Durante muito tempo, Eliane e Émerson Turcatto amaram Lucas. Amaram, cuidaram e educaram, como qualquer pai e mãe deve fazer por um filho. Agora, eles amam uma filha. Mas aqui não houve transferência de sentimentos, porque o alvo desse amor é a mesma criança que o casal viu nascer e crescer. O nome dela é Antônia, tem 17 anos, e foi às vésperas do Dia da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro, que a jovem venâncio-airense comemorou a conquista do nome social na carteira de identidade.
As primeiras conversas sobre não se reconhecer ou não se identificar como gênero masculino aconteceram quando Antônia tinha cerca de 12 anos. “Sempre tivemos uma relação aberta e respeitosa. Naquele momento, já entendemos essa situação como algo normal, porque qualquer adolescente vai passar por uma transição. Vai ter dúvidas, vai fazer descobertas, vai se conhecendo. Isso é normal de qualquer adolescente. Então para nós, ouvir que nosso filho era gay, estava tudo bem”, comenta Eliane Turcatto, 46 anos, que é profissional de Educação Física.
Mas foi em 2021 que a conversa mudou de ‘patamar’. “Eu sou trans e quero me chamar Antônia”, foi a frase ouvida pelos pais. “Ali, a situação mudou e nós começamos a nos preocupar ainda mais. Não pela transição em si, porque sempre devemos acolher e respeitar nossos filhos. Mas temos medo do preconceito e do que tem da porta de casa para fora: a não aceitação e a violência”, avalia Émerson, 42 anos, que é industriário.
Eliane revela que, dias depois, comentou com a filha sobre o quanto o preconceito poderia lhe prejudicar no futuro, inclusive com menos oportunidades. A resposta da jovem para a mãe foi categórica. “Ela me disse: ‘prefiro que todas as portas do mundo fechem para mim, do que eu precisar ser quem não sou’. Ali entendi que isso era muito importante e necessário para ela.”
O nome
Segundo informações disponibilizadas em cartilha no site da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, pessoas trans (transgêneros, homens ou mulheres trans, transexuais ou travestis) são aquelas cuja identidade de gênero vai de encontro à atribuída na certidão de nascimento, o que se reflete, na maior parte dos casos, na inadequação do prenome e do gênero constante da documentação civil. Além disso, a identidade trans pode ou não envolver a necessidade de mudanças corporais.
O nome Antônia foi ela mesma quem escolheu, por se identificar e se sentir bem. Curiosamente, acabou sendo uma homenagem à mãe, que tinha o nome em mente quando estava grávida. A jovem já vinha sendo chamada pelo nome e pronome femininos nos últimos dois anos por toda família, mas também desejava oficializá-lo no papel.
Assim, no início de janeiro, Antônia foi acompanhada da mãe até o Venâncio Empreendedor, onde está localizado o Instituto-Geral de Perícias (IGP), responsável pelo encaminhamento da carteira de identidade. “Ainda é algo muito novo e sempre achei que precisaria esperar até os 18 anos e fazer um pedido judicial. Mas é muito simples. Fomos muito bem acolhidas, o pessoal em Venâncio está muito preparado e informado. Foi tudo muito tranquilo para fazer”, destaca Eliane.
Em abril, quando completar 18 anos, Antônia quer ir até o Cartório de Registro Civil para adequar o prenome e o gênero no registro de nascimento. Quanto ao CPF e ao cartão do SUS, os documentos também serão adequados. No Título de Eleitor, o nome social dela já está incluído.
Ambiente escolar
Uma resolução de janeiro de 2018, publicada pelo Conselho Nacional de Educação, dispõe sobre o uso de nome social nos registros escolares. Maiores de 18 anos podem solicitar durante a matrícula ou a qualquer momento, sem a necessidade de mediação. Já menores de idade também podem, mas deve ser por meio de seus representantes legais, em conformidade com o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
No caso de Antônia, o nome está na matrícula escolar desde 2022. A jovem vai para o 3º do curso Técnico em Informática integrado ao Ensino Médio do IFSul. No seu círculo de amizade, entre os familiares e no ambiente escolar, ela conta que todos lhe chamam pelo nome social e pelo pronome feminino. “É tranquilo. Só ainda fico constrangida algumas vezes em público, porque muita gente não sabe ou desconhece.”
