O ano das despedidas rápidas

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É comum ouvir a frase “nem deu tempo de me despedir e a pessoa partiu”, quando alguém morre. Mas isso faz ainda mais sentido para quem vivenciou a perda de um amigo ou familiar durante a pandemia de Covid-19. Com os velórios restritos para poucas pessoas e com limite curto de tempo, 2020 pode ser considerado um ano das despedidas rápidas.

Entre as milhares de famílias que passaram por esse momento nos últimos meses, está a de Gabriela Anita Stertz, 26 anos, que, no dia 5 de junho, perdeu sua mãe, Lisete Schwertner Stertz. Ela recorda que era um dia normal, a mãe acordou deu um beijo nas filhas e saiu para trabalhar, um tempo depois ligou para o marido falando que não se sentia bem. Quando ele chegou no local, ela já estava tendo um infarto e não tinha como salvá-la. “Chamamos dois médicos eles até tentaram reanimar ela, mas não tinha mais o que fazer, então logo encaminhamos para a funerária”, conta a filha.

Na hora de decidir roupa e demais questões do velório, Gabriela e a irmã Maria Helena Stertz, 17 anos, preferiram não participar, mas ela recorda que a vizinha que foi ajudar o pai, ficou triste em não conseguir ver a amiga. “Lá na funerária não podia entrar para ver, como em outros casos já pode.”

O velório aconteceu no mesmo dia, durante três horas, com caixão fechado. Contudo, havia uma parte de vidro para ver Lisete. “Nunca imaginamos passar por isso, é tudo muito rápido, mas ao menos penso que nós pudemos ver ela ali, já quem perdeu alguém por coronavírus não pôde ver e isso deve ser ainda pior”, reflete Gabriela.

A jovem lamenta que precisou ser tudo rápido, cumprindo prazos e protocolos, pois amigos que moram em outros municípios não conseguiram se despedir de Lisete. “Foi uma despedida com cerca de 25 pessoas. Realmente algo para as pessoas mais íntimas”, relata. Ela também lembra que os abraços durante o velório foram inevitáveis. “Não tem como falar ‘não me abraça’, se naquele momento era o que eu queria.”

Demonstração de afeto e saudade

Gabriela é psicóloga e acredita que a formação ajuda ela a entender um pouco melhor o processos dos sentimentos. Para desabafar, ela escreve nas redes sociais mensagens para a mãe. “É uma dor que não passa, mas tento demostrar meus sentimentos através da escrita, pois acredito que, de alguma forma, ela sente isso e está sempre por perto”, fala, emocionada.

Nos textos que ela posta, também fala sobre como está a irmã, Maria, para que a mãe entenda que, mesmo com saudade, elas vão ficar bem e cuidar uma da outra. Em uma das postagens, ela cita que, quando tiver saudade, vai olhar as fotos, já que a mãe sempre amava revelar e guardar os momentos em família e que ela e a irmã vão continuar fazendo isso.

“As pessoas nos perguntam como estamos, se estamos bem. E dizemos que sim, pois estamos, vamos ficar bem. Claro que a dor é enorme, a dor no peito nunca vai passar, talvez amenize com o tempo, mas é como eu falo para as pessoas, não é uma coisa que faz lembrar você, é tudo que faz lembrar, então aqui ficamos com a lembrança e a saudade”, escreveu Gabriela em uma foto do Facebook.

Consequência do Covid-19

Ninguém na família de Lisete teve coronavírus. Ela era cardíaca e a caçula Maria também é. Por isso, sempre cuidaram muito. Gabriela comenta que, assim que a pandemia começou, a mãe e a irmã pararam de fazer natação, exercício que ajudava a controlar esse problema.

Além disso, a mãe foi menos ao médico pois não queria sair de casa. “A falta da natação com a falta de cuidado médico pode ter ajudado a provocar o infarto. Por isso, eu digo que ela não foi vítima do Covid-19, mas foi vítima das consequências da pandemia”, afirma.

