
A trajetória de João Bez Batti, que fez do basalto matéria-prima para a arte e é reconhecido como um dos maiores escultores do Brasil.

O que o fascina? O que o atrai, empolga, motiva? O resultado do trabalho, um gol do time de futebol, o sorriso do filho? Talvez uma música, um cheiro, um livro? Há muitas coisas que nos despertam entusiasmo e nem sempre conseguimos explicar nosso fascínio por elas. Gostos, familiaridade e até conforto talvez ajudem a compreender o que nos atrai. Mas é somente um talvez, porque, no fundo, certos sentimentos apenas são como são e não têm uma explicação.
Se assim não fosse, como explicar alguém que, ainda muito pequeno, se encantou por pedras na beira de um rio? Que viu beleza onde a natureza é bruta e depois dedicou a vida a transformá-la em arte? Nesta reportagem, a Folha do Mate conta a história do venâncio-airense João Bez Batti, um dos maiores escultores do Brasil e que é conhecido pelo trabalho com basalto. Esse artista fascinado por pedras e que, onde a maioria vê apenas dureza e brutalidade, consegue enxergar delicadeza e poesia.
O destino na beira do rio
Está nos livros de História e também é de conhecimento geral que a Itália foi berço de grandes artistas. Quem nunca ouviu falar de Leonardo da Vinci e Michelangelo, por exemplo? Nomes atemporais na cultura e que seguem cativando quem conhece suas obras. Talvez não por acaso que o sangue italiano, mas daí com uma mistura bem germânica, trouxesse ao mundo outro grande artista e que virou referência nacional e internacional.
Ele nasceu em Venâncio Aires, em novembro de 1940, e recebeu o nome de João Bez Batti Filho. Ele é o quinto dos seis filhos (único ainda vivo) que João Bez Batti e Francisca Bourscheidt tiveram. O pai era italiano, da província de Belluno, região do Vêneto, e veio para o Brasil no início do século 20. A mãe era natural da então Estância Mariante (hoje Vila Estância Nova) e foi nessa localidade, numa casa em estilo enxaimel e que já não existe mais, que João nasceu. “Meu pai trabalhava com o Ildo Meneguetti [engenheiro e que seria governador entre as décadas de 1950 e 1960] e quando abriram a rodovia [287], foi que conheceu minha mãe”, conta o escultor João Bez Batti Filho, hoje com 84 anos.
Mudança
Quando somava apenas quatro dedos em idade, ele conta que o destino começou a levá-lo. O pai ficou enfurecido, certo dia, quando chegou em casa e viu que a família havia carneado a única vaca. Aquilo incomodou tanto o italiano, que ele decidiu vender tudo e seguir para outro lugar. “Tenho na lembrança que saímos uma noite, passamos por aquela reta no Mangueirão e cruzamos a ponte de zinco no Arroio Taquari Mirim, para chegar em General Câmara. A ponte era coberta na época e minha mãe ficou com medo, disse que era assombrada”, conta. Assim, se estabeleceram na chamada Volta dos Freitas, à margem do Rio Taquari. Foi nessa fronteira ‘molhada’ entre os municípios, que o pequeno começou a sentir algo que sente até hoje: o encantamento pela natureza.

