Preto e branco de encher os olhos: as primeiras TVs de Venâncio Aires

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Duas cores apagadas que ‘brilhavam’ mais que um arco-íris. O tricampeonato com Pelé visto em imagens. A torcida na novela por João Coragem. As horas de sono perdidas na madrugada com filmes de terror. É de muitas formas que a televisão está na memória dos brasileiros. Fatos, programas e imagens que marcaram gerações, propagados através de uma ‘caixa’ que se tornou um importante veículo de comunicação.

Esse aparelho, que já mudou tanto de formato, estreou há sete décadas no país. Por aqui, quando apareceu, também impactou diversos moradores da Capital do Chimarrão. Claro que em um período um pouco mais recente, mas que nos remete a uma Venâncio Aires de mais de 50 anos atrás. Uma Venâncio ainda em preto e branco, como as primeiras TVs. Um tempo de improviso, de descoberta, de encantamento e, portanto, inesquecível para quem viveu.

Vendedores de sonhos

“Daqui um tempo vamos enxergar as pessoas falando num aparelho.” A afirmação foi feita pelo dentista Ricardo Pilz, há mais de 60 anos, quando a televisão era ‘coisa de outro mundo’ no Rio Grande do Sul. E em Venâncio Aires, que no fim dos anos 1950 contava com pouco mais de 6 mil eleitores (hoje são 51 mil), a frase soava como loucura.

Mas ele estava correto e só não foi uma premonição porque isso já tinha acontecido no centro do país. Por aqui, a possibilidade é que a tal ‘engenhoca’ chegou ainda em 1959, no último ano de Major Hermes Jorge Pereira como prefeito.

Uma das pistas da origem dos primeiros televisores em Venâncio remete à véspera do Natal de 61 anos atrás, quando a Casa Comercial de Martim Geller vendeu uma TV Phillips modelo 21 R 18917. A fatura foi emitida em 24 de dezembro, apenas quatro dias depois da estreia da TV Piratini, em Porto Alegre, marcando o início das transmissões no estado.

Tal aparelho está guardado no Museu da cidade e, de acordo com a nota fiscal, está no nome de Walmir Luiz Pochmann (o médico que futuramente daria nome ao Centro Obstétrico do Hospital São Sebastião Mártir). Comprada por 75 mil Cruzeiros – cerca de R$ 20 mil na conversão atual – foi um presente de Natal que Pochmann recebeu do pai, Benno.

Essa Phillips, cujo tubo de imagem fica dentro de um pequeno armário, pode ser uma das primeiras TVs de Venâncio. Se não foi a primeira, saiu da loja pioneira em vendas no município: o comércio de Martim Geller, Filhos e Cia Ltda, que ficava na esquina das ruas Osvaldo Aranha e Sete de Setembro. “Era como vender um sonho porque muitas pessoas nem tinham ouvido falar e precisavam ver para acreditar”, lembra Marlene Penz Geller, 75 anos, nora de Martim.

Ela conta que os sogros, aliás, tiveram sua primeira TV em 1960. “Foi um presente dos filhos pelas Bodas de Ouro [50 anos de casados]. E esse aparelho saiu da loja.” Do estabelecimento também saiu uma Philco, em 1966, quando Marlene casou com Arturo, o mais velho dos filhos Geller. “Era tudo chuviscado. Tinha que ajustar a antena o tempo todo, que captava sinal de Porto Alegre.” Na programação, só noturna, o ‘noticioso’ e a novela O Direito de Nascer, da extinta TV Tupi.

Marlene com a foto dos sogros, Martim e Maria Geller, quando completaram 50 anos de casados, em 1960, e receberem uma TV de presente dos filhos (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Bateria

  • Vender esse ‘sonho’ chamado TV também foi trabalho de Nilo Avelino Pilz, comerciante de Centro Linha Brasil. Na década de 1960, ele foi o primeiro vendedor de aparelhos Phillips no interior de Venâncio Aires. Nilo, aliás, era filho de Ricardo, o que ‘previu’ a novidade.
  • “O pai percorria todo o interior e ele mesmo instalava. Sempre levava muito tempo, porque precisava explicar o funcionamento para as pessoas”, conta a filha de Nilo, Selmira Klamt. Para localizar a antena, o sinal era captado com a ajuda de um rádio de pilha.
  • Sem energia elétrica naqueles tempos, os aparelhos funcionavam à bateria. Assim foi com a primeira TV própria dos Pilz, adquirida em 1970. “O tempo era controlado e só dava para olhar o Jornal Nacional e as novelas As Pupilas do Senhor Reitor [Record] e Irmãos Coragem [Globo].”
  • Selmira conta que Nilo também trabalhou em parceria, nos anos 70, com José Benedito Fischer, que na cidade também foi um dos primeiros comerciantes a vender televisores.

Arroz queimado

O médico Flávio Seibt, 73 anos, lembra que a TV chegou na sua casa ainda no início dos anos 1960, quando era adolescente. O pai, Arthur, havia comprado um televisor Orbiphon, mas que quase não durou na família. O motivo era a desatenção da esposa, Olga. “Enquanto a mãe preparava a janta, se descuidava, porque ficava atenta à TV. Daí o pai vivia ameaçando: ou ela cuidava para não queimar o arroz ou se desfazia do aparelho”, revela, entre risos.

Foto: Arquivo pessoal

Quem é?

Não se sabe a data, mas o registro remete à década de 1970, tempo de uma promoção da tampinha premiada da Pepsi Cola. Na foto, que pertence ao arquivo de Marlene Geller, está um representante das lojas Geller entregando uma TV para um sortudo de Venâncio Aires. No verso desta fotografia, está escrito apenas o sobrenome Müller e a localidade de Linha Arroio Grande. Alguém conhece?

