Uma rápida passada em bairros ou loteamentos novos de Venâncio Aires é suficientes para constatar alguns pontos em comum: locais bonitos, infraestruturados e com ruas calçadas e largas. Ao mesmo tempo, sobre os terrenos, a maioria das construções é de casas mais pequenas, às vezes com apenas 24 metros quadrados, ou geminados (duas residências ou mais encostadas uma na outra). Trata-se de um novo cenário habitacional popular na Capital do Chimarrão, que vem sendo desenhado por alguns fatores.
Para entendê-los, a Folha do Mate ouviu profissionais do ramo imobiliário, além de moradores e o poder público. Um dos pontos destacados diz respeito à capacidade financeira de quem busca a casa própria. “Hoje, 90% dos financiamentos para a casa própria são pelo Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal. Dependendo da renda, são liberados até R$ 169 mil, dos quais a Caixa libera 80% e a pessoa tem que custear o restante. Como a média dos terrenos está em cerca de R$ 90 mil, sobra muito pouco para construir. Então o que estamos vendo são casas muito pequenas, de quem quer ter um pátio, ou a opção do geminado”, explicou o corretor Telmo Kist.
Essa situação descrita pelo profissional foi vivida por Jairo de Vargas Oliveira, 41 anos. Há pouco mais de um ano, conseguiu comprar a casa própria, depois de 20 anos no aluguel. Ele conta que a renda lhe permitiu um financiamento que ainda ficava abaixo do valor que custava o geminado, no Loteamento Serafim, no bairro Bela Vista, onde mora. “Peguei meu FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço] e vendi meu carro para conseguir dar entrada e pagar toda papelada”, revela o frentista.
Oliveira diz que, apesar de ainda sonhar com uma casa maior e um pátio, está feliz na residência de 55 metros quadrados, onde mora com a esposa Teresa, 53 anos, e a filha Juliana, de 11. “A situação não está fácil, procurei vários lugares, mas os terrenos são caros e o financiamento não ia dar nem para o terreno. Felizmente surgiu aqui para mim e o valor da prestação já é menor que o aluguel que eu pagava, sendo que agora pago por algo que é meu.”
24 metros quadrados
A costureira Aline Alves, 27 anos, encaminhou há poucas semanas a documentação para o financiamento. Ela vem fazendo simulações há dois anos, mas conta que sempre precisou adiar porque os valores possíveis de acesso ainda ficavam ‘fora da realidade’.
Pagando aluguel há três anos num apartamento, Aline diz que sempre sonhou com uma casa e pátio para o filho ter mais espaço para brincar. A alternativa vai levá-los para a outra ponta da cidade, já que hoje mora no bairro Gressler e vai construir no Brands. “Eu não queria geminado, justamente para ter pátio. Minha casa vai ter apenas um quarto e 24 metros quadrados, mas vou continuar trabalhando para conseguir aumentar depois.”
A residência de Aline será construída em uma rua asfaltada e o terreno custou R$ 70 mil – 63% do valor total do financiamento que ela conseguiu acessar pelo Minha Casa, Minha Vida.
Renda
A frase ‘querer é poder’, em muitos casos, não têm valido. O empresário Luciano Delavi, que tem construtura, destaca que nos últimos anos a construção civil se movimenta não pelo desejo dos futuros moradores, mas do que se tornou viável no momento da compra. “Terrenos e materiais, tudo encareceu, e o que muitas pessoas conseguem pagar é o geminado, que virou alternativa.”
A questão da renda também foi comentada pelo corretor Gelson Hinterholz. “Dependendo do salário, vai conseguir um valor mais baixo de financiamento. Aí ainda tem a contrapartida, toda a documentação e taxas. Infelizmente, muita gente esbarra ou desiste porque não vai dar conta dessa diferença de valores.”
Conforme Hinterholz, a renda média para conseguir financiar pelo Minha Casa, Minha Vida varia bastante, porque depende da idade, tempo de carteira assinada e se tem filhos, por exemplo. “Dependendo, libera R$ 135 mil, 80% do máximo valor. Aí o cliente precisa ter subsídio, como FGTS e recursos próprios, de R$ 34 mil. Como é muito raro se ter R$ 34 mil de prontidão, muitos pegam financiamento menor ou até desistem, porque ainda tem R$ 7 mil a R$ 8 mil de taxas.”
Essa dificuldade de conseguir bancar a diferença, pode ser explicada pela capacidade econômica geral no município. Recentemente, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou dados do Mapa da Riqueza, levantamento que colocou Venâncio Aires na posição 223 no quesito renda média da população entre os 497 municípios gaúchos.