Ser diferente
Bez Batti lembra-se de acompanhar a mãe até a beira do rio. Enquanto ela lavava as roupas, o menino observava os seixos (fragmentos de rochas ou cascalhos) e, toda vez que voltava para o mesmo lugar ou a cada cheia, as pedras mudavam ou se renovavam. Com apenas quatro anos, se fascinou por aquilo e costumava esconder no mato as pedras que considerava mais ‘valiosas’. “Eu sofri muito por ser diferente. Ninguém da minha família entendia por que eu gostava tanto da natureza. Mas aquilo era o paraíso, com tanta água, tantos peixes, tantos pássaros. E os seixos. Isso me encantava, me emocionava, mesmo eu sendo tão criança. Foi o destino que me levou para o rio.”
Certo dia, a mãe, que também tinha certas sensibilidades artísticas, desenhou um pato. “Eu me lembro de me apoiar nos joelhos dela e nunca esqueci esse desenho. Uma coisa tão simples, mas que me encantou. A forma, o traço. Um vizinho também desenhava os barcos que via no Taquari. O desenho me cativa até hoje, sou perseguido por ele.” Na Escola Isolada de Volta dos Freitas, a professora Ema Moreira Munser lhe apresentou a música. “Ela cantava coisas lindas para nós e, muito tempo depois, descobri que ela trazia influências de Villa-Lobos”, cita, referindo-se a um dos maiores compositores e maestros da música clássica brasileira e que segue no gosto do escultor.

Sozinho e longe das pedras
Quando tinha 12 anos, o pai decidiu mandar o filho para Porto Alegre, no internato Dom Bosco, dos padres salesianos. “Eu não conhecia luz elétrica. Conheci no vapor, que saiu do Mariante.” Naquele início de 1953, a logística entre a capital e a região ainda se dava pelas águas. A ponte sobre o Rio Taquari, em Mariante, só seria construída em 1958.
“Eu já me sentia sozinho em casa e no internato a solidão me acompanhou. Era tão caipira, que nem futebol conhecia. Um dia teve um jogo e quando a bola se aproximou, em vez de chutar, peguei com as mãos”, conta, entre risos. Se não bastasse a solidão, Bez Batti estava longe das pedras do rio. Assim, se aproximou ainda mais do desenho e conheceu outro material, que lhe possibilitou construir e criar formas: a madeira, a qual transformaria em arte por cerca de 20 anos.
Aos 15 anos, deixou o internato e começou a trabalhar. Nessa época, a família também se mudou para a Região Metropolitana. Trabalhou numa loja de tecidos e ali ouviu uma quase profecia. “Minha chefe tinha duas amigas psicólogas, que pediram para os funcionários desenharem. Fiz uma árvore com raízes e ouvi delas que eu seria um grande artista. Mas, assim como na minha família, entre os colegas também fui motivo de riso. Ninguém acreditava em mim.”

Pupilo de Vasco Prado
Em 1958, durante um curso no Instituto Técnico de Desenho, Bez Batti conheceu o jornalista Oswaldo Goidanich, do Correio do Povo, mesmo jornal no qual adorava ler os escritos de Mario Quintana. “Ele disse que eu tinha talento e me levou até o Vasco Prado. Foi Vasco quem disse que eu deveria me dedicar à arte.” Vasco Prado (1914-1998) foi um dos mais importantes escultores do Brasil e virou importante referência para o venâncio-airense, que foi seu pupilo por cerca de cinco anos, convivendo com artistas e movimentos culturais.


“Rolei igual as pedras e voltei para o rio”
Bez Batti seguiu a vida em Porto Alegre e passou a trabalhar nos Correios. Enquanto isso, as relações com Venâncio Aires seguiram, já que uma das irmãs morava na Capital do Chimarrão. Numa das vindas para a terra natal, em 1960, foi ao cinema, no antigo Cine Imperial, um dos pontos mais movimentados da cidade. E, na fila para assistir a um filme que não lembra mais o nome, conheceu a companheira de vida: a esposa Maria Schirley Ohlweiler. Hoje com 83 anos, Schirley, como é conhecida, trabalhou como professora e advogada. “Foi por causa dessa mulher que eu pude me dedicar à escultura. Ela que organizou toda a minha vida”, afirma.
Casaram em 1967, na Igreja Matriz São Sebastião Mártir, em Venâncio. Dois anos depois, houve a mudança para Bento Gonçalves, já que a família da esposa também tinha ido para a Serra gaúcha. “Rolei igual as pedras e voltei para o rio. Porque foi em Bento Gonçalves que me aproximei do Rio das Antas, que depois vira o Rio Taquari. As mesmas águas passam por Venâncio.”
Família
Ainda que tivesse ‘voltado’ para as pedras, os primeiros anos em Bento Gonçalves foram esculpindo em madeira. Já na década de 1970, se reencontrou com Vasco Prado que, ao ver as obras do pupilo, o convidou para expor suas esculturas em madeira, em Porto Alegre. A primeira exposição individual aconteceu em 1976 e foi a partir dali que decidiu deixar o trabalho nos Correios e, contando com o apoio de Schirley, passou a se dedicar exclusivamente à escultura e montou o próprio ateliê. Em meio às obras, cresceram os dois filhos do casal: Melissa, hoje com 50 anos, e que trabalha como analista criminal em São Paulo, e Diego, 48, que é desenhista e trabalha com o pai. Bez Batti e Schirley têm quatro netos: Maria, Nathan, Pedro e Gabriel.


