Era uma noite de neblina, em 1954, quando dois carros ‘estranhos’ pararam na esquina das ruas General Osório e Coronel Agra e bateram à porta de Rafael e Anita Schmitz. As bombas de gasolina não ficavam disponíveis durante a madrugada, mas aquele grupo de homens não queria abastecer os veículos. Pediu apenas uma coisa: comida.
O dono do então único posto de combustível na cidade orientou: “Vão no Laufer, ele atende vocês.” A comitiva seguiu poucas quadras até a Sociedade de Leituras, onde na casa ao lado moravam o ecônomo, Arthur Laufer, e a esposa, Alzira (cunhados dos Schmitz), que foram tirados da cama para uma visita incomum. A história a seguir é sobre a não comprovada, mas contada, passagem de Juan Domingo Perón, o histórico presidente da Argentina, pela Capital Nacional do Chimarrão.
Relatos verdadeiros
“É verdade, o Perón esteve aqui.” Essa afirmação o ex-prefeito de Venâncio Aires, Rony José Mylius (1933-2008), fez durante décadas ao amigo Luiz Fernando Staub, o Ratinho, 76 anos. “O Rony sempre me contou essa história. Na época se plantavam jornalistas nos aeroportos e qualquer avião diferente chamava atenção. Então o mais discreto seria ir de carro, por isso acredito que o Perón passou por Venâncio”, conta Staub.
Conforme o que relatava o ex-prefeito, o fato teria acontecido por volta de 1954, quando o então presidente da Argentina teria vindo ao Rio Grande do Sul para um encontro com o presidente Getúlio Vargas, em Porto Alegre, com que mantinha relações políticas.
Sem RSC-287, BR-290 ou BR-386, o único acesso à capital era a ‘estrada da serra’ (atual ERS-422) e a comitiva teria vindo da Argentina, passou por Santa Rosa e desceu até Venâncio. Na chegada ao Centro, parou no posto Schmitz para pedir informações sobre onde poderiam comer.
Àquela hora da madrugada, cerca de 3h, foram até o Leituras, onde Arthur Laufer era o ecônomo e atendeu aqueles estranhos. No outro dia, Laufer, amigo e confidente do jovem Rony Mylius (então jogador de vôlei do Grêmio Atlético Venâncio Aires – GAVA e que frequentava muito o Clube), lhe contou da visita em plena madrugada.
“Essa gente falava espanhol e estava com farda de militar”, observou Laufer. Mylius, então com 21 anos, mas já atento a questões políticas, desconfiou que poderia ser ‘gente graúda’. Buscou alguns exemplares do Correio do Povo e do Diário de Notícias e mostrou as fotos de um homem em pose imponente, que era figura corriqueira nos jornais brasileiros. “Sim, esse!”, exclamou Laufer, apontando o dedo para a fotografia do presidente da Argentina, Juan Domingo Perón.
Família
Se por um lado dividia histórias e outras questões com amigos que a política lhe trouxe, Rony Mylius, em família, evitava alguns assuntos. Segundo o filho, Camilo Mylius, 60 anos, o pai sempre foi reservado e discreto em casa. “Fomos criados com liberdade e ele nunca nos impôs para seguir na política. Sobre isso, ainda, ele não contava nada, era muito reservado, então nunca mencionou esse caso do Perón. Mas meu pai não era piadista, nem fanfarrão e tinha convicção quando afirmava algo. Então se ele contou essa história, é porque é verdadeira.”
Considerações
Os personagens principais dessa história já faleceram, mas a reportagem procurou familiares e pessoas que tiveram alguma relação com o Leituras há mais de 60 anos. Uma delas é Nelsi Maria de Azeredo, 81 anos, sobrinha dos Laufer. Quando era adolescente, ainda na década de 1950, trabalhava na chamada ‘loja dos turcos’ e, algumas noites, ajudava a servir jantares no Clube.
“Tinha movimento todo dia, toda noite. Não só fim de semana. O pessoal se reunia para tudo lá. Tinha desde jogos de carta e bolão, até reunião do Lions [fundando em Venâncio em 1958] e muitos encontros de políticos”, lembra.