De acordo com a FGV, que para a pesquisa usou dados do Imposto de Renda de 2020, a renda média em Venâncio é de R$ 954,15. Em Lajeado é de R$ 2.443,49 e, em Santa Cruz do Sul, a média é de R$ 2.130,66.
Exigências em loteamentos e o custo dos terrenos
Em muitos dos loteamentos novos, onde os terrenos têm, no mínimo, 250 metros quadrados, o valor chega a cerca de R$ 90 mil. Considerando que sobra, muitas vezes, em torno de R$ 40 mil para construir (pelo Minha Casa, Minha Vida), o terreno acaba consumindo a maior parte do valor.
Mas por que os terrenos estão tão ‘caros’? Conforme profissionais do ramo imobiliário, a justificativa passa pelo alto investimento feito para atender as exigências na hora de abrir novos loteamentos. “Tem que ter pavimentação, água dos dois lados, esgoto pluvial dos dois lados, energia elétrica e, dependendo da quantidade de lotes e localização, precisa reservatório de água. Só esse reservatório custa uns R$ 500 mil”, mencionou Alexandre Wickert, que é loteador há quase 20 anos.
Ele também diz que há uma demora para conseguir fazer o loteamento e depois para vender todos os lotes. “Existe um investimento muito alto e precisamos considerar o dinheiro investido. Tem um tempo muito grande para tirar todo o retorno do que se investiu. Tenho, por exemplo, terrenos que estão parados há dois anos.”
O corretor Gelson Hinterholz também falou sobre o valor dos terrenos. “Hoje, para se fazer aqueles loteamentos bonitos, pavimentados e estruturados, precisa de muito investimento. Se agrega valor aos lotes e, por isso, os terrenos encareceram muito. Mas daí a maior parte do financiamento vai para pagar o terreno e o que sobra para a casa? Por isso vemos esse ‘boom’ de geminados.”
Custo Unitário Básico de Construção
O corretor Gelson Hinterholz chama atenção sobre o custo da construção, situação agravada pela pandemia. “Tem material que subiu mais de 100%, o que também acarretou em aumento do metro quadrado da construção”, destacou.
O CUB (Custo Unitário Básico de Construção) era de R$ 2,754 mil o metro quadrado em fevereiro no Rio Grande do Sul (residência unifamiliar normal). No mesmo período de 2022, era de R$ 2,526 mil; em 2021 era R$ 2,160 mil e, em 2020, R$ 1,899 mil.
Loteamentos em zonas de interesse social são apontados como alternativa
Dentro da Lei Complementar número 13, de 2007, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano em Venâncio Aires, estão determinados os procedimentos para abertura dos loteamentos, elencando todas as responsabilidades do loteador. Na mesma lei, também estão detalhados artigos referentes aos loteamentos populares. No artigo 47 diz que “os loteamentos populares serão admitidos somente para destinação residencial, com os respectivos equipamentos urbanos e de abastecimento, considerando o zoneamento de interesse social definido por lei.”
É esta ‘zona de interesse social’, as chamadas ‘Zeis’, um caminho apontado por profissionais do ramo imobiliário para tentar facilitar o acesso da população. “Se for possível abrir loteamentos nessas zonas, tira a obrigatoriedade do loteador para a pavimentação, o que já ajudaria a baixar o valor dos terrenos”, considera o corretor Telmo Kist. Ele, que por anos foi vereador em Venâncio Aires e, no seu tempo de Câmara, votou favorável às alterações relacionadas às obrigatoriedades dos loteamentos, lembra que a legislação foi pensada para tentar agilizar a pavimentação na cidade, para que os loteamentos não significassem mais uma conta nos ombros do poder público. “Não se questiona essa lei, que é importante e boa. Mas o tempo passou e hoje a realidade é outra. Precisa um meio alternativo para facilitar o acesso de pessoas com uma renda menor. Hoje em dia é mais importante ter casa ou calçamento?”
Ainda que a lei já fale que os loteamentos populares também podem ser implementados por particulares, Kist entende é preciso uma legislação específica em relação às Zeis. “Como são áreas do Município, tinha que ter uma lei para definir tamanhos de lotes. Porque terrenos menores também são mais baratos. Acredito que tenha regiões na cidade que se poderia pensar nesse tipo de loteamento. Isso não impede de continuar com os outros, já pavimentados e com terrenos grandes, e que tenha pessoas com condições de pagar. Um não vai anular o outro.”
