Os registros esquecidos de Venâncio Aires

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“Quem é esse, vó?” A pergunta foi feita muitas vezes por uma criança, nos anos 1990, que adorava tirar de cima do roupeiro da avó materna uma caixa retangular, daquelas de camisa. Era nela que estavam dezenas de fotografias, a maioria em preto e branco, das famílias Frese, Mohr, Nagel, Bartholdy, Christmann e Gärtner.

Passados alguns anos, aquela vó não precisou mais repetir as mesmas informações para a neta curiosa.“Depois que eu for, quem vai saber?”, ela se perguntava. Assim, resolveu o problema antes de ‘ir’ e anotou muitos nomes no verso das fotos.

A decisão dela, por mais simples que pareça, não é um hábito comum entre os venâncio-airenses. Muitas fotos até estão guardadas, mas suas referências já se perderam. E essa falta de identificação pode estar contribuindo para que, pouco a pouco, histórias de famílias se ‘evaporem’, como as ignoradas nas gavetas do Museu de Venâncio Aires. Na contramão, há aqueles que ainda confiam na memória, mas já deixaram ‘as legendas’ para as futuras gerações.

Duas gavetas e centenas de identidades perdidas

Crianças, homens, mulheres, jovens, velhos. Festas, escolas, campos. Paletó, gravata, vestidos, coques. Cenários e personagens eternizados em um preto já fosco e um branco meio amarelado. São centenas de fotografias, guardadas no Museu de Venâncio Aires, mas sem identificação nenhuma.

Elas integram o chamado ‘fundo desconhecido’ e são cerca de 300 nessa situação, guardadas em duas gavetas, à espera de alguém que teria interesse em buscar algum registro de um parente.

Sem pista nenhuma, o próprio Museu não tem um caminho definido para ajudar na identificação. “É um trabalho difícil, porque muita coisa se perdeu na história falada e ninguém registrou. Seria necessário uma grande exposição, talvez”, relatou o auxiliar de acervo do Museu, André Pinheiro.

Pelas roupas, cenários e a moldura, é possível arriscar que a maioria data de um século atrás.

Alguns registros têm pistas, como nesta foto: a placa ao fundo das crianças indica a localidade de Linha Maria Madalena e o ano de 1933 (Foto: Divulgação/Acervo Museu)

Famílias

As fotografias foram deixadas lá nos últimos anos. Algumas doadas, outras apenas repassadas por pessoas que não sabiam o que fazer com os registros. Cada uma das desconhecidas está dentro de um envelope com um número, mas as referências param por aí.

O que está registrado são as fotos doadas por algumas famílias venâncio-airenses, que entenderam que elas seriam devidamente cuidadas no Museu. Essas sim, contam com um pequeno relatório descrevendo cada foto, porque tiveram informações repassadas por familiares. Entre os arquivos, há fotos dos Storck, Bencke, Wessling, Lenz, Leuckert, Pochmann, Myllius, Molz e Nowotny.

Ao todo, o acervo do Museu tem aproximadamente 5 mil fotografias.

Senhora sentada, à direita, com vestes que lembram um dos vestidos do acervo do Museu (Foto: Divulgação/Acervo Museu)

Vestidos

Em uma das fotos desconhecidas, chama atenção uma roupa que remete a um dos vestidos mantidos pelo Museu, na mostra Noivas de Preto. A mulher usa um vestido escuro, provavelmente preto – também eram comuns o azul e o verde. No século XIX e início do XX, muitas mulheres tinham um único vestido ‘a vida toda’. Era o de casamento, o que se usava em festa e até no sepultamento.

Um garimpo na história

Há pouco mais de três anos, a professora aposentada Losane Wazlawovsky iniciou um trabalho que virou uma espécie de resgate e manutenção da história de Venâncio Aires. Aproveitando o que a internet possibilita, criou um grupo no Facebook para divulgação de fotos e registros de ‘outros tempos’. É o ‘Venancioairenses’, que conta com 13,5 mil participantes.

Mas este trabalho, no qual percorre o município e visita muitas famílias, é um quase garimpo para trazer informações fidedignas. Assim acontece com muitas das fotos que lhe são cedidas para publicação. “O grupo, por ter tantas famílias envolvidas, já me identificou várias. Alguns mostram as fotos para avós, bisavós e eles identificam. Se sentem valorizados”, relata.

Ainda conforme Losane, as referências passam pelo ‘aproveitamento’ dos mais velhos. “Quando se busca alguém da família que é de mais idade, são eles a luz no caminho. Todo jovem deve se utilizar do idoso da família, pegar suas fotos e colocar a identificação atrás. É o que eu solicito quando me convidam para vê-las.”

Preservação

Para as fotografias antigas, é preciso alguns cuidados para evitar a deterioração. No Museu, por exemplo, a preocupação é que elas fiquem em local seco, evitando exposição à umidade e à luz. Além disso, as fotos devem ser armazenadas em pastas ou envelopes com pH neutro.

Do que é impresso hoje em dia (já que muitos registros ficam na memória de computadores), uma opção bem corriqueira tem sido o fotolivro. Segundo o fotógrafo Cristian Frantz, o item é buscado porque não sofre com a umidade e é impresso como ‘um livro de histórias’ de momentos registrados.

Aproveitando a memória viva

Um ‘bolo’ de fotos soltas dentro de uma gaveta, mas a identificação principal está lá: “Casamento Carlinhos e Célia, 15/10/1960, Passo do Sobrado”. Registro a registro, Carlos Reynaldo Schuck, 87 anos, nomeia cada um dos que foram fotografados no dia que subiu ao altar com Maria Célia, hoje com 85 anos. Lembra dos convidados, dos garçons, dos foguetes escondidos em frente à igreja Nossa Senhora do Rosário da então localidade de Rio Pardo. Tudo vivo na memória e nas fotos.

