Barriga solidária: o sonho da paternidade e o ato generoso de uma amiga

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Casal de Venâncio Aires espera pelo primeiro filho, que está sendo gerado através da barriga solidária de uma amiga.

A história a seguir caberia perfeitamente num folhetim de ‘novela das 9’, com um roteiro carregado de sonhos, medos, espera, suspense, clímax e muita emoção. Talvez os mais velhos vão lembrar logo de ‘Barriga de aluguel’, sucesso escrito por Glória Perez e que foi ao ar na TV Globo em 1990. Na época era um tema novo e tratou sobre os limites éticos da inseminação artificial. Recentemente, em 2020, a novela ‘Amor de mãe’ pautou novamente: o filho de um casal gerado por outra pessoa.

Mas o que a Folha do Mate vai contar não tem nada de ficção, nem é coisa de cidade grande do centro do país. É a mais pura realidade e está acontecendo em Venâncio Aires. É a história do Édson e do Júlio, que vão realizar o sonho da paternidade através da generosidade da Sandriele, uma amiga que decidiu ‘doar’ o útero para gerar o filho deles.

A vontade de ser pai

O advogado Édson Miguel de Barros Avelar, 39 anos, já é pai. Tem uma menina de 14 anos, a Isadora, fruto de um relacionamento anterior com uma mulher. Mas desde que começou a namorar o professor Júlio Mateus de Melo Nascimento, 36, em 2021, o assunto paternidade voltou à pauta na vida dele. Isso porque o companheiro declarou a vontade de também viver essa experiência.

Por ser um casal de dois homens, a chegada de uma criança dependeria de algumas possibilidades. Uma delas foi a adoção, mas como se trata de um processo geralmente demorado no Brasil, a ideia não evoluiu. Com tanto amor dentro deles, prontos para dá-lo a uma criança, havia ‘pressa’ em externar esse sentimento. “E se a gente tivesse uma barriga solidária?”, comentou Júlio, quando ele e o companheiro começaram a intensificar as conversas sobre um filho.

Os dois já acompanhavam alguns perfis em redes sociais de outros casais homoafetivos Brasil afora, portanto sabiam que seria possível. Também chamada de útero de substituição, é uma opção da medicina reprodutiva para mulheres que não podem gerar um bebê no próprio ventre ou para casais homoafetivos que querem ter um filho. Mas a ‘barriga’ precisava ser encontrada. Quis o destino que ela estivesse bem perto e que surgisse numa conversa informal entre amigos. “Tocamos nesse assunto sobre filhos e aí ela comentou que até já tinha se voluntariado para ser barriga solidária para outra pessoa. Ficamos com isso na cabeça, até que falamos do nosso desejo e ela se voluntariou”, conta Júlio.

Casal mora em Venâncio Aires e está junto há mais de três anos (Foto: Gabriel Canto)

Preparação para a barriga solidária

Édson é advogado e Júlio formado em Biologia, portanto já tinham conhecimento jurídico e científico sobre o assunto. Claro que também procuraram entender todos os aspectos legais sobre o procedimento e o que precisavam fazer.

Portanto, pesquisaram muito e já sabiam que, no Brasil, a barriga solidária é permitida e orientada por resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a qual determina normas éticas para técnicas de reprodução humana assistida. Para isso, a mulher que vai ceder o útero precisa ter, ao menos, um filho e ser parente de até quarto grau dos pais. Se não tiver esse parentesco, depende de autorização do CFM. A amiga que é a barriga solidária de Édson e Júlio já é mãe, mas não parente, ou seja, o casal precisou da aprovação.

Embora sustentados por muitas informações, como no próprio cartório de registros, eles também tiveram toda assessoria no Centro de Reprodução Humana, no Hospital Bruno Born, em Lajeado, onde o procedimento foi feito.

Barriga solidária não é barriga de aluguel

No Brasil, a barriga solidária também é popularmente chamada de barriga de aluguel. No entanto, é proibido qualquer tipo de pagamento à mulher que vai gerar a criança. Deve acontecer de forma totalmente altruísta, sem nenhuma recompensa financeira.

