Os grandes olhos escuros são os mesmos, o cabelo clarinho é o mesmo, o cuidado ao enfileirar os brinquedos é o mesmo e a faceirice escancarada num sorriso cheio de dentes também é a mesma. Mas está bem mais alto, mais falante e mais ‘serelepe’, como são os guris dessa idade. Com 4 anos e oito meses, Gean Benno Bohn, o menino que superou uma leucemia, se prepara agora para outros desafios em 2022: estudar e assumir o posto de irmão mais velho.
A história dele ganhou destaque pela primeira vez na capa da Folha do Mate em outubro de 2019. Na época, o jornal repercutiu a grande notícia para a família e amigos: um doador compatível para o transplante de medula óssea.
O procedimento, realizado em novembro do mesmo ano, marcou o grande passo do menino, que já se tratava contra a leucemia desde agosto de 2018, quando tinha apenas um ano e quatro meses. Considerado curado, Gean tem vivido dias mais tranquilos e cada vez mais longe do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, onde sempre foi tratado. “A última biópsia, realizada em setembro, deu negativa. Não tem resíduo da doença”, revelou a mãe, Gabrielle Borba Gonçalves, 25 anos.
Como era esperado, o primeiro ano foi de poucos dias em casa, em Centro Linha Brasil, interior de Venâncio Aires, e muitos na capital, onde a família morou durante boa parte do tratamento. A proximidade foi necessária porque toda a medição era recebida diretamente no hospital. Além disso, na metade de 2020, Gean contraiu uma bactéria e precisou ficar até na UTI. Depois disso, foram mais três internações e, desde outubro do ano passado, o menino vai a Porto Alegre para consultas: no início semanais, depois quinzenais, mensais e hoje a cada três meses.
Gean ainda precisa de acompanhamento por três anos (são cinco após o transplante). Enquanto isso, deve seguir tomando dois antibióticos (para vírus e fungos) e uma vitamina (ácido fólico).
Desafios
Para quem enfrentou um câncer e passou a maior parte dos seus 4 anos dentro de um hospital, Gean ainda precisa correr atrás de coisas que ficaram pelo caminho. Há dois fatores simples para muitos, mas que estão começando praticamente do ‘zero’: a alimentação e a fala.
Há um consenso de que as quimioterapias causaram um trauma no paladar, por isso o menino segue bem seletivo com a comida. O que aceita bem é a fórmula, a mesma da sonda usada durante muito tempo e que tem todos os complementos nutricionais, além do iogurte, que ele tanto gostava antes do transplante e que segue na dieta.
Sobre a alimentação e o desenvolvimento da fala, já há encaminhamento médico, também por profissionais do Hospital de Clínicas, para acompanhamento de endocrinologista, neuropediatra e otorrinolaringologista.
Assim como o tratamento da leucemia, tudo será custeado via Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a família faz questão de lembrar que os tempos na capital resultaram em despesas e houve muita ajuda de amigos, que organizaram ações beneficentes.
À espera da escola e da mana Rafaela
Para 2022, Gean viverá um ano duplamente especial. Já no início, estará matriculado no pré da Escola de Ensino Fundamental Santa Isabel, de Linha Isabel, para aulas à distância. O motivo do ensino remoto é porque o menino precisa estar em dia com as vacinas. “O tratamento praticamente ‘destrói’ tudo no corpo, então o Gean não tem imunização nenhuma, perdeu os anticorpos e precisa refazer as vacinas que recebeu quando era pequeno”, explicou o pai, Gelson Fabiano Bohn, 43 anos.
Ele espera por um ‘ok’ da Coordenadoria Regional de Saúde para o envio da ‘hexavalente’, uma vacina especial para seis doenças. Depois dessa, estará liberado para receber outras imunizações e, aí assim, frequentar presencialmente as aulas.
Homenagem
Já para o fim de abril, pertinho do aniversário de Gean (que nasceu no feriado de Tiradentes), deve vir ao mundo a Rafaela (Gabrielle está grávida de 21 semanas). A irmã caçula de Gean terá um segundo nome, Soely, em homenagem a uma das bisavós, que tem 81 anos, e é a avó paterna de Gabrielle. “Foi ela quem me criou”, conta a estagiária de Pedagogia. Situação semelhante aconteceu no registro de Gean, cujo segundo nome é Benno, por causa de um bisavô paterno.
A cura veio do Maranhão
Passados dois anos do transplante, o Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome), mantido pelo Instituto Nacional do Câncer, pode disponibilizar os contatos de quem doou a medula e de quem a recebeu.
Se houver sinalização positiva de ambos, assina-se um termo e os contatos podem ser trocados. Assim, os pais de Gean descobriram que quem ajudou a curar o filho nasceu em Brasília e hoje mora no Maranhão, estado que fica na outra ponta do país, a mais de 3 mil quilômetros.
“No início sabíamos apenas que foi uma mulher e decidimos mandar um e-mail. Mas, antes de a gente fazer contato, já chegou uma mensagem dela. Queria saber como estava o Gean, porque ela tem dois filhos e um também já teve um problema de saúde”, conta Gabrielle.
Encontrar uma doadora foi realmente um ‘achado’. Para se ter uma ideia, foram analisadas 12 proteínas colhidas da medula de ambos. Para ser compatível, era necessário que 10 fossem idênticas e, no caso de Gean, a compatibilidade apareceu em 11. O resultado é muito raro, já que para pessoas que não são parentes, é um para cada 100 mil. É como se Gean e a doadora fossem gêmeos.
“Não foi fácil e o apoio da família e amigos foi fundamental. Mas nós só temos motivos para comemorar nossa saúde neste Natal e o 2022 será melhor ainda”, concluiu a mãe de Gean.
Impressões da repórter
Em 2018, quando tinha apenas um ano e quatro meses, Gean foi constatado com a leucemia LLA B. Segundo a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), este tipo é responsável por 75% dos casos de leucemia em crianças e adolescentes, mas a notícia boa é que 90% das crianças em tratamento chegam à cura. Felizmente, o Gean já contribui para manter essa boa estatística.
Essa semana, ao voltar à casa dos Bohn para falar da evolução do menino, ele me recebeu com um ‘oi’ carregado de significados. Em 2019, quando o conheci, o pequeno também se aproximou de mim, sorridente, curioso e com uma grande energia. Na época, eu estava grávida do Rafael e, bem mais sensível, derramei algumas lágrimas escrevendo aquela matéria sobre um doador compatível.
Coincidência ou não, quando voltei lá esta semana, Gabrielle me contou que dessa vez é ela quem está grávida, esperando a Rafaela e, novamente, foi difícil não chorar escrevendo essas linhas. Afinal, a família que comemora a volta da saúde do Gean, terá mais uma vida para celebrar em 2022. E que assim seja: um ano de muita saúde e que todas as vidas sejam muito celebradas.