Embora não seja o 20 de setembro o precursor de um debate que gerou polêmica em todas as querências nesta semana, é um assunto que nos remete à Revolução Farroupilha que trouxe, de volta, uma reflexão histórica, social e também política.
Depois de 54 anos, a letra do hino rio-grandense pode sofrer uma nova alteração. A proposta de mudar um trecho do hino voltou à pauta no dia 1º de janeiro, quando a bancada negra da Câmara de Vereadores de Porto Alegre decidiu não se levantar para a execução do hino gaúcho, durante a posse da nova legislatura. Para os vereadores, o trecho que diz “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” faz uma menção racista.
O assunto não é novo e já foi discutido e a alteração já foi proposta anteriormente. Porém, em tempos de redes sociais, o debate ganha ainda mais espaço e levou o deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT) a propor uma nova redação à última estrofe do hino.
Pela proposta que será protocolada em fevereiro na Assembleia Legislativa, o verso seria alterado para “povo que é lança e virtude a clava quer ver escravo”. Para o parlamentar, “não podemos ter medo de enfrentar a nossa História” e defende que o hino não é algo imutável. “Temos muitos exemplos de reconsiderações históricas de cunho progressista no mundo inteiro.”
O assunto vem rendendo manifestações de diversas entidades e até reações no Parlamento gaúcho. O deputado estadual Ruy Irigaray (PSL) protocolou projeto de lei para instituir a ‘imutabilidade’ dos símbolos estaduais, como o hino rio-grandense. Se aprovado, eles não poderão ser alterados. “Não podemos permitir que o nosso hino tenha qualquer tipo de alteração. Não podemos aceitar esse absurdo contra a tradição gaúcha. Precisamos proteger e respeitar os símbolos, origem e história do nosso Estado”, defende.
Com intuito de repercutir o assunto em Venâncio Aires, a Folha do Mate contatou entidades do município. Organizações que representam o movimento negro e lutam contra o racismo foram ouvidas. Além disso, por se tratar de um símbolo oficial do Estado que é e enaltecido, sobretudo, pelas entidades tradicionalistas, a reportagem também ouviu a Associação Tradicionalista Venâncio-airense (ATVA), que representa atualmente dez entidades.
Movimento Negro de Venâncio Aires
“O debate sobre o racismo presente no hino do Rio Grande do Sul é necessário! Assim como tantos outros, venho trazendo essa percepção há anos em instituições de ensino por onde tenho passado. Inclusive minha performance cênica ‘Iya Dudu’ faz essa crítica ao hino com uma versão que produzi como forma de resistência, a qual também vem sendo cantada em eventos por uma amiga, Gerusa Bittencourt. Nunca antes essa pauta foi debatida em tantos espaços diferentes do RS, ocupando espaços em mídias estaduais e nacionais. Precisamos observar os contextos do passado e perceber os contextos do presente. Quando uma pessoa não negra canta “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, ela não sente o mesmo que uma pessoa negra, porque ela, ou a maioria delas não tem empatia a ponto de se colocar no lugar de quem era escravizado. Diferente de nós, negros. Ela vai cantar como cantavam os heróis farroupilhas, como Bento Gonçalves. Eu vou cantar sentindo a dor dos Lanceiros Negros assassinados, a traição por esses heróis farrapos e tantos outros negros escravizados, inclusive por Bento Gonçalves. É necessário fazer esse debate, mas muito além do debate, fazer as alterações necessárias no hino, mas não de forma isolada, mas sim ouvindo os diferentes movimentos negros e as instituições negras, pois somente dessa forma uma alteração será e terá representatividade de fato. O sentido de um hino é pra representar e unir os povos de uma nação, não segregar e excluir.”
SÉRGIO ROSA – Ator, escritor, vice-presidente do Movimento Negro de Venâncio Aires. Membro da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra/OAB/RS
Associação Tradicionalista
“O hino do RS é lindo, provavelmente um dos mais bonitos do país. No meu entendimento não é racista. “Não tirar o homem do seu tempo” é um exercício fundamental na arte de interpretar questões históricas, afinal, nós não a vivemos, apenas a cultuamos no intuito de preservá-la.
Sempre cantei e vou continuar cantando o hino a plenos pulmões. Contudo, precisamos respeitar a legitimidade daqueles que entendem que ele é sim, racista. Empatia pelo movimento negro, é uma forma de respeito as opiniões divergentes.
