Com 85 anos, Escola Mariante terá suas atividades encerradas em decorrência dos estragos causados pelas enchentes do rio Taquari.
A enchente do rio Taquari, em maio deste ano, deixou feridas abertas nas comunidades de Vila Mariante e Vila Estância Nova. Moradores perderam todos os pertences e muitos deles não tiveram a possibilidade de retornar para suas residências, destruídas ou fortemente danificadas. Na semana passada, mais um ‘soco’ foi absorvido, com o anúncio de que a Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Mariante encerrará as atividades no fim deste ano letivo.
O educandário, que chegou a ter mais de 600 alunos até o início dos anos 2000, completou 85 anos em 2024. Após ter resistido à interdição dos dois prédios em 2022 e às duas enchentes de setembro e novembro de 2023, os impactos da cheia de maio foram irreversíveis para o retorno das atividades em Vila Mariante – o prédio atualmente se encontra abandonado.

Com aproximadamente 50 alunos, a Escola Mariante completou o último ano anexa à Escola Adelina Isabela Konzen, no distrito vizinho de Vila Estância Nova. Ainda que as probabilidades fossem contrárias, a expectativa ainda era por uma continuidade do educandário que marcou diversas gerações de moradores do segundo distrito. No entanto, a decisão por parte do Governo do Estado foi pelo encerramento, o que não apaga a memória de quem percorreu aqueles corredores e abriu livros naquelas salas de aula.
Uma vida na escola
As primeiras matrículas da Escola Mariante, à época Escola Coronel Brito, datam de 7 de janeiro de 1939. Antes das últimas enchentes, a lista com os nomes destes alunos era guardada pela diretoria da escola, mas também se perdeu com as águas do rio Taquari. Destes 85 anos, uma estudante, que se tornou professora, viveu diretamente 38, mais de metade de sua vida.
Márcia Beatriz Reche, de 65 anos, começou a estudar na escola com 8 anos, em 1968 e, após formada em Magistério e Pedagogia, passou em concurso público e iniciou os trabalhos no educandário, onde ficou de 1983 até 2015, com as turmas de pré, 3º e 4º anos do Ensino Fundamental. “A aprendizagem mudou. No início era lápis, caderno e mimeógrafo, depois veio a informatização. E a escola preocupada e tentando seguir as mudanças, com cautela para que ninguém saísse prejudicado”, recorda.
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Segundo a professora aposentada, o ambiente era tão agradável e os alunos dedicados, que não parecia um lugar de trabalho. “Nossa escola era o centro de toda a interação da comunidade de Mariante. Não apenas um lugar de aprendizagem”, afirma Márcia.

A notícia do encerramento das atividades foi recebida com surpresa pela professora. “Pensei que jamais viveria para ver esse momento acontecer”, explica. De acordo com ela, a catástrofe climática “arrancou” o seu lar e, agora, a escola. “Fiquei muito triste. Vi pais, filhos e netos estudando na escola. A comunidade tem uma perda irreparável”, diz.
20 anos como diretora na Escola Mariante
A diretora aposentada, Maria Lúcia de Campos, passou mais de 20 anos como responsável pela escola. Por muito tempo, Lúcia e Escola Mariante eram praticamente sinônimos. Conforme ela, o educandário “dava vida” para a comunidade, com eventos e os desfiles estudantis. “Era orgulho para a comunidade. Mantinha um bom nível de aprendizagem e chegou a ficar entre as 100 melhores classificadas do estado. Inúmeros alunos que passaram pela escola cursaram universidades e hoje são excelentes profissionais”, comenta.
No período como diretora, Lúcia relembra que a escola recebeu um aumento expressivo de alunos a partir de 1996, tornando-se polo pela disponibilização do Ensino Médio. Foi neste ano também que passou a ocupar o prédio da Escola Cenecista Luiz Vasques da Cunha, que já havia encerrado as atividades. Eram, na época, dois prédios e, somado ao Círculo de Pais e Mestres (CPM), foram realizadas reformas e manutenções necessárias. “O prédio Cenecista era bem antigo, construído em 1950 em um projeto arquitetônico idealizado pelo doutor João Gomes Mariante, um dos primeiros médicos de posto de saúde de Venâncio Aires”, comenta.

Outro motivo de orgulho para a diretora é a banda marcial e os desfiles cívicos que eram realizados. O grupo se apresentava em municípios como Mato Leitão, Fazenda Vilanova e Passo do Sobrado, e a equipe diretiva organizava o desfile no distrito. “Era muito esperado pela comunidade. Participavam escolas, banda do Exército, entidades, clubes de serviço, comércio, piquetes e cavalarianos, além dos alunos, professores e funcionários da escola”, ressalta.
Lúcia diz que o sentimento é de tristeza e relembra que o prédio da antiga Escola Cenecista resistiu à enchente, mas já havia sido desativado por problemas estruturais em 2022. Ela lamenta, em especial, porque acredita que muitos moradores estão retornando para Vila Mariante por opção e que o Estado poderia fazer esforço para revitalizar a escola. “É possível restaurar o que ficou ou, até mesmo, ser tombado como patrimônio histórico do município. Acredito que sempre há esperança de um novo recomeço, principalmente no lugar que é a origem de Venâncio Aires”, completa.
600 – foi o número máximo de alunos da Escola Mariante.

