Um imigrante japonês de trajetória venâncio-airense

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Há exatos 114 anos, em 18 de junho de 1908, o navio Kasato Maru desembarcou no Porto de Santos com 165 famílias japonesas que foram trabalhar nas lavouras de café de São Paulo. Esse fato entrou para a história brasileira e por isso, na data de hoje, se comemora o Dia da Imigração Japonesa no Brasil.

Até a década de 1950, esse movimento de imigrantes foi aumentando e sempre teve como primeiro destino o litoral paulista, para depois se espalharem por outras regiões. Até que em agosto de 1956, 23 jovens desembarcam diretamente no Porto de Rio Grande.

Nesse grupo de japoneses considerado pioneiro da imigração direta em solo gaúcho, estava um rapaz de 18 anos. Ele ainda não sabia, mas pelos próximos 60 anos passaria a maior parte da vida em Venâncio Aires. A matéria a seguir conta a trajetória de Toshihiko Kubo.

O grupo dos 23

Toshihiko Kubo nasceu em 21 de fevereiro de 1938, na cidade de Minami Satsuma-shi, província de Kaogoshima-ken, no sul do Japão. Das melhores lembranças de uma infância feliz ao lado dos cinco irmãos, estão as brincadeiras e muita pescaria.

O pai era funcionário de uma empresa que fabricava uma bebida tradicional da região, um destilado da batata-doce chamado ‘shochu’ (ou Satsuma Shiranami, que existe até hoje). Era um dos mestres que mantinham o segredo do processo de fabricação da bebida. Já a mãe era costureira e, conforme Toshihiko, pouca gente na localidade tinha máquina de costura, o que fazia com que o trabalho dela fosse muito requisitado.

No Ensino Médio, ele termina os estudos já na área para a qual dedicaria a maior parte da vida: no curso técnico para atuar no campo agropecuário. E foi logo depois que ele faria uma viagem que o levaria para mais de 18 mil quilômetros longe de casa.

Em 30 de junho de 1956, com 18 anos, Toshihiko embarca sozinho no navio Brasil Maru e teve como companhia outros jovens como ele, de diferentes lugares da província onde moravam, que decidiram migrar ao Brasil. A turma ficou conhecida como o ‘grupo dos 23’, o primeiro de imigrantes japoneses que veio diretamente do Japão para o Rio Grande do Sul. A rota do navio veio pela América Central (canal do Panamá) e foram quase dois meses de viagem, quando desembarcam no Porto de Rio Grande, na manhã de 20 de agosto.

Na histórica foto de 30 de junho de 1956, data do embarque no Japão para o Rio Grande do Sul, Toshihiko (detalhe) tinha 18 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Atsuko

Foi em solo gaúcho, em 1965, que Toshihiko conheceu sua companheira de vida: Atsuko Okajima (que nasceu em 20 de junho de 1944, em Hokkaido, no norte do Japão). Também imigrante, Atsuko veio para o Brasil em 1958, com 13 anos, junto dos pais, Hideo e Iseko, a avó paterna, Hama, e os irmãos Sussumu, Massamitsu e Mitsuo (morador de Venâncio Aires, hoje com 75 anos, frequentador assíduo dos jogos da Assoeva).

Atsuko vem de uma família de agricultores e que posteriormente foram empreender na parte urbana. Como a região norte se caracteriza por nevar muito (ao contrário do Sul, onde nasceu Toshihiko), também havia uma grande demanda na produção e de itens adaptados para esse clima, como por exemplo, as conservas de legumes, para que se tivesse esses alimentos no inverno, quando o solo estava coberto por gelo. O frio, inclusive, motivou outro empreendimento e a família Okajima chegou a apostar em uma pista de patinação no gelo.

Na metade da década de 1960, quando morava em Taquari, cidade próxima a Venâncio, Atsuko conheceu Toshihiko. Eles se casam em 1965 e vão morar em Cachoeirinha, onde ele estava estabelecido, depois de ter passado por Guaíba e Taquari, sempre trabalhando na horticultura.

Pós-guerra

Parte do movimento migratório de europeus e asiáticos na segunda metade do século XX está relacionado à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No caso dos japoneses, a saída do país de origem se justificava, em muitos casos, pela atmosfera negativa do pós-guerra, já que o Japão saiu perdedor nessa história e assinou um tratado de rendição.

Toshihiko era apenas uma criança quando a guerra estava em andamento e tem lembranças de bombardeios. Já Atsuko ainda era bebê (nasceu em 1944) e naturalmente não tem memórias próprias daquele momento. Mas o pai dela participou dos conflitos. Hideo era um pacifista, com posicionamento contrário à guerra e, nos últimos anos de vida, lembrava de situações pontuais e de um episódio em que perde todos os companheiros em uma batalha.

Na década de 1950, então, quando a Europa e o Japão ainda se recuperavam dos estragos gigantescos deixados pela Segunda Guerra Mundial, que Toshihiko, num momento de definições pessoais sobre os rumos da vida, decidiu migrar para o Brasil. Além do fator pós-guerra, também havia algo de desbravador e aventureiro em muitos jovens emigrantes.