Carlinhos, como é conhecido (apesar do seu 1,90 metro), é um dos raros venâncio-airenses que resolveram ‘legendar’ suas fotos. “Tem que fazer, se não se perde a história”, resume.

Na casa dele, fotografias estão em todos os cantos. Nas gavetas, nas paredes e sobre os móveis, como registros com a esposa, com as filhas Janete e Jusara e com os netos Bruna, Pedro e Thiago. É como se não pudesse ‘fugir’ disso, já que é filho de João Cristiano Schuck, que foi fotógrafo em Venâncio Aires. “O pai não tinha um estúdio, era uma sala em casa. A máquina era daquelas caixas que ‘estouravam’ o flash. Ela fez durante muito tempo as festas da Sociedade de Leituras”, recorda.

O aposentando ainda descende de figuras ilustres da história do município: é neto de Vicente Schuck, o primeiro presidente da Câmara de Vereadores, em 1935, e que dá nome ao Plenário do Legislativo; também é sobrinho de Cônego Albino Juchem, religioso que participou da fundação do Hospital São Sebastião Mártir e dá nome a uma das maiores escolas estaduais da cidade. Enquanto o avô paterno está em quadro na parede, o tio Albino aparece lhe dando a bênção no casamento, há 60 anos.

Carlinhos Schuck guarda os registros do seu casamento, em 1960 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Parceria

Em meio a fotos de famílias, há quem tenha outros registros, de lugares conhecidos. Assim é com os Becker, de Vila Deodoro. Com mais de 300 fotos que datam entre os anos 1900 e 1950, eles não têm apenas registros de seus antepassados. Muitos ajudam a contar a evolução da localidade, como a construção da igreja Evangélica e da escola Sebastião Jubal Junqueira.

Mas, do que não é de conhecimento geral, são pessoas que os Becker têm laços de sangue, como as famílias Dattein, Franck e Albrecht. Algumas fotografias até já têm inscrições e legendas, mas muitas seguem à espera de identificação. Esse trabalho deve ficar a cargo de Sonia Becker, 64 anos. A professora aposentada conta que já combinou com a prima, Suzana Dattein, para fazer o trabalho.

Nessa parceria, quem vai indicar e balizar tudo é Hilda Becker, 91 anos, mãe de Sonia. A aposentada é uma das moradoras mais velhas da localidade. Hilda, aliás, é o registro número 1 do cartório de Vila Deodoro – nasceu em 29 de junho de 1929.

Sonia Becker com uma foto restaurada. Na nova impressão, já veio uma ‘legenda’ (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Genealogia

Um meio interessante de preservação da história familiar também pode ser a árvore genealógica. A mesma que, geralmente, é solicitada em algum momento da vida escolar.

Para quem pensa em fazer esse ‘mapa de gerações’, o pesquisador e escritor, Márcio Vinícius Scheibler, que trabalha com pesquisa genealógica, sugere que ela deve começar com parentes mais próximos, como pais, tios e avôs, já que a maioria possui documentos que comprovam nomes, datas e cidades.

Para Scheibler, fotos antigas, sem identificação, estão entre as maiores frustrações de um pesquisador. “Uma imagem antiga indica características físicas, de vestimenta e até de costumes, como uma foto durante um trabalho, por exemplo. Sem a devida identificação, não podemos atribuir aquelas características a um ancestral ou parente”, explica.

Márcio Vinícius Scheibler é natural de Santa Cruz do Sul, mas os pais, avós e bisavós nasceram em Venâncio Aires. Partes das histórias da família do pesquisador viraram livros: Família Scheibler: da Boêmia para o Rio Grande do Sul (2016) e Família Ruppenthal (2019).

Para o livros dos Scheibler foram quatro anos de pesquisa e dos Ruppenthal, sete. Conforme o escritor, ele pesquisou todas as ramificações da ancestralidade e chegou até meados do século XVII. Scheibler tem 30 mil nomes de parentes colaterais (de sangue) e cônjuges no seu banco de dados.

“Ao mesmo tempo que temos computadores que guardam de tudo um pouco, nossa memória não é assim. Ela é seletiva e nos lembramos do que queremos lembrar ou que nos marcou. Então nós só temos necessidade de manter memórias familiares, se tivermos algum enraizamento, algum pertencimento e a preservação passa pela vinculação identitária com a própria história.”

ANGELITA DA ROSA – Historiadora

Impressões de repórter

Dizem que tenho boa memória. Mas quem diz é porque não conheceu Ilsy Elzira Frese (1937-2017), minha avó materna, a que guardava as fotos numa caixa de camisa. Ela era daquelas que lembrava nomes, datas, se tinha chovido em tal dia. Por causa da vó, fui uma das poucas no meu tempo de 1ª série que sabia citar avós, bisavós, trisavós e outros ‘tatas’. Muito dessa ‘genealogia’ ela fez enquanto descascava batatinhas para o almoço, nas minhas férias escolares em Centro Linha Brasil. A cada volta da faca e cascas que caíam sobre a barra do vestido, era como uma página virada num álbum de fotografias. Lembrava de mais um, e de outro e de outro… Minha vó me fez entender, aos 7 anos, que eu já tinha um passado, que pertencia a uma história, que tinha identidade. E, antes de me ensinar a legendar fotografias, me ensinou que a história precisa ficar bem guardada. Pode até ser numa caixa de camisa, mas que ela caiba dentro do coração.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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