
Está no centro dos debates na área da educação em nível nacional o decreto nº 12.686/2025 assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que prevê a realização de matrículas de estudantes com deficiência física e intelectual em escolas de ensino regular e não mais em instituições de educação especial.
O documento determina a retirada do poder de escolha dos pais ou responsáveis sobre o melhor método de ensino para os filhos, e põe em risco o funcionamento das escolas mantidas pelas Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) em todo o Brasil.
Diante da grande preocupação, o tema chegou ao Congresso Nacional. O senador Flávio Arns (PSD-PR) iniciou a tramitação de um decreto legislativo para sustar os efeitos do documento. Em Venâncio Aires, o vereador Nilson Lehmen apresentou uma moção de apoio a essa iniciativa, subscrita pelos demais parlamentares.
Na terça-feira, 11, o presidente da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes), professor Jarbas Feldner de Barros, juntamente com integrantes da instituição e lideranças políticas, reuniu-se com o ministro da Educação, Camilo Santana. Durante o encontro, foram apresentadas propostas para o aprimoramento do texto. O objetivo principal foi garantir a segurança jurídica e a manutenção da oferta da educação especial nas instituições que, há décadas, cumprem papel essencial na formação e no desenvolvimento das pessoas com deficiência.
Como resultado da agenda, o Ministério da Educação garantiu a revisão do decreto.
“No contexto atual, a escola regular não tem suporte para dar conta de todas as demandas”
Apesar da sinalização positiva do Ministério da Educação, a preocupação persiste em diferentes níveis educacionais. Como o decreto já foi assinado, ele está tecnicamente em vigor, pendente apenas de regulamentação. Profissionais da área contestam esse modelo do Governo Federal de promover a inclusão.
A professora Adiane Vargas, com especializações em psicopedagogia e neuropsicopedagogia, atua com Atendimento Educacional Especializado (AEE) – conhecidas como salas de recursos –, nas escolas estaduais de ensino fundamental Léo João Frölich e São Luiz. Embora observe avanços na perspectiva da educação inclusiva dentro do decreto, ela pondera sobre a execução. “O que me preocupa é como o governo vai efetivar essa política sem deixar a escola, professores e estudantes à mercê de uma inclusão fictícia”, afirma Adiane.
Ela contextualiza que, mesmo com a inclusão na escola regular, o AEE poderá ser ofertado de forma transversal. “Não está claro como isso será efetivado na realidade das escolas de todo o Brasil. No contexto atual, a escola regular não tem suporte para dar conta de todas as demandas que esses estudantes vão precisar para serem incluídos, além de terem suas necessidades atendidas e potencialidades desenvolvidas”, alerta.
Desafios
A nova política deixa diversas lacunas, especialmente sobre a capacitação de professores, diretores, supervisores e equipes de apoio. A professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e integrante do Conselho Municipal de Educação de Venâncio Aires, Luci Krämer analisa que o decreto impõe ao professor regente o trabalho pedagógico com todos os alunos, somando-se a novas incumbências, como assegurar o AEE individual além do plano de aula diário.
“Há previsão de demandas para a implantação das normas, como a oferta de Atendimento Educacional Especializado, cabendo ao Município a organização de Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) para atendimento complementar no turno inverso. Isso vinha sendo muito bem desenvolvido pelas Apaes, que já estão equipadas com essas salas e possuem equipe multiprofissional”, destaca Luci.
“A questão da inclusão é técnica e não pode ser levada para o âmbito da ideologia partidária”
A Secretaria de Educação de Venâncio Aires acompanha as discussões. A pasta mantém convênio com a Apae do município, repassando recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
O secretário Emerson Elói Henrique reforça o “apoio incondicional ao trabalho realizado pela Apae” e defende que a inclusão envolve uma série de processos complexos. “A questão da inclusão é técnica e não pode ser levada para o âmbito da ideologia partidária”, argumenta.
Para o titular da pasta, ao desconsiderar a matrícula como um direito de escolha da família, o decreto fere evidências científicas e ignora as necessidades reais de cada aluno ao impor um modelo único.
“O Ministro da Educação manifestou em sua rede social que pontos do decreto federal serão revistos. Entendemos que o texto original fere a lei maior da educação, a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], que garante às pessoas com deficiência e suas famílias a escolha do tipo de ensino mais adequado”, explica o secretário.
Capacidade de atendimento
- O secretário Emerson Elói Henrique destaca que o município realiza formações constantes com profissionais e possui salas de recursos com Atendimento Educacional Especializado, visando um sistema inclusivo.
- “Contudo, existem situações que exigem condições específicas. As escolas especializadas e as classes especiais que mantemos em duas escolas da rede municipal garantem uma organização com menos alunos em sala, menos estímulos sonoros e técnicas mais direcionadas”, esclarece o secretário.
