A melhora em doses de 10ml

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A discussão é de mais tempo, mas a regulamentação da maconha para fins medicinais no Brasil ganhou, mesmo, as manchetes em 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o canabidiol (óleo extraído da maconha) para prescrição médica e importação.

Passados quatro anos, o debate agora é para o cultivo ou não da planta. Mas, antes que o brasileiro imagine lavouras cultivadas a bel-prazer, o plantio também é para fim medicinal e não uma prática doméstica com ‘segundas intenções’.

Um encaminhamento poderia ter acontecido nesta semana, quando havia a expectativa de a Anvisa decidir sobre a regulamentação da produção, plantio e transporte da maconha medicinal por parte de empresas farmacêuticas; e sobre o registro de medicamentos. No entanto, a própria agência adiou novamente a votação, que ficou para as próximas semanas.

Em meio a prorrogações, o que também tem garantido pano para manga vem de Brasília. A questão saiu do debate médico e virou pauta política após a Anvisa realizar consulta pública, em agosto, para estabelecer critérios de produção. A medida não agradou o Governo Federal, que quer evitar a necessidade do plantio. O receio é de que a medida abra as portas para a legalização das drogas.

Enquanto isso, fato é que milhares de pessoas seguem com ações judiciais para conseguir o medicamento, que é importado. Isso porque produtos à base da planta são utilizados no tratamento de doenças como epilepsia, autismo e Parkinson, por exemplo.

No Judiciário de Venâncio Aires, há apenas um caso relativo ao canabidiol: é o de Douglas Henrique Fischer, morador de Mato Leitão. Em 2016, a Folha do Mate contou o início do processo para tentar o uso. Três anos depois, retomamos a história para relatar a trajetória do jovem até aqui.

Hemp Oil (RSHO) Raw Label é o nome do fármaco importado dos Estados Unidos (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

“A vida dele melhorou 80%”

Por ser extraído da Cannabis Sativa (mundialmente conhecida como maconha), o canabidiol tem causado estranheza em muita gente ao ser anunciado como um aliado em tratamentos de saúde.

No Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), não há evidências científicas que comprovem total segurança e eficácia para casos de epilepsia, por exemplo.

Mesmo sem comprovação absoluta, quem tem tido acesso é categórico: tem melhora. Em Mato Leitão, um caso ficou conhecido há três anos. Na época, a família de Douglas Henrique Fischer dava os primeiros passos para garantir o direito de o jovem usar o óleo da maconha.

O motivo? Crises epiléticas praticamente incontroláveis desde os três anos e a possibilidade de vislumbrar dias mais tranquilos com um novo tratamento. “Posso dizer que 80% da vida dele melhorou.” A porcentagem estipulada por Tatiane Inês de Borba, 42 anos, é baseada em outros números. Segundo ela, o filho Douglas, que até 2015 sofria cerca de quatro crises de epilepsia por dia, hoje tem duas na semana e olhe lá.

A matemática surpreende mais quando o causador da diminuição das crises está em ampolas de 10ml do Hemp Oil (RSHO) Raw Label, o nome do fármaco para o canabidiol usado pelo jovem.

Para quem sente o produto nas mãos, ele lembra uma tinta e, conforme vai se espalhando, parece óleo veicular. Quanto ao cheiro, o olfato remete ao aroma da folha de boldo, o mesmo do chá. Com essas impressões, a pergunta: há certeza de que Douglas melhorou? A mãe afirma que sim. “Tem sido fundamental e com um mês deu para notar diferença. Além de menos crises, está muito mais calmo. É outra pessoa. Não são mais dias perdidos e é gratificante ver teu filho bem.”

Para dar força à própria fala, Tatiane diz que, desde que começou o uso, não foram incluídos novos remédios no tratamento. Ou seja, desde criança, Douglas toma os mesmos quatro tipos de comprimidos, todos para epilepsia.

Quanto ao canabidiol, a prescrição é por uma dose de 5 a 10 miligramas por quilo de peso por dia. Na prática, o jovem recebe ‘um fiozinho’ do óleo toda noite. Assim, cada ampola dura 10 dias.

O valor estimado, por mês, dos cinco medicamentos consumidos, é de R$ 13 mil. Todos fornecidos gratuitamente, sendo que dois são importados e três retirados diretamente na Secretaria de Saúde de Mato Leitão.

ROTINA

Hoje um adulto de 1,67 metro e quase 80 quilos, Douglas tem marcas e cicatrizes, causadas nos tempos em que sofria convulsões e caía, enrijecido, em qualquer lugar ou hora. Com a diminuição considerável das crises, a rotina tem sido bem mais tranquila.

Um avanço, talvez impensável para muitos, é o jovem estar dormindo no próprio quarto. Antes, precisava ficar junto de Tatiane e o marido, Pedro Eliseu Fischer, 52 anos. A aproximação era necessária devido às crises constantes.