Nesse sentido, Nelsi não descarta que a vinda de um presidente possa ter acontecido. “E se eles pararam no tio Arthur e na tia Alzira, pode ter certeza que foram atendidos, não importa que foi madrugada. Eles eram muito atenciosos com todos que frequentavam o Leituras.”
Bayard Klein Filho, 41 anos, neto de Rafael Schmitz, relata que ouviu muitas histórias curiosas dos avós que começaram com o posto de gasolina ainda na década de 1940. Mas, sobre uma comitiva de Perón pedindo informação no local, é novidade para ele.
“Essa eu não conhecia, mas acredito que tudo é provável. Infelizmente não temos registros, nem fotos desse tempo. Mas por que não, né? Muita coisa deve ter passado pelo posto, que também era uma referência na época, assim como pelo Leituras, onde as coisas aconteciam”, considera.
“Meu pai não era piadista, nem fanfarrão e tinha convicção quando afirmava algo. Então se ele contou essa história, é porque é verdadeira.”
CAMILO MYLIUS – Filho do ex-prefeito Rony Mylius
Leituras, o ‘centro’ de Venâncio
O jantar em plena madrugada da comitiva portenha teria acontecido no Leituras, uma entidade que tem uma história anterior à da própria cidade, já que foi fundada em 1887. Com uma história de mais de 130 anos, as paredes do Clube já viram e ouviram de um tudo. “Acho que é possível, minha filha, porque isso aqui era o centro de Venâncio”, resume Avelino Klein, sócio desde 1948.
O empresário aposentado, no auge dos seus 96 anos, é testemunha ocular do desenvolvimento da cidade nos últimos 74 anos. Klein revela que não era simpatizante da política de Perón, mas acompanhava o que saía sobre ele nos jornais de Porto Alegre, principalmente pelo estilo parecido com Getúlio Vargas. Este, aliás, Avelino Klein conheceu pessoalmente, durante uma viagem ao Rio de Janeiro. “Não dá para descartar o Perón por aqui, porque o que tinha de carro da Argentina que passava pelo Hotel Schmidt era algo fora de série”, comenta, fazendo referência a outro espaço tradicional de Venâncio, a poucos metros do Leituras.
Vizinho de esquina, Avelino Klein viu muitos ‘famosos’ em seus tempos, como o ex-governador Ildo Meneghetti, que comandou o Rio Grande do Sul entre 1955 e 1959, e Ieda Vargas, Miss Universo em 1963. “A Sociedade de Leituras era uma referência. Tudo se realizava lá. Não apenas festas e eventos sociais, mas muitas decisões políticas também aconteciam em encontros lá dentro.”
Avelino Klein também presidiu o Leituras por cinco vezes e foi durante um de seus mandatos, em 1975, que foi construída a ‘parte nova’ ao lado do prédio principal, para abrigar a pista de bolão. A inauguração atraiu centenas de pessoas de times que integravam a então Federação de Bolão do Rio Grande do Sul. Para construir esse espaço, a casa onde moraram os ecônomos que cuidavam do Leituras (como Arthur Laufer, por exemplo), precisou ser demolida.
Considerando o Leituras como uma referência para a cidade, o atual presidente da entidade, Telmo Kist, também comentou sobre a suposta passagem de Perón por Venâncio. “Todos os componentes levam a acreditar que é verdade. Não me surpreende um presidente ter estado no Clube, porque a história de Venâncio passou por ele.”
As semelhanças entre Perón e Vargas
A suposta passagem de Juan Domingo Perón (1895-1974) por Venâncio teria como finalidade um encontro com Getúlio Vargas (1882-1954) em Porto Alegre. Se essa reunião aconteceu, não se sabe, mas eles eram próximos. Segundo o livro ‘Sob os olhos de Perón – o Brasil de Vargas e as relações com a Argentina’, do jornalista Hamilton Almeida, Perón ajudou a financiar a campanha eleitoral que reencaminhou Getúlio Vargas ao poder, em 1951.
Além disso, eles tiveram três anos em comum à frente de seus países e chegaram a esboçar planos de uma integração entre Brasil, Chile e Argentina. A pesquisa de Hamilton Almeida revelou os vínculos dos presidentes entre 1950 e 1954 e o autor descobriu também que, além do financiamento da campanha, Perón mandou instalar uma base secreta de apoio a Vargas na Argentina. Os dois teriam feito ainda um pacto secreto de união das duas economias.
