Abrigos em Venâncio: o lar improvisado de quem precisou sair de casa

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Por Débora Kist, Juliana Bencke e Leonardo Pereira

Itens de higiene pessoal guardados em sacolas de supermercado. Toalhas de banho estendidas no meio da rede de proteção da quadra de esportes. Roupas empilhadas em cadeiras. Colchões sobre paletes e banheiros compartilhados. É um cenário de improviso nas últimas semanas, mas o possível nos três ginásios que viraram abrigos para moradores de Venâncio Aires atingidos pelas enchentes do rio Taquari e do arroio Castelhano.

Um desses locais é a Sercsate, no bairro Santa Tecla, que no fim da tarde dessa sexta-feira, 17, ainda abrigava 23 pessoas. O local chegou a ter quase 60 desabrigados e nos últimos dias a maioria conseguiu voltar para casa, alugar um novo espaço ou foi acolhida por parentes. Quem ainda está por lá é Maria Aparecida de Freitas da Silva, 36 anos, o filho Arthur, 3, e os pais dela, Nadir, 75 anos, e Pedrinho, 64. Eles são de Vila Mariante e moravam na rua Bepe Guimarães. Sim, moravam, porque não vão mais voltar e buscam uma casa para alugar na área urbana.

Maria Aparecida e o filho Arthur, são de Vila Mariante e seguem abrigados na Sercsate (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Em setembro de 2023, a água entrou cerca de 90 centímetros dentro da residência, mas agora cobriu tudo. “No sábado [27 de abril] eu tinha comprado um roupeiro novo. Paguei à vista, R$ 700, e poucos dias depois a água levou”, lamenta Maria, citando apenas um exemplo da destruição que a enchente representou para a localidade. “Para mim, ficou inabitável, sem condições. Para Mariante, a gente não volta”, afirma.

A família saiu a tempo, mas esse tempo foi suficiente apenas para a roupa do corpo, o celular, alguns documentos e a vira-lata Kika, o xodó de Arthur. Mas os móveis, eletrodomésticos, roupas, a certidão de nascimento de Arthur, quatro cachorros e um papagaio, se perderam com a água. “As histórias, as lembranças, as conquistas. Tudo foi embora.”

Para Nadir, que aos 75 anos vai precisar recomeçar, é preciso agradecer a quem doou roupas, comida e tempo, como os voluntários e servidores municipais. “Estão cuidando bem da gente.” A única ressalva da aposentada, que tem problema na coluna e usa muleta, é quando lembra do banheiro de casa, que ficava a quatro passos do quarto dela. Agora, ela precisa cruzar o ginásio (32 passos na contagem da repórter). “É mais complicado para mim, mas Deus me dá força.”

Pelo menos 600 pessoas foram atendidas nos locais

Quase 20 dias depois da abertura dos abrigos para acolher quem precisou sair de casa por conta das cheias do rio Taquari e do arroio Castelhano, em Venâncio Aires, 219 pessoas de diferentes faixas etárias permanecem nos locais, conforme contagem do fim da tarde de ontem. São 98 no ginásio de Linha Mangueirão, 98 na Comunidade Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Estância Nova, e 23 na Sercsate, no bairro Santa Tecla.

Segundo a secretária de Desenvolvimento Social e Habitação, Camilla Capelão, em torno de 600 passaram pelos abrigos e foram cadastradas, mas a estimativa é de que o número seja ainda maior. “Na quinta-feira, dia 2 de maio, havia um grande movimento de pessoas chegando ao mesmo tempo, após os resgates, para tomar banho, pegar uma roupa e se alimentar”, relembra. Ao longo do tempo, muitos puderam retornar para suas casas. A previsão é de que o abrigo da Sercsate seja o primeiro a encerrar as atividades.

“Jamais imaginava que seriam necessários três abrigos em Venâncio Aires e por tantos dias, mas enquanto for necessário eles serão mantidos. Buscamos proporcionar um ambiente acolhedor nesses lugares que são os lares dessas famílias neste momento.”
CAMILLA CAPELÃO – Secretária de Desenvolvimento Social e Habitação
(Foto: Juliana Bencke/Folha do Mate)

No entanto, Camilla observa que, nos últimos dias, também houve um movimento contrário, de pessoas indo para o abrigo. “Muitos estavam de forma improvisada em casas de parentes ou amigos, mas agora que sabem que as suas casas foram destruídas e não têm como voltar, vieram para o abrigo, para o encaminhamento do aluguel social.”

A secretária reforça a dedicação da equipe da pasta e da Câmara de Vereadores, além dos voluntários. “Desde o dia 30 de abril, toda nossa equipe de técnicos, Cargos em Comissão (CCs) e estagiários trabalha direto, sem folga, para dar assistência a essas pessoas. O apoio da Câmara de Vereadores também é fundamental, já que eles se responsabilizam pela parte da alimentação.”