Um debate sobre esse tema pode ser salutar e legítimo, mas na forma como se apresenta a discussão no momento, é oportunista, politiqueiro e raso. Dentro do tradicionalismo conheço muitos negros que discordam sobre o hino. E me chama atenção que “entre eles há respeito às opiniões”. Se fizermos o mesmo e tratarmos o assunto de forma séria, apartidária e sem paixões, chegaremos num melhor consenso logo à frente.”
EAGRO MÜLLER – Presidente da Associação Tradicionalista Venâncio-airense (ATVA)
ONG Alphorria
“Sabemos que a criação de símbolos e tradições são estratégicas na formação de nações, estados e cidades porque produzem o sentimento de pertença, de patriotismo, a determinado lugar e história. A escolha de um hino é uma destas estratégias. Muitas manifestações contrárias ao hino rio-grandense precedem ao ocorrido na Câmara de Vereadores de Porto Alegre recentemente. Há divergências de interpretação sobre o verdadeiro significado dos versos “povo que não tem virtude/ acaba por ser escravo”. Por essa razão é chegado o momento em que o tema deve ser amplamente debatido na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e discutido por diversos segmentos da sociedade. Entendemos que a história do Rio Grande do Sul como um todo, em especial a romantização sobre a Revolução Farroupilha, precisa ser revista, mas é um processo de desconstrução a ser feito em conjunto e entendido por toda a sociedade. A ONG Alphorria entende que quando surgem os conflitos, as soluções devem ser resolvidas com o diálogo e com políticas públicas de valorização da vida de todas as pessoas, através de ações concretas.”
Ana Lúcia Landim – Coordenadora da ONG Alphorria (Movimento dos Afrodescendente de Venâncio Aires)
“Do ponto de vista histórico, o contexto de criação do hino é um contexto escravista”
Em meio ao debate sobre a alteração de um trecho do hino rio-grandense, algumas pessoas defendem a necessidade de uma reconsideração histórica, outras argumentam que é uma questão de interpretação. Para a professora e historiadora Angelita da Rosa, os símbolos não devem ser estáticos, mas precisam ser uma expressão de um pertencimento das pessoas. “Se o símbolo não for focado numa ideia de pertencimento, ele não tem identidade, ele não é identitário”, destaca a professora.
Segundo a historiadora, quando se faz uma reflexão, nos dias atuais, sobre a possibilidade de interpretações diversas, de fato pode-se pensar em diversos tipos de escravidão, como a política, econômica, uma escravidão do tempo ou até mesmo do telefone. Porém, observa a professora, do ponto de vista histórico, a parte do hino rio-grandense que está sendo debatida está relacionada à escravidão negra no Brasil. “A escravidão negra foi tão naturalizada naquela época, que as pessoas que fizeram o hino, no contexto da Revolução Farroupilha, entendiam que aqueles que não tinham virtude alguma poderiam ser escravos. É importante pensar que os negros escravizados e que estavam na guerra foram uma espécie de “bucha de canhão”, onde os Lanceiros Negros iam na frente para serem mortos. Assim, é necessário o entendimento que os escravos eram considerados uma sub-raça, sub-humanos. Não se tinha a ideia do homem e da mulher negros como pessoas, mas como objetos, comprados como peças e vendidos como peças, tanto que as pessoas negras eram expostas como mercadoria. E realmente o hino diz isso, que uma pessoa que não tem virtude, como os negros não tinham no contexto daquela época, só poderiam ser escravos”, analisa.
“Surge a oportunidade de revermos e revisitarmos as nossas memórias e a nossa identidade acerca da população negra e deste momento tão triste, que foi a escravidão.”
ANGELITA DA ROSA – Historiadora
Embora ainda não seja possível saber se a alteração da letra será aprovada, para Angelita
este debate convida a população a repensar algumas questões, principalmente a partir do movimento Vidas Negras Importam. “É preciso repensar esse assunto e a participação dos negros na Revolução Farroupilha, uma participação baseada em um sonho, num embalo em busca de uma libertação, que não veio, que não ocorreu”, destaca.
Neste processo de revisionismo, defende Angelita, os historiadores têm a oportunidade de não negar mais fatos e de colocar em pauta uma discussão das memórias e identidades. “Sabemos que a história foi baseada no homem branco, forte e vencedor, por isso, temos que reolhar a história brasileira e mundial.”