- Ele alerta que expor alunos com baixa tolerância a espaços coletivos com excesso de estímulos visuais e sonoros pode provocar comportamentos disruptivos. “Isso pode influenciar negativamente o desenvolvimento do aluno incluso e causar prejuízo educacional aos demais estudantes”, avalia.
- Atualmente, cerca de 12% dos alunos da rede municipal possuem alguma deficiência. Cada estudante recebe um Plano de Atendimento Especializado para assegurar acesso ao currículo e desenvolvimento da aprendizagem.
- O novo Centro Integrado de Educação e Saúde (Cies) está sendo planejado para contar, em anexo, com um Centro Autista, ampliando o suporte também às famílias.
Ensino particular
Conforme observa a diretora do Colégio Gaspar Silveira Martins, as Apaes têm uma história significativa no atendimento especializado a pessoas com deficiência. “Com equipes e recursos específicos, realizam intervenções que favorecem o desenvolvimento individual de cada estudante”, afirma. É através do AEE, conforme explica a gestora, que é possível promover o direito à convivência, à participação e a aprendizagem, atuando diretamente no campo pedagógico.
“No Colégio Gaspar, o AEE elabora os Planos de Desenvolvimento de diferentes necessidades e habilidades, para suplementar ou complementar o processo de aprendizagem, contemplando a definição e organização de estratégias, serviços e recursos pedagógicos e de acessibilidade; o tipo de atendimento conforme as necessidades individuais do estudante; e o cronograma de atendimento e a carga horária.”
“Encontramos a nossa tribo”: importância da Apae na vida do Matheus
A enfermeira Maica Adams tem uma rotina de intensa dedicação e aprendizado constante ao lado do filho, Matheus Adams da Rosa. Junto com o pai, Renan Hart da Rosa, a família celebra as conquistas do filho, que possui diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), nível 3 de suporte não verbal.
Matheus ingressou na escola da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Venâncio Aires em 2020 e, desde então, frequenta a instituição diariamente no turno da tarde, iniciando às 13h e permanecendo até as 16h30min, recebendo atendimento em sala de aula. A adaptação é celebrada pela mãe, já que no começo ele não conseguia cumprir toda a carga horária escolar.
Para a mãe, a Apae desempenha um papel vital. “É um ambiente pensado neles. Os profissionais possuem capacitação contínua e o atendimento é quase personalizado, focado nas características e dificuldades de cada criança”, explica. Ela destaca que, por serem turmas menores, os professores conseguem dar a atenção necessária.

Divisor de águas
A entrada de Matheus na instituição foi transformadora para a família. “Foi um divisor de águas. Ficamos muito mais tranquilos em saber que ele está bem assistido”, relata Maica. Ela descreve a escola como organizada e acolhedora, comparando a Apae a uma grande família. “Foi como se a gente tivesse encontrado a nossa tribo. Quando você fala sobre alguma dificuldade do seu filho, eles entendem do que você está falando e os motivos, não é preciso explicar tudo, pois são anos de preparação”, diz.
A evolução de Matheus é notável e detalhada por Maica. Segundo a mãe, ele se tornou mais sociável, tolerante e feliz. “Hoje ele consegue seguir as regras. Pega o lápis e pinta do jeitinho dele, mas pinta”, conta. Um dos grandes avanços foi na alimentação: devido à seletividade alimentar, Matheus não tolerava ver outras pessoas comendo alimentos que ele não suportava. Atualmente, ele senta junto aos colegas e acompanha o momento do lanche tranquilamente.
Debate
Maica, assim como outros pais, também expressa preocupação em relação ao decreto do Governo Federal que visa a matrícula na rede regular de ensino para todas as crianças. Para ela, a medida é equivocada, pois as escolas comuns ainda não estão preparadas para receber alunos e oferecer o suporte necessário.
“As escolas não estão preparadas e os professores não estão capacitados como deveriam. Uma criança com autismo de nível mais grave tem inúmeras particularidades que, acredito, não seriam supridas no ensino regular”, argumenta. Ela cita o excesso de estímulos em salas lotadas como um gatilho para a desorganização emocional desses alunos.
Além disso, a quebra do vínculo criado com os profissionais da Apae e a mudança brusca de rotina seriam prejudiciais. Na Apae, Matheus tem acesso a um atendimento multidisciplinar que inclui neurologista, nutricionista, psicopedagoga, terapeuta ocupacional, psicóloga, fonoaudióloga, além de aulas de educação física, informática e dança. “É um trabalho lindíssimo. Eu me sinto muito acolhida e tenho um carinho enorme por toda a instituição. Hoje, a Apae é a nossa família”, conclui Maica.