A professora e historiadora, Angelita da Rosa, também destaca essa proximidade. “Politicamente tinham o mesmo perfil e tiveram uma fase populista. E economicamente também se aproximavam, porque Brasil e Argentina tinham semelhanças nas suas economia”, explicou.
No entanto, se um pedacinho dessa história passou por Venâncio’, Angelita diz que é arriscado afirmar. “Temos a memória e a história oral, que são importantes. Mas, para pesquisa, o historiador precisa contar com o registro, a prova documental. É ela que comprova se algo aconteceu ou não.”
Curiosidades
Embora o presidente Juan Domingo Perón seja nome forte na História da América do Sul, talvez o maior símbolo da Argentina ainda seja Eva, ou apenas Evita. Atriz e então esposa de Perón durante o primeiro mandato (1946-1952), ela teve a trajetória marcada por grande atuação política.
Até hoje é lembrada pela defesa dos direitos da classe trabalhadora, das mulheres, das crianças e dos mais humildes, os “descamisados”. Quase uma lenda, a ex-primeira dama morreu com apenas 33 anos, em 1952, de câncer de colo uterino.
Evita é lembrada em monumentos, livros e filmes (como no de 1996, que concorreu ao Oscar, com Madonna no papel principal). Seu velório durou 12 dias, reverenciado por meio milhão de pessoas. Muitos choravam e se abraçavam ao caixão.
Cena semelhante aconteceu no Brasil, em agosto de 1954, depois do suicídio de Getúlio Vargas. Em frente ao Catete, então sede do governo no Rio de Janeiro, milhares tentavam ver o corpo do presidente. Todos comovidos com a morte daquele que passaram a chamar de ‘pai dos pobres’.
Do que mais aprendemos
Juan Perón? Em Venâncio? Quase pirei, no bom sentido, quando Telmo Kist me resumiu essa história. Embora soubesse que provavelmente não encontraria fotos, nem registros, como jornalista me agarrei firme à corda que sustenta muito do nosso trabalho: o relato das pessoas. E, mais uma vez, ouvir foi fundamental, porque isso sempre nos ensina coisas que talvez nem fossem a pretensão inicial, como saber mais sobre Rony Mylius, prefeito de um único mandato, há mais de 40 anos.
Mylius comandou o Município entre 1973 e 1976 e contribuiu para fatos importantes, como nas tratativas para a Discagem Direta à Distância (DDD), que ligou Venâncio a outros estados de forma efetiva em 1977 – uma revolução para a telefonia da época. Também foi no governo dele, em 1974, que o Acesso Leopoldina, a principal entrada da cidade, foi asfaltado.
Fora da política, Rony Mylius foi o primeiro gerente da Caixa Estadual de Venâncio, na década de 1960, período em que ajudou a formar e deu o nome a uma nova entidade: a Sociedade Olímpica de Venâncio (Sova). Lá também foi construída uma piscina, assim como a que ele ajudou a construir quando presidiu o Clube Leituras, há mais de 50 anos.
Clube, aliás, que sempre merece algo à parte. Atrás de informações sobre o suposto fato relacionado ao presidente da Argentina, vasculhei os velhos armários onde ficam guardados os livros ata. Foi emocionante folhear aquelas páginas amareladas que já foram, também, manuseadas por ilustres da cidade e hoje estão eternizadas em nomes de ruas e prédios públicos.
Estão lá as assinaturas de Hermes Pereira, Emílio Selbach, Reynaldo Schmaedecke e Henrique Mylius, por exemplo. Este último, que era tio-avô de Rony, não só foi um dos fundadores do Leituras como integrou, em 1891, a junta governativa da primeira Administração de Venâncio, com Ruperti Filho e Coronel Agra.
Depois de tudo isso, não tem como afirmar se Perón passou aqui. Mas passaram os Mylius, os Laufer, os Schmitz, o Ratinho, a Nelsi, o Avelino e tantos que viram uma cidade de outrora. Todos viveram um Venâncio em ‘preto e branco’, mas que na memória o colorido ainda está bem vivo.