História da Escola Mariante
• Os arquivos da Escola Mariante foram perdidos durante as últimas enchentes. No entanto, a professora e historiadora Rafaela Limberger desenvolve o projeto de um livro sobre a memória e história do educandário com sete estudantes do 3° ano do Ensino Médio, que atualmente estão na Escola Adelina. A metodologia utilizada é a história oral, com entrevistados como fontes históricas.
• Os primórdios da Escola Coronel Brito – primeiro nome da Escola Mariante – remontam a 7 de janeiro de 1939. Enquanto o mundo sofria com a Segunda Guerra Mundial e o Brasil vivia a Era Vargas, no segundo distrito de Venâncio Aires eram iniciados os trabalhos naquela que se tornaria uma das mais antigas escolas em atividade no município. Apenas Monte das Tabocas, Perpétuo Socorro, Alfredo Scherer, São Luiz e Sebastião Jubal Junqueira são datadas do mesmo período ou mais antigas.

• Conforme a pesquisa, nos primeiros anos a escola atendia apenas até o 4º ano do Ensino Fundamental. O Ensino Fundamental completo em Mariante era particular e oferecido pela Escola Cenecista Luiz Vasques da Cunha. “Em função dos custos, muitas pessoas não podiam arcar com os estudos, nem mesmo ir até Venâncio, estudando apenas até a antiga quarta série”, destaca Rafaela.
• Foi então que, com união do grupo escolar e da então diretora Maria Lúcia de Campos, em 1992 foi implementado o Ensino Fundamental completo e, em 1997, o Ensino Médio. Esse momento foi o auge da escola, com turmas com cerca de 50 alunos e, ao todo, chegaram a ser mais de 600 estudantes em dois prédios, nos turnos manhã, tarde e noite. O prédio do ‘grupo’ abrigava o Ensino Fundamental e o prédio do ‘ginásio’ o Ensino Médio.
• Em 21 de junho de 2022, o prédio do ‘ginásio’ da Escola Mariante foi interditado por problemas estruturais. Após todos os alunos serem transferidos para o segundo prédio do educandário, este foi interditado em 4 de julho, depois de complicações na rede elétrica e, com isso, todos os estudantes da escola passaram a ter aulas na modalidade Ensino a Distância (EAD).

• Em 12 de setembro daquele ano, os estudantes passaram a ter aulas na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) campus de Venâncio Aires, que disponibilizou 10 salas, por meio de locação.
• O prédio que foi interditado no dia 4 de julho, por problemas na rede elétrica, teve a reforma iniciada pela empresa Boa Vista Construções, de Erechim, em janeiro de 2023. O projeto de recuperação foi desenvolvido pela 6ª Coordenadoria Regional de Obras Públicas.
• A escola chegou a ficar com as aulas interrompidas nas duas enchentes do rio Taquari em 2023, em setembro e novembro, mas retomou as atividades. No início deste ano, havia sido confirmada a implementação do Ensino Médio em tempo integral na escola.
• Após a enchente histórica de maio, os alunos foram realocados na Escola Adelina Isabela Konzen, onde seguem até agora. Antes da primeira paralisação, a Escola Mariante tinha cerca de 230 alunos.
• Para a produção do livro sobre a história do educandário, foram realizadas nove entrevistas com professores que também foram alunos da escola, funcionários, pais, direção e alunos. O material será encaminhado aos pesquisadores para a construção final dos textos da obra e a previsão, segundo Rafaela, é que esteja finalizado em abril de 2025.

Banda Mariante: orgulho da comunidade escolar
“No primeiro toque do surdo, todo mundo se levantava”. A lembrança é de Lairton Saldanha, funcionário da Escola Mariante e coordenador da banda marcial por quase duas décadas. Conhecida pela potência dos instrumentos e a harmonia, a Banda Mariante marcava aqueles que tinham a oportunidade de acompanhar os desfiles.
A criação do grupo foi em 1969, na antiga Escola Cenecista Luiz Vasques da Cunha, com apenas seis instrumentos, surdos, tarol e bumbo. O organizador foi o professor de Educação Física Décio Azevedo, que trabalhou nas duas escolas. Posteriormente, o ‘apito’ foi passado para o professor Ênio Peres, responsável pelo início na Escola Mariante – ainda Coronel Brito, na época. “Os primeiros instrumentos eram da Escola de Samba Pirilampos, que foram reaproveitados. O objetivo era fazer com que todos marchassem no ritmo e bem alinhados”, destaca Azevedo.

