Conheça a trajetória da parteira que ajudou a trazer ao mundo milhares de venâncio-airenses entre as décadas de 1930 e 1960.
“Entregue ela a Deus”, alertou Mariechen, como era conhecida a experiente parteira Maria Kunz Zembski, na Venâncio Aires de mais de 60 anos atrás. Foi ela quem trouxe ao mundo uma pequena menina, nascida de seis meses e meio, no dia de São Miguel (29 de setembro) de 1957, no Hospital São Sebastião Mártir (HSSM). Era um corpinho de cerca de 30 centímetros e pouco mais de um quilo. A pele tinha um tom arroxeado e nem conseguia chorar.
Muito religiosa, Mariechen tomou a liberdade e chamou a prematura de Maria. O médico, Clécio Schmaedecke, recomendou cuidados e advertiu que havia risco. Com medo do pior, os pais decidiram que ela precisava ser batizada. “Que morra como anjo”, disse a mãe. A missão de atravessar a rua rapidamente e levá-la à igreja católica coube aos padrinhos que, com a mesma pressa, voltaram ao hospital, após a bênção do padre Albino Juchem.
Conhecedora dessas situações, a parteira Mariechen também fez recomendações, da forma como costumava lidar com outros bebês ‘apressados’. Como um pacotinho, a recém-nascida ficou envolta em panos e, de tão miúda, cabia dentro de uma caixa de sapato. Garrafas com água quente a aqueciam e alguém sempre colocava a mão para sentir o coração, o qual bateria por 59 anos.
A história do nascimento de Maria Rejane é mais uma de tempos sem tantos recursos, mas que o conhecimento popular e a fé ajudaram a nascer, sobreviver e crescer. Conhecimento e fé que a parteira Mariechen tinha de sobra e assim ajudou a trazer ao mundo muitos venâncio-airenses. É a história dela que a Folha conta a seguir.
A pequena Maria
Essa história começa quando Venâncio Aires ‘debutava’ enquanto município, sob o comando de Coronel Thomaz Pereira. Em 19 de julho de 1906, em Linha Isabel, nasceu a filha mais velha de José Renaldo Kunz e Anna Wilke. A chamaram, apenas, de Maria, que virou Mariazinha, ou, para os familiarizados no dialeto germânico, ‘Mariechen’ (como se escreve em alemão, no diminutivo).
No início da década de 1930, Mariechen trabalhou no Hospital Santa Cruz e muito aprendeu com médicos e enfermeiras. Lá também começou a ter as primeiras experiências como parteira e essa condição lhe trouxe de volta a Venâncio Aires. Em 1936, um ano depois da fundação do Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), Maria Kunz começou a trabalhar na instituição comandada pelas irmãs da igreja católica e pelo vigário, o cônego Albino Juchem. Dentro daquelas paredes e das casas que contribuíram para a urbanização da ‘vila’ ao redor do templo de São Sebastião Mártir, Mariechen atendeu o “parto de milhares de mulheres”. Essa frase está numa edição de julho de 1986 da Folha do Mate, lembrança dos 80 anos da personagem.
Milhares
Sem documentos precisos, essa é a referência mais próxima em números para imaginar quantas crianças nasceram pelas mãos dela, embora a pista de um possível registro em papel exista. “Há muitos anos conversei com ela e me perguntou como era meu nome. Respondi e ela disse: ‘tu tá no meu caderno’. Então ela tinha anotado os partos que fez, mas não sei quem ficou com esse material”, conta Norma Barden. A educadora ambiental vai completar 70 anos dia 23 de janeiro e nasceu pelas mãos de Mariechen.
“Milhares” não é exagero, afinal Maria Kunz trabalhou como parteira por cerca de 40 anos. Entre as pessoas conhecidas na comunidade, nasceram com a ajuda dela o ex-deputado Selvino Heck (1951), o médico e primeiro pediatra de Venâncio, Flávio Seibt (1947), um dos primeiros dentistas da cidade, Guido Reckziegel (1940), Wilson José Weschenfelder (1948), que foi editor da Folha do Mate, Walter Kuhn (1949), um dos fundadores da Folha, e a professora e fundadora da ONG Parceiros da Esperança (Paresp), Sara da Rosa (1942).
Lembranças da Titi
Maria Kunz morava numa casinha de madeira, de cor laranja, na rua Jacob Becker, em frente ao hospital. A residência ficava ao lado da morada da família Spies (onde hoje é o prédio da Unimed, bem na esquina com a rua Tiradentes). Com isso, ficou amiga de José Mathias e Alice, que chegaram de Roca Sales no fim dos anos 1940, já com o filho mais velho, Júlio César.
