As festas de fim de ano, para a maioria das famílias, costumam ser momentos de casa cheia. Para muitos, também são os únicos encontros onde conseguem reunir todos e, por isso, se tornam ainda mais especiais. Mesmo para quem passa a maior parte do ano longe, chegar no Natal e no Ano-Novo tendo um lugar para voltar, é sempre bom. Mas, para uma família do interior de Venâncio Aires, 2022 encerra diferente: o mais importante não é ter para ‘onde’, mas sim para ‘quem’ voltar.
Foi na madrugada do dia 9 de setembro que os Keller viram mais de 50 anos de história se transformar em cinzas e escombros. Um incêndio destruiu a casa deles, o armazém e o salão da comunidade, que ficava literalmente na ponta de Linha Silva Tavares (a 40 quilômetros do centro da cidade), bem no meio das localidades de Leonor e Saraiva.
Esse mesmo salão, que por décadas foi palco de festas de casamento, batizados, 1º Comunhão, bailes e reuniões da sociedade, também era o ‘ninho’ da família, que todo 25 de dezembro se reunia ‘sob as asas’ da matriarca, Erminda Keller, 93 anos. Era para esse lugar que podiam voltar os 10 filhos, 22 netos, 30 bisnetos e quatro trinetos, ‘junção’ que não aconteceu em 2022.
Além da nonagenária, estavam na casa no dia do incêndio o filho dela, Darci, e a nora, Elaine, ambos com 63 anos. “Claro que não foi legal não ter todos, mas, ao mesmo tempo, estamos aliviados, porque poderia ter sido pior. Hoje não temos para onde voltar, mas temos para quem voltar. Talvez só nos restaria ir no cemitério”, avalia Liviane Keller, 43 anos.
A professora, filha de Darci, atendeu à reportagem e relatou como tem sido a rotina dos pais e da avó nos últimos meses, assim como dos objetivos para 2023. Conhecidos na região serrana, a situação fatídica de Erminda, Darci e Elaine mobilizou muita gente, entre familiares, vizinhos e até desconhecidos. As doações foram chegando rapidamente e, como eles não queriam deixar o ‘seu chão’, surgiu a oportunidade de ocupar o prédio desativado da escola Presidente Vargas, no morro em frente ao antigo salão.
É na sala de aula da antiga escolinha, que virou três cômodos improvisados com divisórias de madeira e mobiliados graças às doações, que os Keller vêm, aos poucos, formando novamente um lar. Há algumas adaptações, claro, caso do fogão a lenha, que está junto à sala, já que a cozinha é um pequeno espaço onde estava o encanamento original da escola. As refeições são feitas numa área anexa, onde coube a mesa. “É na base da improvisação, mas isso não tem importância. Porque tudo chegou de doação e recebemos tudo com muito carinho. Tem até cama para as visitas!”

O Natal
Liviane conta que até a antevéspera do Natal, não se sabia bem como proceder. Até se cogitou que cada familiar levasse um prato pronto e cadeiras, mas a previsão indicava chuva no domingo e a escola não seria suficiente para abrigar todos.
Mas, além disso, havia o fator emocional e que nos últimos dias vinha mexendo com Erminda. “Ela estava muito agitada. Natal sempre foi sinônimo de junção e foi uma decisão muito difícil não fazer. Mas logo todos os filhos entenderam que seria o melhor.”
Assim, na noite do dia 24, houve uma ceia com Erminda, Darci, Elaine, Liviane e o filho (Héron), além de um casal de vizinhos, Equídio e Leocádia Haupt, que retribuíram com o almoço de domingo. Durante o fim de semana, também houve visitas breves de familiares e vizinhos.
Rotina
Durante quase um mês, os Keller foram acolhidos pela afilhada de Darci, Sandra, e o marido dela, Rogério Böhm, que moram perto. A mudança para a antiga escola ocorreu em outubro e, desde então, o local foi se transformando num lar. Boa parte dos dias é dedicada na atenção com Erminda que, pela idade avançada, requer ajuda com banho, trocas de roupa, alimentação e medicamentos.