20 anos para dominar o basalto
A partir da década de 1980, passou a pesquisar diferentes materiais, como mármore e bronze, mas foram os seixos basálticos que continuavam a fasciná-lo. “Estamos sobre o maior derramamento vulcânico de basalto do Brasil. Para mim é a pedra mais bonita que existe, mas levei 20 anos para dominar. Até a pedra se ‘entregar’, demora. Eu, às vezes, também preciso ceder a ela”, destaca.
Há mais de 50 anos radicado em Bento Gonçalves, são mais de duas décadas morando e trabalhando na rota turística Caminhos de Pedra, no distrito de São Pedro, interior de Bento. O nome do lugar, segundo ele, é apenas coincidência, embora entenda que os caminhos na vida foram de ‘pedras’, entre dificuldades, mas o também adorado basalto. “Pedras, no sentido que for, fazem parte da vida de todos nós. Para mim, são minha vida. Eu até dormia com as pedras nas mãos”, revela, entre risos, e recebe o olhar cúmplice da esposa.
Embora reitere que foi o destino que o levou para o rio e as pedras, Bez Batti diz que acredita na vocação desde criança. “Se assim não fosse, como explicar meu encantamento pela natureza? O canto de um pássaro e as pedras me causam tanta emoção quanto contemplar uma obra de Pablo Picasso”, garante, referindo-se ao pintor e escultor espanhol (1881-1973). Além dele, o venâncio-airense também é um grande fã do artista plástico suíço Alberto Giacometti (1901-1966).

Exposições e livros
Entre desenhos e esculturas, são mais de 60 anos participando de exposições. No Brasil, por exemplo, o trabalho de Bez Batti já percorreu Porto Alegre, São Paulo e Brasília. As obras do artista também já foram levadas para Argentina, França e Peru. São mais de 50 exposições e a próxima será realizada em 16 de outubro, em Caxias do Sul.
O trabalho do escultor também virou livros, como ‘Bez Batti, esculturas em basalto’; ‘Cor e forma na escultura de Bez Batti’, de Antonio Fernando de Franceschi; e ‘Bez Batti, dialogando com Picasso’, de Valdir Ben. O artista revela que o jornalista Eugênio Esber também está escrevendo sua biografia e que ela deve ser lançada nos próximos meses.

A escultura favorita é sempre a próxima
Bez Batti não sabe quantas pedras já esculpiu, nem quantas obras nasceram a partir delas. “É um trabalho demorado, porque a pedra precisa de tempo. A natureza leva tempo para esculpir elas e eu também”, observa. A obra mais demorada dele, chamada ‘Caminho das Águas’, levou nove anos para ficar pronta e está em São Paulo. Entre as que lhe dão mais orgulho, está uma escultura em basalto de dois metros de altura, no formato de um coração, exposta no Hospital São Francisco, do complexo Santa Casa, em Porto Alegre. ‘A Mulher Flor’ é a favorita da esposa Schirley, mas o artista garante que não tem uma predileta. “A favorita é sempre a próxima. Sou pequeno na arte, mas gostaria que meu trabalho permanecesse e fosse duradouro, como o basalto.”
O escultor vai completar 85 anos em novembro e revela que ainda tem muitos projetos, mas a mão já não acompanha mais o que a cabeça deseja. “Vai precisar de uma cirurgia. É síndrome do túnel do carpo, nem sabia que existia”, brinca, apontando para a mão direita, cansada das décadas lidando com a dureza da matéria-prima e os movimentos repetitivos. Ainda assim, ele segue trabalhando e sempre de pé “porque escultor não senta” e há peças em andamento no ateliê, em meio a ponteiros, talhadeiras, bujardas (parecido com batedor de bife) e lixas.

