emancipação e era comandada pelo tenente-coronel João Luiz Ferreira de Brito, o mesmo que dá nome ao bairro Coronel Brito.

Registros ‘atrasados’ são incomuns

A situação de Amaro não é exclusividade e tem muita gente que foi registrada tempos depois do nascimento. Mas essa peculiaridade parece ser coisa do passado e, hoje em dia, é pouco provável isso acontecer.

Conforme a registradora substituta do Cartório de Registro Civil de Venâncio, Carmem Druciaki, são incomuns registros além do tempo. “Sobretudo na região que vivemos, todas as facilidades são disponibilizadas. O registro de nascimento é gratuito, bem como a primeira certidão.”

Entre outras facilidades, está o fato de, duas vezes por semana – terças e quintas-feiras – uma funcionária do cartório ir ao Hospital São Sebastião Mártir para fazer o registro diretamente no local do nascimento. Assim, pais que desejarem poderão fazer o registro ainda no hospital. Mas, se preferirem, podem ir no cartório. “Vale ressaltar ainda que os pais podem registrar o filho no local do nascimento ou no local da sua residência.”

Carmem Druciaki destaca ainda que outros erros comuns antigamente, como nomes do nascido e dos pais, são difíceis de ocorrer. O registro é feito com base na DNV (declaração de nascido vivo) fornecida pelo hospital e com base nos documentos dos pais, de onde se retiram os nomes dos pais e avós da criança. “Se houver algum erro anterior nesses documentos, quanto à grafia de sobrenome, por exemplo, será transportado para o novo registro.”

4 – é a média de nascimentos, por dia, registrados em Venâncio Aires