(Foto: Alvaro Pegoraro/Folha do Mate)

Velórios seguem com restrições

Entre março e maio, as despedidas de pessoas que partiram ficaram suspensas e familiares podiam apenas fazer cerimônia de sepultamento ao ar livre, nos cemitérios. Em Venâncio Aires, no dia 25 de maio, o governo municipal liberou velórios com capacidade de 20% da capela e com o tempo máximo de 3 horas. Porém, em casos de mortes por Covid-19, não podem ocorrer velórios. Essas restrições seguem até o momento.

Conforme o proprietário da Funerária Kist, José Kist, as restrições atingiram os familiares emocionalmente, pois eles não podiam tocar no corpo da pessoa. “Nosso decreto é um dos poucos na região que só permite caixão fechado e apenas três horas. Isso é ruim para a família que quer tocar na pessoa, porque ela chega e só pode olhar de longe pelo vidro. Isso gera ainda mais sofrimento”, lamenta.

Em caso de Covid-19, o falecido não pode ser velado. Ele sai do hospital direto para a cabine e vai para o cemitério, onde pode haver celebração com a família. “Tem que ser sepultado assim que vai a óbito. Por isso, tivemos casos que às 3h estávamos no cemitério fazendo uma celebração”, explica Kist.

“O processo de luto ficou comprometido”

A psicóloga e professora da Universidade do Vale do Taquari (Univates), Suzana Feldens Schwertner observa que houve modificação intensa no modo de se despedir e realizar os rituais fúnebres, neste ano, pois muitas famílias não puderam ver seus parentes, ou viram por pouco tempo, por causa da pandemia. “O processo do luto, desse modo, ficou comprometido e até mesmo foi necessária uma ressignificação dos rituais.”

Para esses casos, a profissional indica algumas estratégias remotas de despedida, como cultos e missas virtuais, a elaboração de um livro de despedidas on-line, contendo lembranças, fotos, vídeos, ou até mesmo a criação de um memorial na casa dos familiares.

“A morte repentina, inesperada e precoce, que parece interromper o ciclo do desenvolvimento humano, é usualmente sinal de um luto mais complicado – algo que tem acontecido bastante desde março.”
SUZANA FELDENS SCHWERTNER – Psicóloga e professora da Univates

Outro aspecto observado pela psicóloga é que, com a pandemia, todos ficaram muito receosos em perder alguém para o coronavírus e passaram a conversar mais sobre a morte – que virou notícia diária nos meios de comunicação. “Contudo, entendo que foram muitas informações, uma fala em demasia e que talvez pouco ainda tenhamos conseguido avançar na reflexão e na sensibilização sobre a morte e o morrer.”

Morte não pode ser tratada como tabu

Suzana Feldens Schwertnes
Suzana Feldens Schwertner é psicóloga e professora da Univates (Foto: Arquivo pessoal)

Ninguém está preparado para a morte ou para perder alguém próximo. Porém, conforme a psicóloga Suzana Feldens Schwertner, a morte deve ser discutida e pensada como mais um ciclo da vida.

A professora que usa o tema para trabalhar a psicologia com alunos, ressalta que falar dela e entendê-la como parte da vida deveria ser um tema abordado em escolas e trabalhado mais a fundo com as pessoas. “No momento em que as crianças começam a perguntar sobre isso, curiosas para saber mais sobre esse mistério que é a vida, muitos adultos fogem do tema, temerosos em como abordar, mas deveriam explicar através de livros, idas ao cemitério e outras maneiras”, analisa a profissional, que é doutora em Educação.

Sobre os rituais, como a data de finados, Suzana esclarece que são momentos importantes, especialmente para quem está vivendo a fase de luto. “É uma oportunidade para que as pessoas elaborem essa perda, que possam chorar e sentir a falta da pessoa. E também podem produzir lembranças coletivas, que, em um primeiro momento, são dolorosas, mas que aos poucos vão sendo processadas, permitindo uma despedida adequada à concretude da situação”, comenta.

Crianças

A professora recomenda a leitura do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Jaqueline Conrad, do curso de Psicologia, produzido em 2017, para adultos que queiram saber um pouco mais sobre como falar da morte com as crianças.

    

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