Envolto no basalto
Bez Batti responde em forma de poesia quando o assunto é o basalto. Conta, com entusiasmo, sobre o sentimento que lhe causa a proximidade de um rio e, portanto, dos seixos. “Quando desço a barranca do rio, não tenho mais 80 anos. Tenho 8, 9 anos e volto bem.” Ele conta que, durante muito tempo, buscou o material para trabalhar, mas hoje as pedras chegam até ele por meio de outras pessoas. Para o homem que ficou conhecido como o domador do basalto, tê-lo perto é necessário. Por isso, a pedra não está somente nas esculturas expostas na entrada de casa. Ela está no pátio, na sala e no muro da residência. “Assim como o basalto resiste ao tempo, eu gostaria de ser lembrado. Claro que minha trajetória é mais erro do que acerto, mas tenho certeza de que perto dos 100 anos estarei melhor”, projeta, sorridente.
O venâncio-airense, na longa carreira, já recebeu inúmeras alcunhas: o poeta das pedras, o profeta das pedras, o senhor basalto, o domador do basalto e até artista do paleolítico, esse definido pelo poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O escritor, aliás, entendia que a intenção de Bez Batti, ao trabalhar a pedra dura, era recuperar a alegria de um instante de identificação plena com a natureza. Questionado se concorda com a definição do poeta, o escultor diz que sim e completa: “Quando eu me for, gostaria que se lembrassem de mim apenas como um homem que amava as pedras.”

“Toda vez que inicio um trabalho no basalto, vem uma vontade de fugir. A pedra impõe resistência, mas eu insisto até dominá-la.”
JOÃO BEZ BATTI – Escultor
A homenagem que faltava
João Bez Batti Filho, que acredita na vocação e no destino, descobriu, há alguns anos, que essas duas coisas são inerentes ao próprio nome. Isso porque o sobrenome da família tem relação com a ocupação dos antepassados, os ‘batti’, aqueles que batiam e esculpiam pedras. De fato, concordo com o artista: a vida dele foi coisa do destino e, para mim, foi uma grande honra conhecer uma figura tão importante para a arte. Ainda que com tamanha grandiosidade, Batti é pura simplicidade e recebeu a mim e ao colega Renan Zarth de forma muito gentil.
Todas as respostas dele carregam um tom poético e é muito lindo ver alguém falar com tanta paixão sobre o que o fascina. Além disso, um artista que já narrou sua história inúmeras vezes, conversou com grandes jornalistas, esteve com artistas renomados e viajou o mundo não escondeu a emoção ao receber a Folha do Mate, o jornal do município onde nasceu e que mantém contato até hoje, com sobrinhos da esposa Schirley. A ligação também segue no hábito do chimarrão e só consome erva-mate venâncio-airense. Perguntei se ele ainda deseja, quem sabe um dia, expor na terra natal e respondeu apenas, de forma reticente: “Pensei muitas vezes”.
No fim da entrevista, quando lhe agradeci pela oportunidade de conhecê-lo e por confiar sua história à Folha, ele também me agradeceu, comovido. “Já recebi todas as homenagens que um artista poderia ter recebido. Mas ser conhecido na minha cidade é a homenagem que me faltava.” Por Débora Kist – jornalista