História de Daniela Kaufmann Seady – moradora de Vale Verde na infância, que hoje reside em Encruzilhada do Sul
O pavilhão da Comunidade Evangélica era uma construção grande de madeira, coberta de folhas de zinco, localizado atrás da igreja Luterana. Ele foi o primeiro grande palco da minha vida, uma extensão da minha casa. Conseguiria descrevê-lo todinho e desenhar sua anatomia até em braile, pois faz parte de mim e da minha história.
As copas, a cozinha, o palco, a pista de dança, a churrasqueira, as escadas internas, os banheiros, tudinho. Lembro-me de cada detalhe arquitetônico. No banheiro feminino, tinha uma antessala com uma cama antiga de molas de ferro. Era uma cama de casal onde as mães colocavam as crianças para dormir e aproveitavam a festa.
A parede de tijolos não rebocados, no banheiro, ainda que limpa, não dava a sensação de limpeza. Num dos banheiros femininos, tinha um furinho na parede que fazia divisa com o banheiro masculino. Cobríamos o buraco com uma bucha de papel mas, mesmo assim, eu ficava com medo de algum voyeurismo.
No pavilhão, aconteceu a festa de casamento da Ana e do Delmar Kirst, em 1990. Senti-me parte dos holofotes, pois eu e meu primo, Márcio Kaufmann, fomos daminha e pajem. Cumprimos o ritual em troca de chocolate. Os noivos nem tinham saído da igreja e o apressado do Márcio colocou pressão: “Cadê o chocolate prometido, hein?”.
Lá, aconteceu a minha primeira apresentação artística. Eu era a Margarida a ser resgatada pelo príncipe (música ‘Onde está a Margarida’). A professora Carmelita Machado prometeu durante o ano de pré-escola, que os alunos que tivessem tido um bom comportamento e não ficassem de castigo, figurariam como atores principais da peça de final de ano.
Caprichei no comportamento para conquistar o protagonismo, só que veio a primeira decepção: o coleguinha lindinho, Tiago Muller, também de bom comportamento, não aceitou ser o príncipe.
Aprendi, naquele momento, que contos de fadas só existem nos livros, que é preciso humor para encarar as frustrações e, assim, o príncipe foi o meu querido amigo Betão (Everton Simon) que, no momento final da apresentação, estava indo ao meu encontro (resgatar a Margarida) e, quando estava quase chegando perto, voltou correndo para a mãe com seu dentinho de leite na mão. Já estava me achando uma florzinha abandonada pelo segundo príncipe, mas ele tomou um gole de água e voltou banguelo para me resgatar. Ufa!
Uma noite natalina
Outra memória é de quando eu tinha uns 8 anos e implorei para participar da noite do Papai Noel no pavilhão. Não acreditava mais em Papai Noel (não lembro se algum dia acreditei), mas queria viver um pouco da magia. Minha mãe tentou me convencer a não participar e explica que a época era muito difícil financeiramente, pois não tínhamos vendido fumo ainda. Eu sabia bem a realidade (até demais) e por isso barganhei: “Pode ser qualquer coisinha! Se não quiser ou não puder comprar nada, não tem problema, embrulha alguma coisa aqui de casa mesmo”. Ela teve compaixão.
Chegou a tão esperada noite. Meu coração batia forte, estava sentada ao lado da minha mãe e minhas colegas de aula em um banco comprido de madeira. A minha amiga, Janine Toillier, foi chamada para receber o presente, voltou rasgando o embrulho rápido, ganhou um Papai Noel de brinquedo que dançava e cantava. Achei lindo. Ela disse que fora ela quem escolheu. Chegou a minha vez. Senti um nervosismo bom em dar um abraço no Papai Noel. Quando voltei ao meu lugar, minha mãe segurou meu braço com força e falou firme no meu ouvido: “Abre só em casa”.
Entendi o recado. Não me importaria com a simplicidade iminente, mas respeitei e permaneci com meu presente fechado. Os amigos todos em polvorosa mostrando e exibindo os presentes. E o meu ali, lacrado. Eles queriam saber o que eu tinha ganhado e por que não abria de uma vez. Lembro-me de ter falado: “Só vou abrir em casa, na frente do pinheirinho, junto com a minha família”. Lembrança inesquecível. Meu presente era um pacotinho de bolacha de mel com a cara do Papai Noel e bombons de chocolate barato, envolvidos por um saquinho de celofane e fita vermelha.
O primeiro desfile
Aos meus nove anos, desfilei para ‘A Mais Bela Prenda’. Como era um evento de toda a escola, aconteceu no Pavilhão. Durante o desfile, escutei alguns meninos rindo e zombando de mim. Um falou bem alto: “Quero uma foto ou contratar para ser espantalho nas lavouras do meu pai”. E as risadas foram grandes. Segui o desfile tentando manter o sorriso e a cabeça erguida. Sabia que não era a mais bela, minha produção fui eu mesma quem fez, meu vestido era pega-pinto (emprestado da amiga Cassia Kroeff) e a sapatilha foi emprestada pela professora Cecília, tudo providenciado por mim. Tive esforço, dedicação e pontualidade.