Após a aposentadoria de Peres, quem assumiu foi Saldanha. Quando aluno, tocou surdo e, posteriormente, ajudava na organização das filas. “O tio Ênio me surpreendeu e entregou o apito no final do seu último desfile”, relembra o coordenador.
Nos últimos 20 anos, a banda chegou a ter mais de 70 integrantes em determinado momento – alunos do 7º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio – e desfilava em Mato Leitão, Venâncio Aires, Passo do Sobrado e Fazenda Vilanova, além de Vila Mariante. Com uniformes azul e camisas brancas, com o logo da escola, a banda contava com instrumentos como surdos, tarol, fuzileiro e prato. “Eram sete toques, que mudavam através do apito. Para mim, o sétimo era o mais bonito”, destaca Lairton Saldanha.
Segundo ele, a banda era sinônimo de dedicação e empenho dos alunos e todos sonhavam em representar a escola nos desfiles. A compra e manutenção dos instrumentos era realizada pelo educandário, sendo que havia mutirões de estudantes para organizar os materiais. Atualmente, a banda integrava um projeto pedagógico, com o objetivo de inclusão e participação dos alunos.

Pré escola ao Ensino Médio
A ex-aluna da Escola Mariante, Thaissa Saldanha dos Santos, explica que iniciou a trajetória na banda bem jovem, na pré-escola, puxando o grupo ou carregando as bandeiras da escola. Ela encerrou a participação em 2022, no desfile de Venâncio Aires, após ter se formado no 3º ano do Ensino Médio.
Para ela, com a banda passou a valorizar ainda mais a escola e o sentimento de carregar o nome do grupo e representar o município tem uma importância especial. “Foram momentos inesquecíveis, principalmente o último desfile. Com um grupo composto por alunos e ex-alunos, quando acabamos a apresentação cantamos parabéns e presenteamos meu dindo, Lairton, por seu aniversário, dia 6 de setembro”, diz. Segundo ela, o sentimento com o encerramento da escola e da banda é de tristeza, da perda da identidade e da vida na comunidade.

“Não acho que a banda pode morrer”
No entanto, ainda há esperança com relação à Banda Mariante. O coordenador Lairton Saldanha afirma que está analisando possibilidades e projetos para dar prosseguimento, mesmo sem a escola. “Não acho que a banda pode morrer. Vou procurar formas de manter, são projetos possíveis”, comenta.
Com 31 anos como funcionário na escola, ele afirma que a manutenção do grupo, mesmo sem a conexão com o educandário, pode ser uma forma de manter memória e história vivas. Nos últimos anos, Saldanha contava com a ajuda de Maria Rita Pereira, que foi a única funcionária da área da Nutrição que se manteve da Escola Mariante para a Adelina.

A escola que nos fazia acreditar que tudo era possível
Corri pelos corredores. Pulei nos antigos pneus. Ralei o joelho na quadra de concreto. Escrevi nos quadros e li na biblioteca. Foram 12 anos da minha vida em que a rotina passava diretamente pela Escola Mariante. Nos primeiros anos, estudava a tarde, no ‘grupo’, prédio que ficava há cerca de 200 metros da minha casa. Era um ‘pulo’ e estava lá. Depois, a caminhada era um pouco maior e precisava acordar mais cedo. O prédio do ‘ginásio’ era o destino no Ensino Médio.
Por anos, o garoto tímido que não tinha voz para nada foi se desenvolvendo e criando coragem para falar, talvez até demais. Muito por incentivo dos professores, que sempre tiveram papel essencial para que todos acreditassem no próprio potencial. Em algum momento retive o sonho de tocar na banda, mas a aptidão para instrumentos musicais é praticamente zero, então abandonei e preferi apenas admirar o grupo. Mas sempre fui o aluno exemplo, daqueles que até nem estudava muito, mas prestava atenção o suficiente para sempre tirar boas notas.
Estudar na Escola Mariante era, e ainda é, sinônimo de orgulho. A maioria talvez não entenda os motivos para que essa relação seja tão próxima. A Escola Mariante foi a responsável por fazer muitos jovens acreditarem que tudo era possível. Era possível ser exemplo no município, era possível ter uma banda que chama a atenção de todos, era possível ganhar uma bolsa de estudos. E foi acreditando que muitos conquistaram.
Aos 85 anos, as luzes imaginárias da escola serão apagadas. Afinal, as luzes verdadeiras foram apagadas pelas águas do rio Taquari e as luzes da memória nunca serão apagadas. Vila Mariante nunca mais será a mesma, mas é impossível que estas mais de oito décadas sejam esquecidas.
Leonardo Pereira – jornalista e ex-aluno