Fertilização in vitro

A gestação em barriga solidária ocorre por reprodução assistida e o principal método é a fertilização in vitro (FIV). De acordo com a Associação Brasileira de Reprodução Humana, o procedimento realiza o encontro do óvulo com o espermatozoide (a fertilização) em laboratório, formando embriões que serão cultivados e transferidos ao útero da mulher.

São necessários os óvulos e espermatozoides do casal para formar o embrião. Mas, como esta história envolve dois pais, o gameta feminino veio através de um banco de doação, já que não podem ser usados óvulos da mulher que será a barriga solidária. A doação anônima de óvulos não pode ter fins comerciais e o anonimato protege a identidade do casal receptor e da doadora.

“Como eu já tenho a Isadora, minha filha biológica, pensei no Júlio, para que nosso filho tivesse a carga genética dele, por isso o espermatozoide é dele”, revela Édson. Já o óvulo é de doadora. “Não exigimos nenhuma característica. Só queríamos um óvulo, então a própria clínica que procurou algum com características parecidas com a gente”, explica Júlio.

Desde que começou todo o processo de idealizar um filho por meio de uma barriga solidária, entre conversas, consultas, exames, até a aprovação do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), foi cerca de um ano e dois meses. A implementação de um único embrião ocorreu dia 13 de dezembro de 2024 e a gravidez aconteceu na primeira tentativa. Com isso, o filho ou filha de Édson e Júlio tem previsão de nascer em 31 de agosto.

A fertilização in vitro está devidamente registrada e, tanto o casal quanto a amiga, assinaram termos de responsabilidade. Entre eles, termos de compromisso esclarecendo sobre a filiação da criança. Da mesma forma, os dois são os responsáveis por dar toda a assistência necessária durante a gestação, seja com acompanhamento médico ou psicológico. Também com gastos de roupa, medicação e o que ela precisar enquanto gestante e após o parto, no puerpério.

A doação da Sandriele, a barriga solidária

Gestação de substituição e cessão temporária do útero também são termos usados para a barriga solidária. Mas, para Sandriele da Silva Soares, 36 anos, cabe mais um sinônimo: doação. A profissional de Educação Física é a amiga que se voluntariou a gestar o filho dos amigos Édson e Júlio. “Por que não ser?”, responde ela, ao ser questionada sobre o porquê de aceitar essa responsabilidade. “Não é simples, mas também não é difícil. Entendo esse gesto como uma doação, até porque sou doadora de órgãos, então, para mim, foi uma decisão natural, que eu já tinha cogitado numa situação anterior”, destaca.

No dia que Sandriele fez uma surpresa para o casal, com o teste positivo de gravidez (Foto: Arquivo pessoal)

Sandriele é uma mulher saudável, que conhece o próprio corpo e tem a questão da maternidade bem resolvida. Maternidade, nesse caso, não se refere à gestação de agora, mas sim, às filhas de 17 e 8 anos. O bebê que está crescendo no útero dela não será filho dela. Segundo Júlio, embora se tenha troca sanguínea e de fluidos, a criança não tem a carga genética de Sandriele, ou seja, se fizer um teste de DNA, não haverá identificação dela como mãe. “Estou muito consciente disso, que esse bebê não é meu filho. Estou apenas doando meu útero, portanto não sou a mãe. Mãe, eu sou das minhas duas filhas. Nunca idealizei um terceiro”, afirma a amiga.

Apoio da família

Sandriele conta que houve a compreensão das filhas, afinal o bebê não será irmão delas. “Nós conversamos muito e estou tranquila, porque se elas aceitam e entendem, está tudo certo.” Além disso, a profissional de Educação Física diz que a questão também não gerou desconforto em relação ao noivo, com quem está há três anos. “Ele respeita minhas decisões e vice-versa. Também foi algo muito tranquilo para entendimento entre nós”, destacou.