Em relação aos Okajima, a família do tio de Atsuko já havia migrado para a Argentina e a intenção era se juntar a eles. Mas a entrada no país vizinho não foi permitida, já que uma das pessoas tinha um problema ocular, o que foi reprovado pelos argentinos. Assim, a opção foi redirecionar a rota para o Brasil.

Filhos e netos

Atsuko e Toshihiko têm três filhos, todos nascidos em Venâncio: Rumi Regina Kubo, 55 anos; Tsuyoshi Eduardo Kubo, de 53 (mora no Japão); e Iuki Julia Kubo, 51 anos. Também são avós de Kaori Kubo Fagundes, 16 anos, e dos gêmeos Daigo Kubo Fagundes e Harumi Kubo Fagundes, de 12 anos.

O casal Kubo em encontro com as filhas e os netos (Foto: Arquivo pessoal)

Saiba mais

• Segundo a Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social, há 3,8 milhões de ‘nikkeis’ no mundo e o Brasil é o país onde há maior número, com 1,9 milhão. A expressão ‘nikkei’ significa descendentes nascidos fora do Japão, japoneses que vivem no exterior ou ainda simpatizantes da cultura japonesa.

• No Brasil, a cidade de São Paulo, mais especificamente o bairro da Liberdade, é o local que concentra a maior parte dessa população. Já no Rio Grande do Sul, o município de Ivoti tem a maior colônia japonesa do Estado.

O casal voltou em definitivo para Venâncio em 2005 e mora em uma chácara (Foto: Arquivo pessoal)

A vida em Venâncio Aires

Foi no fim da década de 1960 que o casal Kubo mudou para Venâncio Aires. Inicialmente moraram em Vila Mariante, onde já residiam os pais de Atsuko e se dedicavam à agricultura. Plantavam verduras, mas também cultivavam lavouras de melancia, em uma área arrendada, em Linha Mangueirão.

De lá, foram acolhidos na propriedade do Orlando Fischer, empresário conhecido na cidade (trabalhou na indústria de tabaco, como nas antigas Flórida e Tabasa) e que tinha terras em Linha Ponte Queimada. Fischer foi um grande apoiador de Toshihiko, assim como Osmar Armindo Puthin (1919-1995). Ele, que foi uma espécie de capataz geral de Obras em um dos mandatos do ex-prefeito Alfredo Scherer, também é pai do ex-vereador Wilson da Silva Puthin (falecido em 2021), avô do atual vereador André Puthin e dá nome à Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) do bairro Cruzeiro e a uma rua no bairro Cidade Nova.

Toshihiko arrendou cerca de três hectares que pertenciam à família Puthin, cujas terras ficavam na atual região da rua Voluntários da Pátria, onde hoje há um posto de gasolina e um complexo de lojas. Naquela área, o japonês desenvolveu a horticultura e plantava uma grande variedade de legumes e verduras: alface, radite, chicória, agrião, couve, repolho, couve-flor, brócolis, tomate, pimentão, berinjela, vagem, rabanete, moranga, moranguinho, melancia, quiabo, espinafre, cebola, cebolinha, salsa e pepino. Também cultivava rosas, criava galinhas para ovos, porcos e cavalos, além da apicultura, para mel e geleia real. Com tanta variedade, Toshihiko, há 50 anos, já lidada com um sistema típico do que hoje se conhece como diversificação na agricultura familiar. A mão de obra era toda da família, mas, eventualmente, contratava algum diarista para ajudar na capina dos canteiros.

A maioria das verduras era vendida na propriedade mesmo, onde as pessoas iam comprar os itens diretamente tirados da terra. Mas o japonês também realizava entregas em algumas fruteiras. Nunca teve carro e levava as verduras em uma bicicleta (com uma caixa de maçãs amarrada atrás). Quando tinha um volume maior, usava uma carroça puxada a cavalo ou carreta puxada por uma tobata (microtrator).

Na chácara onde moram, ainda cultivam verduras, legumes e frutas (Foto: Arquivo pessoal)

Influência

Não só em Venâncio Aires, mas muitos dos imigrantes japoneses que vieram para o Brasil se dedicaram e ainda se dedicam à agricultura. Nome conceituado no país, o professor e geriatra Emílio Moriguchi, já afirmou em algumas publicações que a diversificação alimentar no Brasil em termos de hortícolas tem grande contribuição desses imigrantes, já que, em determinada época, a salada era praticamente a mistura de cebola e tomate.

E, mesmo no tomate, a diversificação das variedades (como próprio tomate gaúcho), foi impulsionada pelo plantio dos agricultores de origem japonesa. Na década de 1970, em Venâncio Aires, os Kubo lembram que itens como berinjela, couve-chinesa, chicória, confrei (planta medicinal) e nabo, eram desconhecidos da maioria das pessoas e Toshihiko oferecia gratuitamente para que levassem para casa e experimentassem.

