Caso Pronaf: à espera de indenizações e respostas

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A casa já vinha com goteiras há mais tempo, mas foi em 2020 que Otto* e a esposa entenderam que, além de trocar o telhado, toda a residência merecia uma reforma geral. Mas o dinheiro não era suficiente e decidiram vender dois hectares das terras em Linha Marechal Floriano Baixo para realizar a obra. A venda aconteceu rapidamente, a compradora depositou o dinheiro e faltava apenas assinar a papelada no tabelionato. “O CPF não está passando na Receita”, alertou a funcionária.

Surpreso com a informação, Otto não sabia o que pensar. “Como eu posso estar com o nome sujo, se não tenho dívida?”, questionou o agricultor. Foi a partir deste momento que começaram as noites em claro e uma verdadeira correria para entender o que estava acontecendo.

No dia seguinte, Otto foi até o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Venâncio Aires para ver se lá alguém poderia ajudá-lo. “Tinha seis na minha frente tentando decifrar, até que uma moça disse. ‘Já sei, isso tem a ver com o Banco do Brasil em Santa Cruz’.”
Outra surpresa para o agricultor, já que ele havia encerrado sua conta no local em 2016, quatro anos antes. Na mesma tarde, Otto seguiu até Santa Cruz. “’Tô devendo alguma coisa?’, eu perguntei, e o rapaz do banco disse que não, ainda me mostrou a tela, estava tudo verde. ‘Mas então por que meu CPF está trancado por causa de vocês?’, daí foi ele ficou surpreso.”

O funcionário do Banco do Brasil realizou nova busca e apontou: tinha outro contrato no nome de Otto. “Tinha uma dívida de quase R$ 6 mil no meu nome, porque apareceu que eu tinha um Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] para comprar vacas. Mas eu nunca na minha vida peguei empréstimo para comprar vaca!”

No dia seguinte, o agricultor voltou à agência e lhe mostraram uma pilha de papéis. “Tinha uma assinatura parecida com a minha, de um contrato de 2009 que não sei de onde tiraram. Naquele ano eu fiz só um Pronaf e não dois.”

*O nome Otto é fictício, em respeito à identidade do agricultor e para não interferir na ação judicial, já que a maior parte dos processos é sigilosa e está concentrada nas varas cíveis de Santa Cruz.

O que aconteceu

O contrato não reconhecido pela vítima teria sido firmado em 2009, mesmo ano que Otto fez um Pronaf de R$ 13 mil para reformas nos galpões. Este, ele encaminhou através do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) de Santa Cruz, que era credenciado pelo Banco do Brasil para intermediar negociações.

Como estava determinado, apresentou as notas fiscais de compras de materiais e da mão de obra (porque é isso que viabiliza a liberação do recurso). Depois do período de carência, pagou a última parcela em 2016, quando, então, encerrou a conta.

Otto lembra que, tempo antes, ficou sabendo de moradores de Alto Paredão, no interior de Santa Cruz, que alegavam ter sido lesados por contratos Pronaf. “Na época até pensei: capaz, são eles que não querem pagar a dívida e querem agora dizer que foram prejudicados. Mas se eu soubesse que eu mesmo já estava sendo prejudicado…”

O agricultor também questiona o tempo sem informações. “Se eu tinha esse outro contrato desde 2009, como nunca fiquei sabendo? A única dívida que tinha, eu paguei. E se não fosse essa venda de terra, 11 anos depois, eu e minha mulher íamos ficar com o nome sujo, sem saber de nada, e com uma dívida que nunca fizemos.”

“Penso nisso todos os dias, me sinto traído. Por que fizeram isso comigo e com as outras pessoas? É uma angústia muito grande e a gente ainda espera uma resposta.”

Agricultor venâncio-airense prejudicado por um empréstimo que não fez

Possíveis vítimas ganham mais tempo

O caso de Otto está dentro de uma estimativa de 5,7 mil pequenos produtores de Santa Cruz, Venâncio e Sinimbu que teriam sido lesados numa fraude que envolveu assinaturas em papéis em branco, notas falsas e dinheiro canalizado para outras contas, entre 2007 e 2013. Isso veio à tona em 2014, através da Operação Colono, levantada pela Polícia Federal no Vale do Rio Pardo.

