Estoques lotados, prateleiras abarrotadas, mostruários completos e um infinidade de opções. Essa não tem sido a realidade para diversos segmentos da indústria e do comércio no Brasil. Afetados diretamente pela pandemia do coronavírus, que paralisou a produção de insumos por determinado período no primeiro semestre, os setores têm enfrentado dificuldades para conseguir matéria-prima.
Paralelo a isso, enquanto se poderia esperar por uma igual estagnação de consumo, o que se viu foi o contrário. As pessoas não deixaram de comprar e até aumentaram em alguns pontos. Agora, com esse choque entre oferta e demanda, empresários e comerciantes precisam criatividade, paciência e dinheiro a mais para garantir que o consumidor continue com opções na hora da compra.
Aço, para que te quero
Imagine alguém que comprou uma motocicleta e agora precisa de um capacete para rodar por aí. Naturalmente vai até uma loja atrás de cor, tamanho e modelo específicos. Mas, atenção, talvez aquele objeto desejado não esteja disponível.
Isso não só é possível, como muito provável de acontecer e lidar com uma variedade e quantidade menores tem sido a realidade de muitos segmentos na indústria e no comércio. É o caso da D’Marcas, loja de motopeças de Venâncio Aires. Ela, que chegava a ter disponíveis mil capacetes, tem cerca de 200 em estoque. “Tenho pedidos de junho em aberto. Com os fornecedores está assim: ou atrasam ou nem aceitam novos pedidos”, revelou o gerente, Matheus Machry.
Além dos capacetes, outra dificuldade está nos canos de escapamento das motos. “O aço usado está muito caro. Só nos últimos três meses, já deu 33% de aumento. Geralmente, no ano, chegava a 8% no máximo”, destaca.
Enquanto precisa de paciência para esperar e disposição para gastar mais com artigos ‘raros’, Machry vê o consumo mantido. “As pessoas não pararam de comprar. Mesmo com a pandemia, a procura continuou, mas, perdemos vendas porque não tinha opções. Por enquanto temos estoque até o fim do ano e torcer para o envio dos pedidos.”
Estratégia
Além de paciência à espera de insumos, empresas tiveram que ter criatividade e estratégia para não deixar de produzir. No caso da Venax, houve a necessidade, para algumas situações, de avaliação técnica de substituição dentro dos projetos de engenharia.
Na prática, se um item tinha como matéria-prima uma chapa de aço de determinada espessura, por vezes ela foi substituída por outra, de bitola maior. “Mas a mudança sempre foi ‘para mais’, ou seja, o produto não pode perder em qualidade, mas mexe no peso e no custo dele”, explica a diretora-executiva, Fabiana Bergamaschi.
A metalúrgica também vem enfrentando dificuldades para conseguir materiais necessários na sua linha de montagem. E isso passa por um dos itens mais básicos do setor metalmecânico: o aço. “O mercado nacional tem sofrido, porque também há dificuldade de importação das distribuidoras asiáticas. O Brasil tem produzido, mas não tem conseguido atender a própria demanda.”
Preço
Ainda que não haja propriamente um ‘leilão’ entre fornecedores, o preço é uma consequência. “A maioria dos aços teve reajustes de 20% a 25%. Mas essa condição é para todos. Não perdemos em vendas, mas talvez mais para frente as pessoas podem segurar a compra, porque o reajuste terá de ser repassado para o produto final”, projeta Fabiana Bergamaschi, da Venax.
Situação semelhante é relatada pelo empresário Marcelo Campos, proprietário da Metalúrgica Venâncio. Segundo ele, os meses de pandemia dificultaram na aquisição, principalmente, de aço, cobre e alumínio. “De alguns aços o aumento chegou a cerca de 50%”, revela.
Paralelo a isso, foi necessário dar conta da demanda elevada por produtos, como fogões, fornos e refrigeradores. “Estamos conseguindo manter e dar conta dos pedidos, mas não sabemos até quando. Não só exportação, mas a demanda do mercado interno também é grande.”
Para atender esse consumo elevado, Campos disse que precisou contratar. Antes da pandemia eram cerca de 800 funcionários e hoje são mais de 900 na Venâncio, o que é um dado positivo na geração de empregos da cidade.
“Toda indústria sofre desabastecimento e elevação drástica de valores de insumos, porque a maioria está ligada à ‘difícil exploração’, já que são poucas empresas que detêm algumas produções. Nesse momento e para o fim do ano, não tem previsão de curto prazo de melhoria. Vai levar alguns meses para a indústria conseguir trabalhar o suficiente para repor esses produtos e equalizar essa conta.”