Hábitos culturais

O choque cultural foi grande para Atsuko e Toshihiko na década de 1950. Tanto que até hoje eles têm certa dificuldade de falar o Português. Ambos escrevem e leem, mas para falas e textos mais elaborados, ‘sofrem’ um pouco.

Entre os hábitos da pátria de origem, eles mantêm alguns, como tomar banho em ofurô (banho de imersão) e tirar o calçado para entrar em casa. Os Kubo também têm o hábito de tomar chá verde ou o banchá (uma variedade do chá verde).

Na alimentação, o arroz branco (sem sal) é item básico nas refeições (sempre com muitas verduras) e temperos como o missô, shoyu e ajinomoto, além de alimentos como conservas. As refeições costumam ser feitas com o hashi (os tradicionais palitinhos) como talheres.

Quando mais jovem, o casal participava de festejos e encontros tradicionais promovidos pela colônia japonesa no Rio Grande do Sul e Toshihiko, inclusive, era lutador de sumô. Também se realiza, até hoje, uma gincana anual chamada Undoukai, que reúne as famílias para competições e brincadeiras tradicionais.

Da cultura local, o chimarrão, hábito mais comum entre os venâncio-airenses, não é compartilhado pelos Kubo, que preferem chá. Mas adoram o pastel e a galinhada das Festas de São Sebastião Mártir, e também gostam de carne de porco, linguiça e torresmo.

Entre a terra do sol nascente e a terra do chimarrão

Na década de 1980, os três filhos saem de casa, gradativamente, para estudar. No dia da formatura da primogênita, Rumi, em 1989, Atsuko e Toshihiko anunciam uma decisão: voltar para o Japão. A mudança dos Kubo seguiu um movimento comum de muitos imigrantes, num período chamado ‘dekassegui’ – o retorno de muitas pessoas de origem japonesa para trabalhar no Japão.

Na época, o Brasil vivia um período de crise, com grande instabilidade econômica e política e até mesmo os que se dedicavam à agricultura passaram por dificuldades. Por isso, o casal aproveitou a oportunidade para voltar à pátria de origem mais de 30 anos depois de deixá-la.

Lá, trabalharam nas mais diversas atividades em fábricas, prestando serviços básicos. A maioria dessas pessoas ia com a intenção de trabalhar, guardar dinheiro e retornar para o Brasil. No caso dos Kubo, que mesmo com tantos anos em Venâncio nunca tinham adquirido as próprias terras, após essa passagem pelo Japão conseguiram juntar dinheiro suficiente para comprar uma pequena chácara, onde moram até hoje.

Nos relatos de Atsuko, a ida ao país asiático também foi importante para rever parentes (como irmãos e sobrinhos do marido) e proporcionou conhecer outros lugares, com viagens de lazer, o que ainda não tinham feito nas décadas morando no Brasil.

Em 2005, com o nascimento da primeira neta, o casal deixa novamente a ‘terra do sol nascente’ e volta em definitivo para a ‘terra do chimarrão’, onde construíram sua trajetória e seguem morando. Toshihiko tem 84 anos e Atsuko completará 78 nesta segunda, dia 20.

Entrevista diferente

Essa matéria está totalmente em terceira pessoa. Não há ‘aspas preenchidas’ ou frases destacadas. Isso porque as personagens principais, Atsuko e Toshihiko, não foram entrevistadas por mim. Todas as informações aqui trazidas são a partir da entrevista que fiz com as filhas Iuki e Rumi, esta principalmente.

Explico: dias antes do contato para propor esta reportagem, infelizmente Toshihiko sofreu um acidente de trânsito. Devido aos ferimentos na coluna, ele foi internado em Cachoeira do Sul, onde está a referência para Venâncio Aires em neurologia. Em meio à apreensão pela saúde do pai e cuidados com a mãe, também idosa, ainda assim Iuki e Rumi me atenderam. Por isso é importante fazer um agradecimento especial às duas, que apesar do momento delicado, foram gentis e pacientes com esta repórter, que está na torcida para que ele se recupere logo.

Lembro aqui que, há poucos anos, o nome de Toshihiko, assim como de outras personalidades do município, estava naquela brincadeira do Facebook que começava assim: “Se diz cria de Venâncio, mas…” No caso dele, o complemento era: “mas nunca comprou verduras do japonês Toshihiko Kubo, na Voluntários Pátria.” Outros lembram dele como o japonês magrinho que circulava de Yamaha ‘cinquentinha’ pela cidade.

Fato é que ele marcou gerações e, para mim, que sabia pouco sobre essa história, foi uma oportunidade de conhecer um pedacinho de uma cultura tão diferente, mas que também foi acolhida nessa Venâncio Aires que recebe imigrantes de ontem e de hoje, dos que vão, mas que voltam. Iuki, filha caçula dos Kubo, me disse algo que talvez ajude a explicar essa característica local: “Muitas pessoas lembram, perguntam ou falam com meus pais com muito carinho. Isso é emocionante. Isso é Venâncio.”



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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