Desde então, houve denúncias, ingresso de ações (apenas 10% teriam procurado a Justiça) e uma mudança importante na prescrição. Nesse caso, ela aconteceu em agosto passado, confirmando uma decisão do Tribunal de Justiça de outubro de 2019. É a partir desta data que passou a ser contado o prazo legal de cinco anos, ou seja, embora a investigação federal ficou conhecida em 2014, a prescrição passou a contar de 2019.

“Em agosto houve a unificação que faltava para jogar essa prescrição para 2024. Assim se abre a possibilidade para o agricultor buscar informações e ter tempo hábil para isso”, destacou o advogado de Santa Cruz, Ricardo Hermany que, ao lado do irmão, Henrique, representam cerca de 100 produtores que já tiveram as situações identificadas, com auxílio de assistência contábil.

A unificação que Ricardo Hermany se refere é a decisão da 11ª e 12ª Comarcas Cíveis, responsáveis pelas questões bancárias dentro do TJ-RS, que entenderam que a prescrição seria a partir do momento em que foi ajuizada a ação criminal contra os envolvidos na fraude. Isso aconteceu em outubro de 2019, quando 14 pessoas foram denunciadas à Justiça Federal.

“O Tribunal evitou a fraude perfeita, porque em 2014 muitos agricultores nem sabiam que poderiam estar envolvidos e o prazo teria ultrapassado. Então quem tiver dúvida, em Venâncio, converse com um advogado de sua confiança e a subseção local da OAB pode indicar”, sugeriu.

A mudança na prescrição acabou ajudando no processo de Otto, já que ele só descobriu que foi vítima em 2020 – 11 anos depois de ter assinado um suposto contrato e o qual ele não reconhece.

Advogados de Santa Cruz, Ricardo e Henrique Hermany, representam cerca de 100 produtores (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Indenizações

Os processos contra o Banco do Brasil dizem respeito às ações cíveis. Nesses casos, aos agricultores que procuraram a Justiça, os advogados têm trabalhado, geralmente, sobre três pontos: a anulação dos contratos, a restituição dos valores indevidamente movimentados (com correção inflacionária mais juros) e indenização por dano moral.

“Independente de culpa, o banco tem responsabilidade objetiva, porque há casos de saques na ‘boca’ do caixa ou de valores altos sem previsão. Houve movimentações estranhas, às vezes no mesmo dia, e o banco não tem conseguido provar que isso era feito pelos próprios agricultores”, explicou Henrique Hermany.

No entanto, o advogado pondera que as situações envolveram duas agências, portanto, problemas pontuais. “São fatos isolados. O Pronaf continua sendo um bom programa, o banco é uma entidade séria, mas que teve problemas pontuais. O próprio banco, aliás, exonerou servidores depois de sindicância interna e o MPA foi descredenciado para intermediar negociações.”

A relação de confiança e credibilidade também é ponto a ser considerado. “Quando que o agricultor imaginaria que o caso envolveria um banco com tamanha tradição? E como o que se mais preza é o próprio nome, muitos produtores não querem se envolver. Como se diz, preferem pagar para não se incomodar”, destacou Henrique Hermany.

A frase mencionada por Henrique Hermany também foi lembrada pelo advogado de Venâncio Aires, Paulo Mathias Ferreira. Ele conta que cerca de 10 agricultores, moradores de Linha Isabel, Linha Hansel, Vila Arlindo e até Passo do Sobrado, lhe procuraram nos últimos anos.

Também movendo ações contra o banco, Ferreira revela que em 80% dos casos a Justiça deu parecer favorável, com indenizações. Mas também houve quem preferiu um acordo. “Naquele anseio de ter logo seu nome limpo de novo, o produtor aceitou pagar para não se incomodar.” Nesse caso, o agricultor aceitou baixar uma dívida de R$ 115 mil para R$ 15 mil. “Ele tinha um dinheiro na conta e, para limpar logo o nome, disse que aceitaria pagar menos.”

Ação criminal

Se por um lado as ações cíveis avançam, ainda deve demorar a ação penal do Ministério Público Federal (MPF) contra 14 acusados pela fraude – pessoas ligadas à Associação dos Pequenos Agricultores Camponeses (Aspac), braço do MPA, em conluio com servidores do Banco do Brasil.

A 7ª Vara Federal de Porto Alegre já recebeu a denúncia e todos os réus apresentaram defesa preliminar. Cabe ao juiz Guilherme Beltrami decidir se absolve sumariamente (de forma rápida) ou mantém a denúncia e dá início às audiências.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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