O corretor cita, como exemplo, o loteamento Marjan 4, no bairro Coronel Brito. “Há alguns anos, este loteamento foi feito com terrenos menores, cerca de 180 metros quadrados, e sem pavimento. Por outro lado, tem casas maiores, com mais quartos e até garagem. Bem diferente das casas que têm hoje, com apenas um quarto. Não se tem conforto para uma família em 24 metros quadrados.”
O loteador Alexandre Wickert vai ao encontro da opinião de Telmo Kist. “A iniciativa privada também poderia fazer loteamentos a custo baixo e que as pessoas com renda menor pudessem comprar. Isso aquece o mercado e dá dignidade para quem compra.”
Ele considera, ainda, que o histórico imobiliário passa pela renda per capita. “Hoje, os custos em todos os segmentos aumentaram muito, é preciso olhar nossa economia interna. Precisamos de pessoas ganhando melhor, por isso, acho fantástico projetos que pensem na melhora da mão de obra, que é o caso do Qualifica Venâncio. Se qualificando, as pessoas têm oportunidade de buscar salários melhores e aumentam seu poder de consumo.”
Todos os públicos
Carmem Beatriz Hermes, 47 anos, é funcionária pública e comprou um geminado, no bairro São Francisco Xavier. “Eu queria sair do apartamento e do aluguel. Queria mais espaço para meu filho e meus cachorros, então encontrei um com um pouco de grama na frente.”
Mas, para conseguir a casa tão sonhada e que lhe faz feliz há um ano (num bairro bem localizado, com rua asfaltada, próximo de escola, posto de saúde e supermercado), Carmem revela que precisou encontrar uma renda extra: pediu convocação, para trabalhar mais horas, além do período que é monitora de Educação Infantil. “O custo de vida aumentou de forma geral. Está difícil para todos. Hoje tem que trabalhar muito e mais um pouco para dar conta.”
Para Carmem, que mora próximo de um loteamento novo e que tem, inclusive, reservatório de água, oferecer infraestrutura é importante, mas tem ‘o outro lado’. “No momento econômico que a gente vive, nesse pós pandemia, primeiro precisaria se pensar em facilitar para as pessoas, seja no acesso ao financiamento, seja barateando um imóvel. Infelizmente muitos não conseguem comprar terreno nem onde não tem pavimentação.”
Nesse sentido, o corretor Juliano Angnes afirma que o mercado imobiliário precisa de terrenos para todos os públicos. “As atuais exigências feitas ao loteador acabam por excluir uma legião de famílias que poderiam ter uma maior qualidade de vida em um bem próprio, mas que acaba por se resignar e viver de aluguel por não conseguir encaixar os valores para o Minha Casa, Minha Vida.”
“As pessoas querem pavimentação”, diz prefeito
Para o prefeito Jarbas da Rosa, a maior parte dos problemas estruturais dos municípios brasileiros passa por um desenvolvimento urbano desenfreado e sem planejamento. Perguntado sobre a possibilidade de abertura de lotes sem exigência do pavimento, ele afirmou que não ‘se pode retroceder’. “Nós temos uma demanda de centenas de quadras para pavimentar. Então em relação à pavimentação, não podemos retroceder. Atualmente, 90% do que chega na ouvidoria da Prefeitura é sobre isso. As pessoas querem pavimentação onde moram.”
Sobre a possibilidade de abertura de loteamentos particulares em zonas de interesse social, Jarbas diz que não lhe foi apresentado nenhum projeto. “Venâncio tem Zeis na Battisti, Vila Tata e Vila Rica. Ainda não fomos procurados por interessados em apresentar um projeto para abrir lotes particulares nesses locais.” O prefeito ponderou ainda de que é preciso considerar o que chamou de ‘subfinanciamento’ de programas de habitação. “Tudo encareceu, mas acredito que o novo governo federal está investindo nessa área.”
Por fim, Jarbas destacou o trabalho necessário em relação a loteamentos irregulares. “Temos 25 loteamentos irregulares pelo município e estamos em tratativas para que alguma universidade faça esse trabalho, de regularização dos lotes.” Os casos identificados estão em pontos espalhados, principalmente nas ‘vilas’ formadas dentro de localidades do barro vermelho, como Palaque, Herval e Travessa, mas também há situações em Vila Mariante, no Canto do Cedro e na Linha Bem Feita.
Na prática, são áreas maiores no interior que foram ‘fatiadas’ em pequenos terrenos e vendidos como lotes, o que não é permitido legalmente na zona rural. Além disso, não oferecem a infraestrutura mínima, que é pavimentação, ligação de luz, água e esgoto, por exemplo.