Mariechen ajudaria no parto dos outros sete filhos dos Spies. Um deles é Clarel de Menezes Spies, 75 anos. O advogado e bancário aposentado nasceu em casa, em março de 1949. “Não se deram ao trabalho de atravessar a rua”, relata, em tom de brincadeira, se referindo à proximidade com o hospital, onde Armando Ruschel era o principal médico. “A Mariechen era muito amiga dos meus pais. Da casa dela para a nossa tinha uma passagem pelos fundos. Nós, as crianças, chamávamos ela de Titi. É minha madrinha de batismo. Eu e um monte de criança virou afilhado dela.”
Como também tinha conhecimento em enfermagem, Maria Kunz era responsável por outras questões dentro do hospital. Uma delas, uma lembrança não muito ‘agradável’ para as crianças. “Quando ela chegava com uma maleta preta, a gente já sabia que tinha vacina por fazer. Até tentava me esconder, mas não conseguia fugir das injeções”, revela Clarel, entre risos.
“Metade da população eu tirei”, dizia a parteira
Paulo Cesar Schmaedecke tinha apenas 4 anos quando o pai, o médico Clécio (1918-1998), voltou para trabalhar na terra natal. Em 1955, Clécio se somou a Armando Ruschel e outros três médicos, número que alguns até consideravam um ‘exagero’ para as demandas da população daquela época.
O profissional (filho do também médico e nome de rua, Reynaldo Schmaedecke), construiu sua casa na esquina da rua Barão do Triunfo com a Tiradentes (atual Barão Bar e Prosa). Como Mariechen já tinha mudado da casa da Jacob Becker para uma residência na Tiradentes, na frente da atual agência Sicredi, também ficou muito amiga dos Schmaedecke. “Convivemos muito com ela e eu a considerava uma avó. Era uma pessoal extremamente atenciosa e sempre disponível a ajudar todos. Muito religiosa e ponderada nas decisões”, descreve Paulo Cesar, hoje com 73 anos.
O engenheiro aposentado mora em Santa Cruz do Sul, mas como cresceu em Venâncio Aires, é um entusiasta da histórica local. Em 2017, com a professora aposentada Losane Wazlawovsky, criou um grupo no Facebook para divulgação de fotos e informações antigas. É o ‘Venancioairenses’, que conta com 18,7 mil participantes. Nessa página, há alguns registros sobre Maria Kunz. Conforme Paulo Cesar Schmaedecke, a parteira adorava crianças e ia feliz todas as vezes que chegavam chamados para mais um nascimento. “Ela mesma dizia: ‘metade da população eu tirei’”.
O companheiro da parteira veio ‘do estrangeiro’
Dalva Geny Schuler de Castro, 84 anos, trabalhou durante mais de 20 anos no administrativo do Hospital São Sebastião Mártir, mas conheceu Mariechen muito antes, afinal, cresceu numa casa em frente aos Correios, na rua Tiradentes. Ela conta que a parteira também tinha outro talento com as mãos: furar as orelhas das meninas. “Colocava uma rolha atrás e furava com o próprio brinco, que tinha que ser de ouro, para não infeccionar.”
A aposentada também comenta que a vida particular de Mariechen gerava curiosidade, afinal, até uma certa idade, era solteira. “Ela sempre dizia que o companheiro viria ‘do estrangeiro’.” Já com mais de 40 anos, a parteira conheceu o polonês Martin Zembski, que veio para o Brasil após presenciar os horrores da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Eles se casaram e Maria adotou o sobrenome do marido. Zembski também atuou como enfermeiro no hospital e, conforme relatos de quem conviveu com ele, era um homem fechado, que conversava com poucas pessoas e somente em alemão. Faleceu na década de 1970.
Junto da amiga, a irmã Ludberga (que iniciou o Jardim de Infância no Colégio Aparecida), Maria Kunz Zembski também é uma das fundadoras das Damas da Caridade (1965), grupo ligado à Paróquia Católica São Sebastião Mártir. Depois de aposentada, as obras assistenciais acabaram ocupando a maior parte do tempo de Mariechen, também no Centro Promocional João XXIII.
Família da parteira
Mariechen teve quatro irmãos: José Lourenço, Wilma Helena (que foi diretora da escola Monte das Tabocas e que é nome de rua), Edmundo Aloisyus (que foi bispo auxiliar da Diocese de Porto Alegre) e a caçula, Thereza Margarida, a única que teve filhos. “A madrinha foi a Porto Alegre acompanhar meu nascimento, em 1957, e da minha irmã, Jeanine, em 1963”, relata a sobrinha e afilhada de Maria, Mirela Starhan, 67 anos. A dentista, que ainda mora na capital, é mãe de Christian, nascido em 1975, e Ana, de 1988. “Nos nascimentos dos meus filhos, novamente a madrinha fez questão de ir a Porto Alegre e ficou com as crianças até cair o umbigo”, conta.