Segura e feliz com a oportunidade de fazer isso pelos amigos, ela apenas observa o quanto essa gestação talvez provoque algumas mudanças em processos, como o próprio atendimento hospitalar padrão. O objetivo é que o bebê nasça no Hospital São Sebastião Mártir (HSSM). “Nos registros, nos documentos preenchidos, na identificação da pulseira do bebê, ainda não sabemos como vai ser. Porque não sou a mãe, o bebê vai ter dois pais.”

Com o médico Marcos Höher, no Centro de Reprodução Humana, no Hospital Bruno Born, em Lajeado (Foto: Arquivo pessoal)

São dois pais

Ainda que não seja algo novo, já que há mais casos no Rio Grande do Sul e outros estados, Júlio e Édson acreditam que sejam um dos primeiros casais homoafetivos com barriga solidária na região dos Vales. “Sabemos que ainda é incomum e já tem gerado muita curiosidade. Pessoas perguntam sobre como se deu o processo da fertilização ou apenas surpresas com a coragem da Sandri. Talvez as pessoas vão dizer ‘como assim, essa criança não tem mãe?’, mas ela terá dois pais.”

Para dividir a alegria da paternidade e ajudar outras pessoas que pensam em tentar o mesmo método, Édson e Júlio criaram um perfil no Instagram @sao2pais. Nele, têm dividido fotos e relatos sobre a jornada. Neste domingo, 16, completam-se 12 semanas de gestação. Para o dia 1º de março, a família organiza um ‘Chá Revelação’, quando então descobrirão se será menino ou menina.

Dia 1º de março será feito um ‘Chá Revelação’ para saber se é menino ou menina (Foto: Gabriel Canto)

“Ter um filho é o sonho de muitos casais. Para nós, o processo foi lento e exigiu muito. Mas tudo isso está sendo recompensado agora.”
JÚLIO NASCIMENTO – Professor e pai de ‘primeira viagem’

“Eu já vivo essa experiência com minha filha e ver o Júlio tendo essa oportunidade, agora com nosso filho, é uma grande alegria.”
ÉDSON AVELAR – Advogado e pai de ‘segunda viagem’

“O nome já diz, é barriga solidária. Se eu posso ser, por que não seria? Me sinto feliz por doar meu útero para gerar o filho dos meus amigos.”
SANDRIELE SOARES – Profissional de Educação Física e barriga solidária

Vivendo uma nova experiência

Essa reportagem foi uma grande experiência, mas também um grande desafio para mim. Como se trata de um assunto ainda incomum e pouco pautado, ainda mais considerando uma cidade de interior como Venâncio Aires, onde a velocidade e o impacto das ‘novidades’ são diferentes, confesso que minha ignorância em relação ao assunto era grande. Falta de conhecimento em relação à legislação, às resoluções médicas e ao procedimento em si, mas Édson, Júlio e Sandriele me explicaram tudo, pacientemente. E também me mostraram toda maturidade, compreensão e convicção para essa gravidez numa barriga solidária. Édson e Júlio, enquanto casal, sonham com a paternidade. Já Sandriele se prontificou a ajudar a realizar o sonho dos amigos, com um ato generoso que talvez ainda é difícil para muitos entenderem ou naturalizarem.

Também foi uma entrevista pessoalmente desafiadora, afinal, como mulher e mãe, tive muita curiosidade, principalmente em relação à Sandriele e o envolvimento dela durante a gestação e no pós-parto, com questões que ainda serão amadurecidas e definidas quando chegar a hora. Mas, no fim das contas, essa história não é apenas o relato de uma jornada praticamente pioneira na região e com informações técnicas que podem ajudar outros casais. É uma história de amor, de sonho, de amizade, de generosidade e de respeito. E é tudo isso que vai possibilitar que esse casal viva uma das maiores e melhores experiências de uma pessoa: ter um filho. Obrigada, Júlio, Édson e Sandriele por confiarem sua história a mim e à Folha do Mate.

Débora Kist – jornalista



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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