O ano de Pelé e de João Coragem

Há exatos 50 anos o Brasil vibrava com aquilo que se consagrou como as maiores audiências da TV: futebol e novelas. O Mundial no México, que marcou o tricampeonato do Brasil, foi visto por um então adolescente da porta do matadouro Santo Antônio, localizado na rua Voluntários da Pátria.

Esse modelo de TV também faz parte do acervo do Museu e é da década de 1960. A imagem no tubo, de Pelé comemorando o tri Mundial, é apenas ilustrativa (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

“Mesmo com todo o movimento, na hora dos jogos a TV era colocada sobre uma geladeira e virada para rua. O pátio era grande e nós disputávamos os melhores lugares, sentados na grama. Minha irmã, Ilani, trabalhava lá e reservava um lugar bem na frente para mim”, recorda o corretor de imóveis, Telmo Kist, hoje com 66 anos.

Mas a unanimidade nacional em 1970 era outra: a novela Irmãos Coragem. No bairro Coronel Brito, o ponto era o salão de bailes e casa comercial de Celso Becker. Era lá que ficava, talvez, a única televisão dos arredores. O salão era aberto toda a noite e uma grande turma se acotovelava para assistir, vibrar e torcer pelos personagens da novela.

“Era um compromisso diário, chegar do trabalho, tomar banho e ir assistir a novela no salão. Alguns namoros e casamentos se formaram ali. E muitos apelidos, de personagens da novela, foram colocados e continuam até hoje, como João Coragem e Juca Cipó”, conta Telmo Kist.

João de David, que em 1970 era o ‘João Coragem’ do bairro Coronel Brito (Foto: Arquivo pessoal)

Um dos ‘João Coragem’ é João Valter Rossato de David, 70 anos, que mora em São Paulo há 46 anos e carrega o apelido até hoje. “As garotas diziam que eu parecia o Tarcísio Meira. Imagina se ele fica sabendo?”, provoca. Em 1970, o microempresário morava no bairro Coronel Brito e lembra que a novela era uma verdadeira ‘febre’.

Para quem não viveu nesse tempo, João Coragem foi interpretado pelo ator Tarcísio Meira, então galã da Rede Globo. O sucesso do folhetim foi tanto que a novela ficou no ar por mais de um ano e teve mais audiência que a final da Copa.

Susto

Se 1970 foi marcante na memória de Telmo Kist, ele também não esquece do susto que levou na primeira vez que viu uma TV, aos 8 anos. Foi em 1962, quando ainda morava no então distrito de Rio Pardo, Passo do Sobrado. “Era da família Ferreira e parecia uma eletrola. Abriram a janela e eu fiquei a um metro dela. Só lembro de um comercial da Varig. Na imagem o avião decolou e veio na nossa direção. Todos se jogaram para trás”, lembra, entre risos.

Apelido

Além de João Coragem, as novelas continuaram rendendo apelidos. Em 1986, quando “Roda de Fogo” era a atração do horário nobre na Rede Globo, José Alceu Ferreira, um jovem motorista, virou Tabaquinho. A alcunha foi inspirada no personagem ‘Tabaco’, interpretado pelo ator Osmar Prado e que também era motorista na novela. Tabaquinho, hoje aposentado, foi motorista de vários prefeitos de Venâncio e Almedo Dettenborn começou a chamá-lo assim.

Luiz Kist tinha 12 anos quando viu as primeiras imagens de uma TV (Foto: Arquivo pessoal)

Madrugada

  • Luiz Carlos Kist tinha 12 anos quando viu a primeira televisão. A marca ele não lembra, mas diz que o preto e branco era tão emocionante aos olhos como se fosse colorido. Em 1970, ele tinha uma tarefa semanal: levava as costuras da mãe Cecília para as lojas ‘dos turcos’, no centro.
  • Na volta, trazia sob o braço um rolo de tecido novo, para mais encomendas, e parava na antiga churrascaria de Plínio Closs, na rua General Osório. “Ele me deixava sentar na porta para olhar e ali, com aquele monte de tecido no colo, eu me divertia com a novela Pigmalião 70.”
  • Em casa, Kist lembra que a primeira TV foi comprada em 1973. O aparelho era uma Admiral, adquirida na loja dos Geller. “Naquela noite passou Psicose, clássico de Alfred Hitchcok. Depois ainda olhamos Drácula, com o Peter Cushing e o Christopher Lee. Era a Sessão Mistério, no canal 10. Assistir TV era incrível e a gente perdia o sono.”
  • Ele lembra que o botão do aparelho era tão barulhento que, a cada troca de canal, entre o 10 e o 12, se ouvia um pigarro do pai Arno, no quarto ao lado. “Era o sinal que a gente devia ir dormir.”

Impressões de repórter

Se hoje a internet e os serviços de streaming dão acesso a tudo, como imaginar isso há 30 anos? Mas foi nesse tempo, onde a TV era ‘o mundo’, que descobri muita coisa.

Contam meus pais que tudo começou ainda em novembro de 1986, quando eu tinha poucos dias. Naquela fase de ‘troca de sono’ dos bebês, eu ficava de olhos arregalados para os vultos em preto e branco de Moe, Larry e Curly, Os Três Patetas.

Com cinco anos ouvi pela primeira vez e me encantei com o tema do filme “Três homens em conflito”. Com sete, não tinha real dimensão da morte de Ayrton Senna, mas chorei com meu irmão mais velho. E aos nove anos já sabia muito sobre 2ª Guerra Mundial, reforma agrária e política, graças à novela O Rei do Gado.

Sim, a televisão me ensinou muito. Um veículo de comunicação poderoso e que ajuda a preservar a História e a formar gerações. Assim como o rádio, a internet e o jornal. Vida longa a todos eles.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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