Nome social
• Conforme a cartilha da Defensoria Pública gaúcha, o nome social corresponde ao nome pelo qual as pessoas travestis e transexuais identificam-se e preferem ser identificadas, já que sua documentação civil não é adequada à identidade e expressão de gênero que têm.
• Com a adoção do novo modelo de Carteira de Identidade (Decreto nº 9.278/2018), é possível, mediante requerimento, a inclusão do nome social na Carteira de Identidade. Tanto a Carteira de Nome Social quanto a Carteira de Identidade são confeccionadas pelo Instituto-Geral de Perícias.
• Para que a Carteira de Nome Social seja feita, devem ser apresentados alguns documentos, que são os mesmos da Carteira de Identidade: CPF, Certidão de Nascimento ou de Casamento, dependendo do estado civil.
Nome social no CPF, Cartão do SUS e Título Eleitoral
A fim de atender ao Decreto nº 8.727/2016, a Receita Federal, conforme previsão da Instrução Normativa nº 1718/2017, possibilitou a inclusão ou exclusão de nome social de pessoa travesti ou transexual no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF).
A pessoa interessada deve dirigir-se a uma unidade de atendimento da Receita Federal e requerer a inclusão do nome social no CPF. A inclusão será realizada de imediato e o nome social passará a constar no CPF acompanhado do nome civil.
A Portaria nº 1.820/2019 do Ministério da Saúde assegurou a possibilidade de inclusão do nome social no Cartão Nacional de Saúde do SUS. Já a Resolução nº 23.562/2018 do Tribunal Superior Eleitoral possibilitou a inclusão do nome social no Título Eleitoral.
O nome civil não constará do título eleitoral em que se fizer uso do nome social. Para a inclusão do nome social no título, basta a autodeclaração, não sendo necessária nenhuma outra prova documental. Menores de 18 anos também podem solicitar a inclusão do nome social no título.
Prenome e Gênero no Registro Civil
• Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou possível a adequação do prenome e do gênero no Registro de Nascimento de forma administrativa, ou seja, sem a necessidade de ação judicial.
• Por ser tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, a alteração, seja por via administrativa ou judicial, não depende de qualquer procedimento cirúrgico, tratamentos hormonais ou patologizantes, ou, ainda, laudo de terceiros.
• O processo transexualizador, mediante terapias hormonais ou cirurgia de transgenitalização, não é necessário para o reconhecimento da identidade de gênero autopercebida na documentação civil.
• No caso de Antônia, ela já conversou com a família é quer fazer o processo de redesignação, iniciando pelo tratamento hormonal. As primeiras consultas médicas já foram realizadas.
Planos para o futuro e a importância de se falar sobre a diversidade
Antônia quer trabalhar como programadora na área de informática, mas é para a música que ela dedica boa parte do tempo e dos estudos, também pensando no futuro. Apaixonada por música desde a infância, a jovem toca guitarra, violão e piano. “Meu desejo também é trabalhar com música, fazer uma faculdade nessa área. Gosto e estudo muito.” Eclética, costuma praticar o metal na guitarra, mas do teclado sai o som predileto: música clássica. Entre as partituras, composições já centenárias de Johann Sebastian Bach e Frédéric Chopin.
Com o processo de transição iniciado, a jovem e os pais sabem que a história deles pode e já vem ajudando outras famílias. “Muita gente já me procurou, vem conversar, mas ainda como algo muito ‘escondido’. Espero que a nossa experiência contribua de alguma forma, para que outras famílias já tenham condições de encontrar um caminho muito mais tranquilo”, considera Eliane, que integra a ONG Mães pela Diversidade. Com o intuito de falar sobre as questões trans e dividir informações, Eliane também mantém o perfil @amor.incondicional_3129, no Instagram.
“Seria muito mais fácil se todos nos enxergássemos apenas como seres humanos. Homem, mulher, trans, não importa. Isso não diminui a capacidade de ninguém, nem determina o caráter da pessoa.”
ÉMERSON TURCATTO – Pai da Antônia
“Como condicionar o amor por um filho ou filha? Esse amor é incondicional e, no nosso caso, só aumentou. A Antônia é incrível e é nosso presente de Deus.”
ELIANE TURCATTO – Mãe da Antônia