As meninas que ganharam o título chegaram bem atrasadas e tivemos que esperá-las para dar início ao desfile. Percebi, naquele momento, que a beleza que muitos olhos conseguem enxergar é apenas a externa, que a sociedade é por vezes injusta, que eu deveria lutar pela minha autoestima sem esperar pela aprovação dos outros, superar os bullyings e contar pouco com a escola para trabalhar minhas subjetividades.
Escutava as vozes dos meus medos e da minha baixa autoestima dizendo “não participa, não se mete”, mas eu tinha fome de mundo e sentia que me socializar seria um caminho de preparação para alçar voos. Assim, lá estava eu no pavilhão em todas as apresentações: teatro, macarena, pau de fita, maçarico e danças folclóricas alemãs.
Grupo de dança, maquiagem e o primeiro beijo
Numa das apresentações do Grupo de Dança Alemã, coordenado pela Rovena Dettenborn, estávamos nos preparando para entrar na pista e a Marquin Dettenborn começou a passar batom e blush nas meninas. Foi a primeira vez que alguém me maquiou na vida.
Aquele cuidado de alguém com a minha aparência fez bem para autoestima. A emoção foi ainda maior porque ela era mãe do Marcelo, um menino lindo, brincalhão, educado e que eu “gostava”. Fiquei tão radiante com a minha produção que acho que chamei a atenção.
Antes de ir embora, despedi-me dos amigos em cima do palco e o Marcelo disse que queria me contar um segredo no meu ouvido. Quando virei o rosto para ele falar, deu-me um beijo na bochecha. Dei um empurrão e saí correndo. Primeiro beijo em cima do palco, quase morri de vergonha. Quando cheguei em casa, tive vontade de não lavar o rosto, pela maquiagem e pelo primeiro beijo.
Lá, participei dos comícios eleitorais para a primeira eleição municipal de Vale Verde, em 1996. Colecionei brindes como chaveiros, camisetas, bonés, isqueiros e lixas de unha, entre outros. Tempos em que a ingenuidade é uma bênção.
QUERMESSES
Ah, e as quermesses. Que delícia! Sou do tempo em que se fazia decoração com folhas de coqueiros nas portas principais. Quando a festa era da comunidade católica, nosso envolvimento era maior.
No sábado, o meu pai levava uma carroça cheia de lenha para assar as cucas e para o fogo do churrasco. Na época, não existia câmara fria e nem muitos freezers, lembro do pai quebrando barras de gelo com martelo para colocar em estruturas de blocos de cimento onde gelava as bebidas. O gelo era coberto de serragem para conservar a baixa temperatura. Brincava de recolher as garrafas vazias pelo salão, colecionar tampinhas e copos plásticos usados.
À tarde, começava a reunião dançante. Lembro-me do Lauro Froemming polvilhando a pista de dança com farinha de milho para os calçados deslizarem melhor na dança. Muitas festas começavam com a música ‘Só uma Canção’, do Barbarella, que era quase meu hino.
Os festeiros
A apresentação dos novos festeiros também era um momento que gerava grande expectativa e êxtase, pois era surpresa, quase um mistério. A banda buscava na área externa o casal encarregado da organização da festa do ano seguinte e entrava ao som festivo.
A banda ia na frente, seguida pelos novos festeiros e a criançada que quebrava o protocolo. Os atuais e próximos festeiros dançavam no centro da pista. A comunidade formava um círculo, davam as mãos dançando e festejando. Para mim, aquilo era um momento lindo, uma forma de agradecer ao casal que organizou a festa atual e também saudar e acolher os novos responsáveis. A dança festiva em círculo era como se fosse um ritual de aliança da unidade da comunidade.
A mulherada enlouquecia com o ‘tudo premiado’, que chamávamos de ‘tenda’, torciam pela sorte de ganhar os mais lindos panos de prato. E eu torcia para ganhar qualquer coisa que não fosse de cozinha. Sentia desde a tenra idade que não tinha sido feita para ser dona de casa, minhas aspirações eram a de ser a dona da casa.
Era frequente utilizarem o pavilhão para realizar velórios. Na época, não tinha necrotério na cidade. Achava aquilo injusto com meu pavilhão da alegria: não combinava ter atos fúnebres num lugar de tanta vida.
Na minha adolescência, amava as festas no pavilhão. O local estratégico era ficar na frente do palco, perto do acesso ao banheiro (um certo pedágio visual). E tinha a companhia da amiga Rejane Wagner. Podia faltar a banda, mas não faltava a Rejane. No pavilhão, foi a festa de formatura da minha irmã Tina (uma das conquistas mais lindas da família) e mais um monte de boas memórias.
As estruturas do salão estavam comprometidas pelo tempo. Foi uma dor desmancharem ‘o meu pavilhão’. Ele deveria ter sido tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela sua importância cultural e social na minha vida e de tantos conterrâneos. Mas sigo a vida acreditando e cantando: “vista-se de sonhos, passe a transpirar o amor que existe dentro de você, não existem regras pra viver.”
“As quermesses são recordações dos melhores banquetes da minha vida. Mesas compridas forradas com papel de propagandas de lojas, limão galego cheio de palitos de dente, guardanapos dobradinhos, ampla variedade de verduras e legumes, cuca enrolada, a galinhada divina do Kall (Carlos Toillier), linguiça e carne quentinha passada pelos assadores. Nada de buffet, éramos servidos como se fôssemos da mais alta realeza. Que comilança.”