A presidente do Legislativo de Venâncio, Claidir Kerkhoff Trindade, afirma que o auxílio continuará no que for preciso. “Antes de ser política, sou assistente social e me solidarizo muito com o que está acontecendo. Quem perdeu tudo, precisa de acolhimento. Por isso, colocamos a Câmara de Vereadores à disposição para ajudar nos abrigos. Cada vereador tem sua forma de ajudar e, além disso, tem funcionários diretamente envolvidos nos refeitórios.”

Rotina: como é o dia a dia no abrigo

O casal Paloma Trindade Pasch, de 32 anos, e Douglas Pacheco, 29, junto dos filhos Kelvin e Kettlyn, de 13 e 9 anos, foi resgatado da sede de Vila Mariante, na tarde de 2 de maio, sendo uma das últimas famílias a sair da localidade. Desde esse dia, a família, que perdeu a residência com a força das águas, está alocada na sede da Comunidade Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Estância Nova.

Douglas, Kettlyn, Paloma e Kelvin estão no abrigo de Estância Nova (Foto: Leonardo Pereira/Folha do Mate)

Conforme eles, a rotina começa às 7h, quando as luzes são acesas e até as 8h o café da manhã já está servido. Depois, entre as 12h e as 13h, é o horário do almoço. Na parte da tarde, um lanche é oferecido e, para finalizar, o jantar ocorre às 20h. Posteriormente, às 22h, as luzes são apagadas. “Somos tratados muito bem”, afirma Paloma.

A dificuldade, conforme Douglas, é o barulho e a quantidade de pessoas juntas. No entanto, isso também rende momentos engraçados, como as reclamações e as brincadeiras à noite. “Tem gente que grita ‘vai te deitar’, ‘de quem é esse ronco?’ e coisas parecidas. Dá para dar boas risadas”, brinca Douglas, que morou a vida toda em Vila Mariante e, em outras cheias, ficou abrigada no ginásio de Mangueirão.

Ainda, o casal destaca que as crianças estão felizes, até por não entender a gravidade da situação. Segundo Paloma, Kelvin e Kettlyn se divertem com a televisão instalada no ginásio e as apresentações musicais e de teatro que ocorrem às noites. “Só estamos esperando uma definição com relação à Escola Mariante”, conclui.

Futuro

Em meio ao ‘conforto’ proporcionado no abrigo, a família vive a incerteza quanto ao futuro. O objetivo é retornar para Vila Mariante e procurar uma forma de reconstruir. “A casinha que estávamos construindo ainda está lá. É buscar auxílio e finalizar ela para voltar para a vila”, diz Douglas.

Segundo Paloma, todos os parentes estão no abrigo também, o que traz um conforto, por todos estarem salvos, mas também é dificultador para analisar o futuro. “Acaba que estamos todos esperando por um lugar.” Ainda que a meta seja voltar para Mariante – local onde eles também trabalham –, a família afirma que não recusaria a oportunidade se pudesse ser realocada em uma região mais segura. “Vamos esperar”, acrescenta Douglas.

Transporte escolar

• Segundo o secretário de Educação de Venâncio, Émerson Henrique, atualmente são 12 crianças da rede municipal que seguem nos abrigos. São quatro alunos no ginásio de Mangueirão – três sendo levados até a Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Coronel Thomaz Pereira, em Linha Taquari Mirim, e um para classe especial na Escola Estadual Monte das Tabocas, no Centro.

• No ginásio da Comunidade Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Estância Nova, também são quatro crianças, sendo três delas que têm transporte até a Emef Bento Gonçalves, em Linha Estância São José, e uma levada até a Apae.

• Quanto às quatro crianças da rede municipal que estão abrigadas na Sercsate, uma tem transporte para a Apae e outras três, que estudavam em Taquari Mirim, foram realocadas para escolas próximas do abrigo. Dois com vaga na Escola Estadual Leontina, no bairro Santa Tecla, e um para a Emef Benno Breunig, no São Francisco Xavier.

Estrutura e manutenção

Os locais utilizados para os abrigos foram cedidos pelas comunidades e associações que gerenciam os ginásios. De acordo com a vice-prefeita Izaura Landim, embora nenhuma das entidades tenha solicitado, um valor será repassado para compensar custos de água e energia elétrica.

“São diversos banhos por dia e isso gera um custo, além da impossibilidade das comunidades alugarem os horários para atividades esportivas, uma forma que tinham para se manter”, comenta a vice-prefeita. “Temos uma reserva técnica de um valor arrecadado por uma vaquinha, que poderá ser utilizado nisso.”

Colchões, travesseiros, cobertores e roupas foram disponibilizados para as pessoas. Quando uma família sai do abrigo, recebe também kit de limpeza e alimentos.

Máquina de lavar e secar estão à disposição para que as pessoas abrigadas possam lavar as roupas. Com relação às refeições, há café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, além de água quente disponível para o chimarrão.

    

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