Nos últimos anos, Douglas concluiu o ensino médio, no Colégio Estadual Poncho Verde, e participa de grupos de jovens, no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Mato Leitão.

Junto com o canabidiol, Douglas precisa usar mais quatro medicamentos (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Médica confirma controle e diminuição das crises

Para a neuropediatra Melina Pimentel, que acompanha Douglas há mais de 10 anos, a ideia de tentar o canabidiol veio após longo tratamento com diversas combinações de medicamentos. “Ele permanecia tendo crises frequentes intensas. Sabemos que no Brasil o uso ainda é recente, mas tem vários estudos científicos mostrando que, para essas epilepsias de difícil controle, as crises podem reduzir em até 40% na sua frequência”, relata Melina.

No caso de Douglas, a médica confirma que houve melhora e se diz favorável à regulamentação do produto para fins medicinais. “Ele continua tendo crises, mas são bem menos frequentes. Claro que não foi feita suspensão de outras medicações. O Douglas ficou usando as outras e foi associado ao canabidiol. Houve, sim, melhora clínica. Por isso apoio a ideia da Anvisa.”

Mesmo com o exemplo prático e conhecido, Melina diz que ainda é um tratamento inicial e a maioria dos serviços de neurologia tem poucos pacientes com o uso. Por isso, além da medicação com anticonvulsivantes e o canabidiol, a neuropediatra sugeriu a Douglas a dieta cetogênica (com baixo carboidrato). “É bem promissora em termos de diminuição de frequência de crises. O Douglas provavelmente não terá uma parada total, mas conseguimos controlar e diminuir.”

OPINIÃO

Assim como a neuropediatra, Tatiane de Borba tem acompanhado as discussões da regulamentação que a Anvisa defende e é da opinião de que ela deve ser aprovada. “Se tiver o plantio em uma estrutura fechada e controlada, como numa indústria farmacêutica ou faculdade, acho que precisa ser liberado. Não é só para epilepsia, há outras doenças, e muita gente poderia ser ajudada.”

A dona de casa destaca ainda que sua opinião e tomada de decisão em relação ao filho são alvo de críticas. “Muita gente me critica. Mas precisamos nos colocar no lugar do outro. E se fosse teu filho? E outra coisa, os coquetéis que ele já tomou desde pequeno, é mais droga que a maconha.”

Em julho de 2016, a Folha falou da busca da família para assegurar o medicamento

ENTENDA

As primeiras crises aconteceram quando Douglas tinha apenas três anos. Até os 12, ele a mãe percorreram vários consultórios em Venâncio, Lajeado, Estrela, Santa Cruz do Sul e Porto Alegre, mas nunca receberam um diagnóstico.

Foi em 2009, depois de exame com a neuropediatra Melina Pimentel, a confirmação da Síndrome de Lennox-Gastaut. Segundo a médica, é uma encefalopatia epilética de difícil controle. “É uma síndrome genética, que cruza com crises convulsivas frequentes e declínio cognitivo progressivo.”

A Lennox-Gastaut causa crises difíceis de controlar e que, mesmo em uso de politerapia (com mais anticonvulsivantes), elas ainda não cessam. Ainda assim, Tatiane sentiu alívio por pelo menos saber qual o problema do filho. O que ainda segue uma incógnita, é a origem da doença.

Tatiane tem 4ª série do ensino fundamental, mas, mesmo sem uma vasta escolaridade, já leu de tudo sobre o problema. Reportagens e pesquisas fazem parte da sua ‘especialização’. Além disso, participa de três grupos de WhatsApp com cerca de 100 brasileiros na mesma situação.

Foi lendo que ela descobriu a possibilidade de solicitar, via judicial, a importação do óleo. Depois de conseguir autorização direta da Anvisa e anexar o laudo médico, encaminhou a papelada na Defensoria Pública de Venâncio Aires.

O primeiro processo foi aberto em outubro de 2015 e, em menos de um mês, recebeu três ampolas, de 10ml cada, importadas dos Estados Unidos. Essa quantidade dá para 30 dias. Nesses quatro anos, Tatiane conta que foram uns 10 pedidos.

Conforme o Fórum, a sentença para que o Estado forneça o medicamento foi proferida em março de 2017. Mas, o Estado pediu recurso, o que está em análise no Juizado da Fazenda. Nesse meio tempo, segue fornecendo a medicação. A última aquisição foi em outubro de 2018, pelo valor de R$ 11,5 mil, garantindo o tratamento de três meses. Em julho passado, a família recebeu uma doação.

Tatiane precisa sempre andar com os laudos da Anvisa. Ela afirma que, se for flagrada com o canabidiol e não apresentar a documentação, pode até ser presa por tráfico de drogas (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

No Brasil, pacientes que precisam de produtos à base de cannabis só têm acesso por importação autorizada pela Anvisa. São exigidos prescrição, relatório médico e um termo de responsabilidade. As doenças mais citadas nos laudos médicos são epilepsia, autismo, dor crônica e Parkinson.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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