JUNIOR HAAS – Vice-presidente da Indústria da Caciva
Procura-se: Havaianas branco
“É possível que alguns produtos não tenham reposição.” A estimativa é de Heitor Lopes, proprietário da Casa Lopes, loja de calçados. Embora ainda tenha um estoque considerável, o comerciante confirma que muitos itens estão em falta. Entre eles, um dos chinelos de dedo mais tradicionais entre os brasileiros: o Havaianas.
Nos expositores da Casa Lopes, é preciso um olhar muito atento para encontrar algum par na cor branca entre os modelos femininos. “Não se acha mais desse lote. Quem tinha, vendeu.”
O desabastecimento no setor de calçados aconteceu, conforme Lopes, principalmente devido à falta da matéria-prima usada na composição dos solados, feitos a partir de derivados da borracha. A escassez do produto acarretou em aumento de até 20% pagos a fornecedores.
A poucas semanas do Natal, data mais importante para o comércio, Heitor Lopes disse que os clientes não devem ficar sem variedades, mas dificilmente haverá oferta de preços. “Se for necessária uma reposição até lá, possivelmente deve ter algum reajuste.”
Papel
Enquanto alguns setores ainda ‘penam’ para encontrar matéria-prima, o desabastecimento dos derivados da celulose é pontual. “O Brasil é um dos maiores produtores do mundo e está exportando muito, aproveitando a alta do dólar. Ao mesmo tempo precisa dar conta da demanda nacional”, aponta o diretor da Gráfica Traço, Marcel Coutinho.
Segundo ele, que também é diretor administrativo da Associação Brasileira da Indústria Gráfica Regional Rio Grande do Sul (Abigraf-RS), durante a pandemia aumentou muito o consumo do chamado papel kraft, usado para embalagens de padaria e microondulados (para pizza).
“Atualmente, também se percebe uma demanda maior no papel revestido, o couché, usado na produção dos ‘santinhos’ da campanha eleitoral”, relata. Enquanto isso, o papel usado em escritórios, como o tradicional ofício, não teve falta.
Curiosidade
De acordo com Marcel Coutinho, a indústria brasileira de celulose é obrigada a deixar 20% do que planta. “Todo o papel produzido é a partir de reflorestamento e, no Brasil, a cada 120 árvores plantadas, 100 são colhidas.”
Vendas
Um expoente dessa continuidade do consumo foi verificado na construção civil. Com muita gente em casa na pandemia, sem gastar com lazer, por exemplo, o foco foi a reforma e o conforto do lar.
“Tivemos um aumento de 15% a 20% nas vendas em relação aos mesmos meses do ano passado. Parte do estoque foi gasto e agora há uma dificuldade de encontrar alguns itens”, comentou o proprietário da Dimac, Mairo Hinterholz.
Entre os materiais, tijolos e pedras de alicerce. Mas, nesses casos, não é necessariamente a matéria-prima, mas o que falta é mão de obra em algumas pedreiras do estado.
Além disso, vários materiais tiveram alta junto aos fornecedores, como fios elétricos – até 100% – e produtos de PVC. Dessa forma, o produto na loja também acabou reajustado. Na Dimac, por exemplo, o metro do forro PVC custava R$ 11,90 antes da pandemia e hoje está em R$ 18,90.
Além da reforma da casa, o interior das residências também motivou muita compra, com a aquisição de móveis. Conforme a proprietária da WAMóvel, Andréia Gottems, cresceram os pedidos na fábrica.
“Vendemos mais, mas também temos dificuldade em determinados itens.” Segundo ela, não há uma previsão para normalizar o fornecimentos de chapas em MDF, espumas e tecidos, por exemplo.
“Não é falta de capacidade de produção”, diz economista
Ao avaliar a economia nos meses de pandemia, o economista e professor da Univates, Eloni José Salvi, entende que a indústria está cautelosa. “Não é falta de capacidade de produção. O que vem acontecendo, desde a retomada, é cautela em oferecer mais. Todos ainda estão receosos diante de um cenário incerto.”
Para Salvi, muitos esperam por uma retomada da economia em ‘V’. Ou seja, depois de uma queda brusca, um aumento igualmente agudo. “Se não houver revés, tudo indica um bom fim de ano. E em 2021, se uma vacina para a Covid se estabelecer, vamos ter o principal elemento: a confiança. Com ela presente, o ambiente ficará mais otimista e os investimentos devem acelerar.”
“Ninguém vai arriscar e perder lá na frente. As empresas e fornecedores estão se precavendo de estocar muito e ter uma nova parada. Então o que tem acontecido é uma produção pequena, mas que é constante e regular.”
AIRTON BADE – Vice-presidente de Comércio da Caciva