Em vez de apenas passar em frente ao Museu de Venâncio Aires, a cabeleireira Erondina Maria Baierle, de 71 anos, foi convidada a descobrir o espaço mantido pelo Núcleo de Cultura de Venâncio Aires (Nucva), desde 1994.
O local foi aberto de forma excepcional na manhã de quinta-feira, 24, para uma experiência proposta pela reportagem. O objetivo foi possibilitar ‘um encontro com a história’ para algum morador do município que nunca tivesse estado dentro do espaço, mas que circulasse com frequência em frente ao Edifício Storck, localizado na esquina das ruas Osvaldo Aranha com a Barão do Triunfo.
O relógio marcava 9h25min quando a experiência sensorial iniciou dentro do Museu. O primeiro ato, ao chegar no segundo andar do prédio, espaço onde está exposta parte das 80 mil peças que integram o acervo do Museu, foi deixar a marca no livro de visitas.
“Fazia tanto tempo que eu queria vir aqui e olhar o Museu”, revela Erondina, moradora do bairro Xangrilá, que visitou o Museu pela última vez quando ainda funcionava na sala da família Seibt. Ao percorrer pelos setes ambientes, as reações foram as mais diferentes. Em alguns objetos, encontrou traços de sua infância e, em outros, chegou a relembrar como eram usados. No ambiente de sala de aula, no qual estão dispostas as primeiras classes, banquetas, lousas e ‘lápis’ da época, relembrou da 5ª série em Passo do Sobrado, sua cidade natal. “Essas coisas aqui são tudo para mim”, pontua sobre a oportunidade de relembrar o passado.
Ao ingressar em uma sala com pouca iluminação, onde estão peças como um vestido de noiva preto e um leque, ela afirma: “Antigamente, quem tinha um leque era uma grande mulher.”
A experiência durou cerca de uma hora. Antes de sair, ela encontrou na exposição indígena uma ‘mão de pilão’ utilizado como moedor para diferentes ambientes. “Isso aqui usávamos lá em casa para amassar a erva-mate”, relembra, com um brilho no olhar. Antes de sair, abraçou e agradeceu a oportunidade: “Fico muito feliz em ter tido a honra de estar aqui hoje.”
O Museu de muitos donos
Ao todo, são 659 nomes que fizeram a história da aquisição de um prédio próprio para o Museu de Venâncio Aires acontecer. O terceiro presidente do Nucva na época de sua fundação, em 1994, Lineo Mayer Felten, conta que estava em um dia de trabalho quando Flávio Seibt, também idealizador do Museu, chegou e questionou: “Por que tu não crias um Museu?”. Esse foi, segundo Felten, mais um dos empurrões que faltavam para a criação do espaço depois de retrucar de volta: “Tu me ajudas na criação?”.
‘Atiçados’ pela vontade de disponibilizar um espaço cultural à comunidade, em 12 de outubro de 1994 os amigos Felten e Seibt saíram para arrecadar as primeiras peças do acervo. O primeiro repasse foi um aparelho de rádio, doado por Humberto Germano Henn. Logo em seguida, a família Wessling, de Linha Isabel, entrou em contato porque queria doar uma coleção conservada por Abino Wessling. Outra peça importante foi adquirida ao longo dessa andança pelo interior: o vestido de noiva preto, doado pela família Haupt. “Ele foi encontrado dentro de um baú, em um salão desativado no interior de Venâncio Aires”, relembra Felten. Na volta do interior, a ‘mimosa’ como é conhecida a caminhonete D20 1991 de propriedade de Seibt, estava cheia de peças arrecadadas. Sem um espaço para depósito, as primeiras doações foram levadas ao Salão de Eventos do Parque do Chimarrão, que estava sendo construído para a Festa Nacional do Chimarrão (Fenachim).
Sabendo da importância de expor aquelas peças à comunidade, Seibt cedeu uma sala em um prédio da família, localizado na Osvaldo Aranha, na quadra entre as ruas Barão do Triunfo e Jacob Becker. “Eu disse que nosso prazo para inaugurar o Museu seria de duas semanas”, relembra Seibt.
“Se nós cativamos o Museu, somos responsáveis por ele.”
LINEO MAYER FELTEN – Idealizador
INAUGURAÇÃO
Em 26 de outubro de 1994, exatas duas semanas após o recolhimento das primeiras peças, estava sendo criado, de forma independente, o Museu de Venâncio Aires. “Foi uma solenidade muito bonita, a rua foi fechada e teve apresentação da banda do Colégio Gaspar Silveira Martins”, conta o médico aposentado, Flávio Seibt. A primeira visitação foi feita por mais de 500 pessoas.
Não passaram duas semanas para a sala lotar. “Cedi mais um espaço”, conta. No entanto, o local começou a ficar pequeno para a quantidade de doações que começavam a chegar.
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PONTOS IMPORTANTES
- A movimentação para a compra de um prédio para a criação de um museu em nível de município já havia começado com Cloé Reis de Azambuja, mas não avançou. No entanto, Cloé é a fundadora do Nucva.
- O museu de Venâncio é um dos únicos no Rio Grande do Sul mantido por um Núcleo.
- São 80 mil peças. Deste total, 60% do acervo está catalogado, o que representa 23 mil itens.