Mas Darci e Elaine, que são aposentados, também se ocupam cortando lenha (parte deve ser usada na construção da casa nova) e em abrir pequenos pedaços de terra para plantar. Do lado da escola, por exemplo, há uma vasta horta, com alface, morango, vagem, brócolis, cenoura e temperos.
Elaine, que na localidade sempre foi uma referência para informações e tarefas (central telefônica, recolhia as contas de luz de toda a comunidade para pagar, aplicava injeções, verificava pressão arterial e até serviços de banco), também era requisitada como doceira.
Por isso, nesse fim de ano, aceitou a encomenda de uma torta. Mesmo sem os itens que estava acostumada (a batedeira planetária e os três fornos elétricos queimaram no incêndio), ela nunca soube negar um pedido. O merengue não deu ‘o ponto’ desejado, mas fazer a torta com utensílios doados por tanta gente amiga, lhe deixou igualmente feliz e realizada.
5 Também no novo lar, o cachorro, Roque, tem seu cantinho. Ele foi adotado pelos Keller, depois de ser abandonado. Além dele, os gatos entenderam que lá era a nova casa. Depois do incêndio, demoraram dois dias para aparecer e, por muito tempo, vagaram sobre os escombros, atrás da casa que não existia mais. O fogo acabou matando algumas galinhas, o papagaio e o periquito da família.
“Por pior que tenha acontecido, que bom que podemos festejar nesse fim de ano. Há motivos para comemorar, porque todos estão vivos e com saúde.”
LIVIANE CRISTINA KELLER – Professora, filha do Darci e neta da Erminda
Onde a natureza já se regenera, uma nova casa será construída
Nos últimos meses, ao olhar para o outro lado daquela curva de estrada num dos extremos de Venâncio, os Keller observam a passagem do tempo, que já impacta sobre os escombros que ficaram do salão, da residência e do armazém que mantinham.

Aos poucos, a natureza vai mostrando sua capacidade de readaptação e muitas plantas nasceram ou refloresceram. “A vida segue e, apesar de tudo que aconteceu, que possamos ser como a natureza, com seu poder de regeneração. Acho que isso também está se fortificando nos meus pais, que cada vez mais falam sobre construir a casa nova”, comenta Liviane.
As décadas morando naquele local e toda a história construída, foram determinantes para a permanência e o novo lar ser erguido no mesmo local onde Erminda e Augusto (1919-2006) se estabeleceram, há mais de 70 anos.
A matriarca, aliás, que por dias depois do incêndio pedia pela sua cama, seus chinelos e sua xícara, ainda fala muito em ‘ir para casa’ e segue com uma preocupação: “Onde vai ser meu velório?”, questionamento mais do que natural, afinal, em todos esses anos, o Salão Keller reuniu muitas pessoas, seja nos momentos alegres, seja nos momentos tristes. Ele era a referência para os encontros, mas também para o adeus.
Para construir a nova residência, seguem à venda números de uma ação entre amigos, formatada toda com doações. O sorteio será em março e, para quem quiser contribuir, pode contatar pelos telefones 997043153 e 998248296. Também é possível ajudar via Pix. A chave é o CPF 29127360059, em nome de Darci Keller, na Sicredi.
Réveillon
• Tradicionalmente, a virada de ano é feita por um rodízio na vizinhança. Em 2022, seria nos Keller, mas outro casal ‘assumirá’ a vez deles e a expectativa é de que, na virada para 2024, Darci, Elaine e Erminda, recebam os amigos na casa nova.
Relembre
O Salão Keller foi construído na década de 1960, inicialmente para ser um lugar de reuniões e encontros da escola e dos moradores. Depois, virou local para festas. Ao lado direito, havia uma casa de madeira, desabitada, mas que foi residência dos Keller por muitos anos. É nela que as chamas começaram, após um curto circuito na fiação antiga da casa.
No lado esquerdo, colado ao salão, estava a casa onde moravam Darci, Elaine e Erminda, além de um armazém. O fogo consumiu fogões, quatro geladeiras, sete freezers, dois geradores e 12 placas solares. Demais utensílios do salão, como centenas de copos, pratos, talheres, cadeiras e mesas (que comportavam 140 pessoas para os almoços das quermesses) foram destruídos.
Móveis, eletrodomésticos, roupas, documentos e dinheiro viraram pó. A família saiu apenas com a roupa do corpo, descalça. Além disso, o incêndio destruiu parte da história de entidades da localidade, como os livros de canções do coral Cantores Boa Amizade, as bandeiras da Sociedade de Damas Santa Helena e os troféus do antigo time de futebol Boa Amizade.
