Quando o diagnóstico de autismo oferece a possibilidade de se (re)conhecer

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O diagnóstico de autismo de Rafael Lovato, aos 45 anos, deixou amigos e familiares confusos, mas representou uma nova perspectiva para o escritor. “Foi a coisa mais importante da minha vida”, define o venâncio-airense que reside em Porto Alegre e tem uma carreira carimbada pela aprovação em diversos concursos públicos, a atuação como procurador geral do Banco Central (Bacen) e autoria de 10 livros publicados no Brasil e no exterior.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) não foi empecilho para a construção um currículo invejável a Lovato. No entanto, uma série de conflitos internos e desafios de interação social o acompanham desde criança. “Fiz terapia a vida toda, até que, no ano passado, uma psicóloga muito sensível levantou a possibilidade de eu ser autista e a psiquiatra fez o diagnóstico, após uma série de perguntas que ninguém nunca tinha feito e que fizeram todo o sentido. Era como se ela conhecesse toda minha vida”, destaca.

Geralmente diagnosticado aos 2 ou 3 anos, o TEA é um transtorno do desenvolvimento do cérebro que acarreta alterações no comportamento, na comunicação e socialização. Ele se manifesta em diversos níveis – de leve, o que pode fazer com que passe despercebido por boa parte da vida, como no caso de Lovato, até gravíssimo.

Lovato conta que fez o primeiro teste de Quociente de Inteligência (QI) aos 5 anos. O resultado acima da média chamou a atenção da família que, desde então, soube que ele era ‘diferente’. “Além do QI alto, sempre tive muitos medos e dificuldade de relacionamento, mas na época não se falava em autismo como hoje, só se identificava quando eram casos muito graves.”

A identificação do autismo permitiu que Lovato se redescobrisse. “Hoje vejo que inúmeras situações da minha vida são em razão do TEA. De forma externa, nunca tive maiores problemas, mas internamente sim. O mundo é um lugar hostil para mim até hoje. Não é fácil interagir com as pessoas, por não saber as reações delas, pois para mim tudo é muito concreto”, explica Lovato.

Justamente por isso, o diagnóstico foi tão importante para ele. “Finalmente tenho justificativa para muita coisa que eu fiz, compreendo porque me sentia mal em algumas situações, como dormir fora de casa, ou com as mudanças no cotidiano, que causam um tremendo sofrimento. Sabendo que não sou como as outras pessoas, vejo de forma diferente”, ressalta o escritor.

Outro aspecto importante para ele foi que, a partir do diagnóstico e da relação do autismo com o Transtorno de Obsessivo Compulsivo (TOC) gravíssimo e a ansiedade, ele passou a utilizar medicamentos que auxiliaram de forma significativa. “Não existe medicamento específico para o TEA, mas para o TOC e a ansiedade, sim. Isso me ajudou muito mais do que o esperado”, garante, ao mencionar a relação entre os transtornos. “O autismo gera ansiedade, que, por sua vez, gera o TOC”, explica.

“Apesar de o meu TEA ser leve, eu lutei a vida toda com ansiedade, com dificuldade de compreender as pessoas, de me relacionar com os outros, de compreender sentimentos. Continuo a mesma pessoa, não mudei nada, apesar de internamente este diagnóstico ter mudado minha vida, pois consegui compreender tanta coisa que eu nunca havia entendido sobre mim mesmo. Ao expor a situação, minha intenção é justamente auxiliar pessoas que, como eu, sofrem e talvez não tenham o diagnóstico.”
RAFAEL LOVATO – Escritor

No apoio familiar, a adaptação e o ‘filtro’ do mundo

Como demorar tanto tempo para ser diagnosticado como autista? Ao analisar sua trajetória, Rafael Lovato levanta uma série de aspectos que contribuíram para isso e se somam ao fato de que, apenas na última década, tem se identificado mais facilmente as formas leves do transtorno. Na infância, ele estudou no Colégio Gaspar Silveira Martins, de Venâncio Aires, cujo diretor era o tio Osvaldo Fiegenbaum e onde também atuava como professora a tia Nydia. “Desde o jardim, estudei com a tutela dos meus tios, que sempre me auxiliaram e protegeram. Não tive problemas no Ensino Fundamental, o que é típico dos autistas”, observa.

Ele conta que, só adulto, soube que as provas aplicadas a ele era diferentes das dos colegas, por conta do QI muito alto. “Poucos anos atrás fiquei sabendo que, enquanto os colegas faziam provas de duas páginas, as minhas eram de cinco, seis. Enquanto os colegas faziam os exercícios do quadro, eu fazia também os dos livros dos professores, pois terminava muito rápido. Hoje sei que nunca tive problemas no ensino porque tive adaptações”, evidencia.

Além disso, como sempre preferiu ficar isolado, não passou por situações de bullying ou se sentiu sozinho. “Desde os 15 anos sempre tive namoradas e casei com 20 anos, sempre tendo alguém do meu lado e ficando em casa, sem a necessidade de tanta interação.”

Outra questão enfatizada por ele é o papel da esposa Melissa Deitos Kreling, com quem é casado há 26 anos. O casal não tem filhos, mas vive com sete gatos, em Porto Alegre. “Com certeza, minha esposa contribuiu muito, por ser meu ‘filtro’ com o mundo externo, amenizando minhas dificuldades e auxiliando a lidar com as situações”, considera.

Trajetória

• Natural de Venâncio Aires, Rafal Lovato é advogado e escritor. Foi aprovado em diversos concursos públicos.
• Em 2002, passou em 1º lugar para o concurso de Procurador Jurídico da Prefeitura de Venâncio.
• Desde 2006, é procurador do Banco Central (Bacen) em Porto Alegre, onde mora com a esposa, a psicóloga e advogada Melissa Deitos Kreling, procuradora da república da Advocacia Geral da União (AGU).
• Lovato é autor de dez livros, publicados nos Estados Unidos, em Portugal e no Brasil, e foi colunista da Folha do Mate por vários anos.
• Seu conto premiado ‘Nulla in mundo pax sincera’ foi adquirido pela Oxford Univesity Press e publicado em seu material didático como modelo de escrita de contos de ficção.
• Em 2018, conquistou o primeiro lugar do prêmio de contos ‘Asymmetry Flash fiction contest: grifts’, realizado nos Estados Unidos, com a obra intitulada Flukes of destiny (Acasos do destino)
• Em breve, vai lançar seu novo livro, a novela ‘Deletação’, pela Editora Coralina.

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Juliana Bencke

Juliana Bencke

Editora de Cadernos, responsável pela coordenação de cadernos especiais, revistas e demais conteúdos publicitários da Folha do Mate

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