“Precisa de vitamina K, doutor”
Ana Maria de Brito Lopes, 77 anos, cresceu numa casa na rua Tiradentes, em frente à Praça Católica, onde morou o avô João Luiz Ferreira de Brito (1870-1925). Coronel Brito, que é nome de bairro, foi intendente de Venâncio entre 1912 e 1924. A aposentada lembra bem de Mariechen e diz que ela lidou com partos delicados, onde muitas mães sofriam com hemorragias. “Quando o doutor Clécio veio, formaram uma dupla e tanto. A Mariechen sempre pedia para ele medicamentos e um dos itens era a vitamina K”, conta Ana, se referindo à vitamina usada no processo de coagulação sanguínea, para evitar hemorragias.
Ana e os outros cinco irmãos nasceram pelas mãos de Mariechen. “Era uma pessoa justíssima e alegre, gostava de cantar na igreja. Sempre preocupada com as mães após o nascimento, tinha ideias para aproveitar melhor os alimentos. Naquele tempo fazia uma sopinha com milho ralado, virava um amido, para ajudar na alimentação das crianças quando as mães não tinham leite.”
Conforme Ana Maria, a parteira brincava que era ‘freguesa’ de algumas famílias, porque quase todo ano nascia um bebê. “Ela já sabia a época e anotava assim: ‘por volta de’ vai chegar um bebê. Tinha as parteiras locais, mas muita gente do interior vinha buscar ela.” Além de Mariechen, outras parteiras conhecidas na área urbana eram Paulina Henn e Tica – esta, aliás, é nome de rua.
O nome da Cleris
Uma das lojas mais tradicionais de Venâncio Aires, localizada bem no Centro, virou também ponto de referência. Afinal, quem é do município, sabe onde fica a ‘esquina da Cleris’. Mas enquanto a nomenclatura é comum aos ouvidos dos venâncio-airenses, a pessoa responsável por isso é, talvez, a única que carrega esse nome no município. “Acho que não tem outra Cleris em Venâncio. É um nome incomum”, relata Cleris Hamester, 74 anos, proprietária da Cleris Calçados.
Filha de Anália e Victor Schuck (sobrinho de Vicente Schuck, primeiro presidente da Câmara de Vereadores), Cleris nasceu dia 27 de setembro de 1950, em casa, no fim da rua Sete de Setembro, onde o pai tinha olaria. Quem ajudou a trazê-la ao mundo foi Mariechen que, ao colocar a menina nos braços da mãe, perguntou: “Qual será o nome dela?” Os pais, sem jeito, responderam que não tinham pensado, porque na verdade esperavam um menino.
“Como a minha irmã era Iris [nascida em 1948 e já falecida], a Mariechen pensou num nome pra combinar, que tivesse o mesmo som no fim. Então sugeriu Cleris e meus pais gostaram.” A empresária cresceu sabendo dessa história e, muitos anos depois, quando já tinha a loja de calçados, certo dia uma cliente em especial entrou. Era a parteira. “Quando ela me viu, logo me disse que tinha sido ela quem me deu o nome.”
“A alegria da vida dela era trazer crianças ao mundo. Sempre considerou todos os nenês que ajudou a nascer como uma grande família.”
MIRELA STARHAN – Dentista e sobrinha de Maria Kunz Zembski
“Não deixou filhos”
Dia 20 de janeiro, quando Venâncio Aires celebra o padroeiro São Sebastião Mártir, também é Dia Nacional da Parteira Nacional. Por isso, a data virou gancho para contar a trajetória de Mariechen. Ouço o nome dela há muito tempo, relacionada a pessoas de 60 anos para mais, ao relatarem a infância. Uma dessas envolveu o nascimento de Maria Rejane Kist, conforme as memórias compartilhadas pela madrinha dela, Therezinha Reis (1937-2021), em 2020, e que abre esta matéria.
E assim foi agora, fazendo valer a história oral. Há pouca coisa documentada, mas, como o jornalismo é esse exercício de escuta e que valoriza a oralidade, sabia que resgatar lembranças seria possível. Uma fonte levou a outra e agradeço a cada uma por dividir suas memórias comigo.
Maria Kunz Zembski viveu até os 85 anos. Faleceu em 10 de maio de 1992 (um dia antes de Venâncio completar 101 anos), no hospital, e foi sepultada no cemitério da Vila Rica. Essas informações constam no registro de óbito (pesquisa do genealogista e escritor Márcio Vinícius Scheibler). O curioso é que esse documento encerra dizendo que Mariechen “não deixou filhos”. É fato, ela não gerou os próprios. Mas quis a vida que essa mulher participasse do nascimento de milhares, sendo a primeira a segurá-los nas mãos. De uma forma ou de outra, esses venâncio-airenses também poderiam se sentir um pouco ‘filhos’ da pequena grande Maria.
Por Débora Kist