- O Museu possui um realejo, instrumento musical que toca uma música pré-definida quando se gira uma manivela. O instrumento pertencia ao acervo de Wilmuth Bergmann.
- O prédio do museu tem três andares e subsolo. No térreo estão as lojas, no segundo lugar ficam as exposições e no terceiro estão as peças já catalogadas.
Edifício Storck: sai o prédio residencial, entra a história
É inevitável não notar o Edifício Storck, localizado na principal rua de Venâncio Aires. Quem passa e desconhece a história por trás, não imagina a luta e mobilização da comunidade para a conquista do local. Não é à toa que Seibt diz que o “museu é de muitos donos”.
Depois de tentar a aquisição de um prédio em parceria com o Rotary, ele aceitou a sugestão de Maria Helena Feix Schmidt sobre a aquisição do atual prédio. “Depois de várias reuniões com os herdeiros Storck, apresentaram o preço. Partimos com dois problemas: o primeiro era o preço de 500 mil dólares ao câmbio da época, hoje seriam mais de R$ 2 milhões. O segundo problema era que só tínhamos zero centavo em caixa”, enfatiza. No entanto, Seibt se desafiou ao lado de Felten, dando ‘a cara a tapa’ para a aquisição do prédio que tem 1.328 metros quadrados. “Acabamos dividindo ele em um indexador da época chamado de Custo Unitário Básico (Cub) do metro quadrado da construção civil”, salienta. A alternativa encontrada pelos idealizadores era uma forma de valorizar a área construída e uma forma mais fácil de conseguir ‘arcar’ com a despesa.
Um dos primeiros empresários a aderir à ideia foi Walter Bergamaschi, que já integrou a presidência do Nucva há alguns anos. “Apresentei a ideia pra ele e acabou aderindo de forma espontânea 24 metros”, recorda, orgulhoso. Inicialmente, a proposta comercializava um metro que poderia ser pago em até 24 meses. Durante essa comercialização, alguns nomes importantes contribuíram para a aquisição do prédio, sem contar as inúmeras campanhas feitas, a partir da comunidade. Na listagem de doadores, localizada em um banner logo à direita de quem entra no Museu, estão outros nomes como, a Universal Leaf Tabacos, o Governo do Estado através de emendas parlamentares e outras ‘mãos’ que adquiriram o prédio.
Seibt explica que a estratégia de venda utilizada na época foi uma das formas encontradas para não espantar aqueles que tinham o desejo de ajudar. “Se eu chegasse e falasse que o preço era de US$ 500 mil, espantaria as pessoas. É melhor eu dizer que, se cada pessoa assumir sua parte e ajudar devagarzinho, vamos conseguir comprar o prédio. Se a pessoa assumir um metro, os outros 1.328 eu vou arrumar”, relembra.
Conforme Bergamaschi, além da ajuda no início para a compra do prédio, a empresa Venax destina incentivos fiscais. “Estamos juntos há 25 anos”, enfatiza. Atualmente, ele atua no Conselho Fiscal do Nucva. “Sempre que podemos, precisamos ajudar, pois o Museu representa um livro aberto. Qualquer um, mesmo analfabeto consegue ‘ler’ com naturalidade.”
FIM DA DÍVIDA
Na medida que os metros eram adquiridos, os apartamentos localizados no Edifício Storck eram desocupados. Quando um terço do valor da construção foi quitado, as salas no térreo do prédio foram repassadas ao Nucva e o dinheiro do aluguel passou a contribuir para quitar o restante. Isso aconteceu também com os demais apartamentos. Em 27 de abril de 1998 o prédio estava quitado.
“Essa campanha vai ficar marcada o resto da vida. O povo se uniu para comprar um prédio histórico e preservar.”
FLÁVIO SEIBT – Idealizador do Museu
O prédio do Museu de Venâncio Aires foi tombado como patrimônio imaterial de Venâncio Aires em 2001. Já no Rio Grande do Sul, o reconhecimento como patrimônio aconteceu em 2012.
Um ‘drible’ nas dificuldades econômicas
Assim como a crise econômica afetou o Brasil, no Museu de Venâncio Aires não foi diferente. Há oito anos, o Nucva vem enfrentando dificuldades para manter o espaço aberto. Tudo funciona, até o momento, graças aos recursos viabilizados através da Lei Rounaet. Isso porque, atualmente, a única fonte de renda é o aluguel de duas salas no valor de R$ 6 mil. Uma delas é locada pela Prefeitura para o Centro de Atendimento ao Turismo (Cat) e outra é bar e café. As despesas com água, luz, internet, segurança e funcionários chegam a R$ 10 mil, por mês.
O primeiro projeto encaminhado para a Lei Rounaet, em 2012, foi para a catalogação das peças no valor de R$ 470 mil. Sendo prorrogado até 2015. Agora está aberto um projeto de R$ 680 mil, cadastrado em 2015 e que encerra no dia 31 de dezembro. Os recursos são utilizados para a revitalização do Museu. O novo projeto, que está sendo protocolado para 2020, é no valor de R$ 309 mil e deve ser utilizado para a hemeroteca de jornais e revistas, situada em um prédio anexo ao Museu.