“Ó salve, Venâncio Aires, belo recanto do Brasil.” Que venâncio-airense nunca cantarolou esse verso? Deixando o bairrismo de lado, fato é que essa frase é tão comum aos ouvidos dos ‘nativos’ quanto “Ouviram do Ipiranga” e o “Sirvam nossas façanhas.” Não, não é exagero. O hino de Venâncio (pelo menos o refrão) está na ponta da língua do venâncio-airense, que já o cantou na escola, em eventos públicos e cerimônias diversas. É parte da cultura local e assim tem sido por gerações. Mas o que sabemos sobre a história dele? Quando foi composto? Qual a motivação? Atrás dessas respostas, a Folha do Mate foi a Porto Alegre conhecer a história e a trajetória de Selita Dalmas, 85 anos, a compositora do hino de Venâncio Aires.
Entre as molecagens, os bons exemplos e uma decisão
Foi na véspera do Natal de 1936 que nasceu Selita Maria Dalmas. Era a terceira dos nove filhos que teriam Olindo Dalmas (filho de italianos) e Sofia Southier (filha de franceses). Selita é natural de Montenegro, mas ainda pequena foi morar com a família em Carlos Barbosa, onde Olindo era agricultor e Sofia professora.
Considerada uma menina mais ‘solta’ e que não aceitava as imposições da época, era ela quem sabia montar a cavalo para levar o almoço na roça onde o pai trabalhava. Também não sabia conter as molecagens e sempre partia para a briga, se precisasse. “Eu não judiava de ninguém, mas me defendia”, lembra a irmã da Congregação da Divina Providência e professora aposentada, ao relatar pequenas discussões infantis com irmãos, primos e vizinhos.
Foi justamente numa dessas, com uma pergunta/afirmação carregada de preconceito, que fez Selita vislumbrar seu futuro. “Um dia, uma moça apontou o dedo na minha cara e disse: ‘tu? tu quer ser irmã?’Aquilo bateu forte em mim. Eu desde pequena tinha essa certeza, mas nunca soube dizer o porquê. Acho que nasceu comigo.”
Em meio às molecagens comuns da infância, Selita cresceu em volta de bons exemplos, o que talvez tenha contribuído para seguir na vida religiosa. Com mãe professora, o ensino se tornou algo inerente à menina, assim como o altruísmo do pai. “Lembro de pessoas mais pobres que vinham bater em casa. Com frio ou fome e o pai sempre recebia todos.”
Mas foi pelo convite de uma prima, Isabel, que já estudava em Arroio do Meio, que Selita tomaria a decisão definitiva de se tornar irmã da Divina Providência. Com o apoio dos pais, terminou o Ginásio em Santa Catarina, em 1954, passando pelos colégios Coração de Jesus (Florianópolis) e Sagrada Família (Blumenau). Em 1955, ainda em Santa Catarina, ela dá entrada à congregação e, de volta ao Rio Grande do Sul, em 1957, iniciou o noviciado no Colégio São Miguel, em Arroio do Meio, onde também faz os ‘votos perpétuos’, em 1964.
Formação
Durante o noviciado, Selita desenvolveu um lado que se tornaria determinante para sua carreira como professora: a música. Dos 25 cursos e seminários que participou entre 1958 e 1995, o primeiro foi justamente de canto orfeônico.
No mesmo ano que faz os votos perpétuos, em 1964, a irmã concluiu o Ensino Médio Normal. Ainda na década de 1960, faz cursos de suficiência e habilitação em Desenho e Francês (língua que fala, aliás), Português, Literatura e Canto.
Selita tem duas graduações: em Letras (concluída em 1972, em Santa Cruz do Sul) e em Assistência Social (feita em Porto Alegre e terminada em 1977). Também desde 1988 é pós-graduada em Educação Popular pela Unisinos, de São Leopoldo.
Saiba mais
• O hábito, tradicional vestimenta religiosa, há muito caiu em desuso em várias congregações. Segundo a irmã Lori Goettems, no caso da Divina Providência no Rio Grande do Sul, da qual Selita Dalmas faz parte, ainda nos anos 1960 o hábito foi substituído por vestes ‘normais’.
• Ainda conforme Lori, o termo ‘freira’ também não é usado, pois é considerado pejorativo, e a orientação é chamar de ‘irmã’. Já ‘madre’ é outro termo em desuso e hoje a pessoa que coordena uma comunidade de irmãs ou de uma congregação religiosa, é chamada ‘superiora’.
Uma canção para os alunos
Foi através da vocação musical e da experiência como professora de Música, em Arroio do Meio, que Selita Dalmas chegou a Venâncio Aires, em fevereiro de 1965, ainda nos tempos de Cônego Albino Juchem. “Faltavam professores em Venâncio e, por isso, fui”, recorda a irmã, que trabalhou no Colégio Nossa Senhora Aparecida até janeiro de 1971. Nesses quase seis anos, ela conta que também deu aulas de Português e Desenho, mas foi na Música sua principal marca. “Como naquele tempo tinha pouco material, a gente procurava oferecer coisas diferentes para os alunos. Desenhava e escrevia pequenas canções para as crianças.”
Em uma das aulas, em ano que não lembra mais, a irmã conta que foi ‘provocada’ pelos alunos, para fazer algo relacionado a Venâncio. “Eles gostavam quando trazia músicas, gostavam de ouvir piano e me falavam da cidade.” Assim, Selita escreveu uma canção para as crianças, onde faz referência a características ainda bem comuns hoje em dia: ‘capital do ouro verde’ se referindo à erva-mate e o chimarrão; ‘trabalho do povo ativo’, seja na agricultura, seja na indústria; ‘onde cresce o fumo, o erval’, com o tabaco ainda sendo o carro-chefe da economia local; e o ‘belo recanto do Brasil’, destacando as paisagens e pontos turísticos.
“Eu ficava no piano, primeiro imaginando a melodia, uma batida bonita, e aí as palavras vinham à mente”, revela a irmã, narrando a forma de como fez uma canção sobre Venâncio. E fazer as músicas antes das letras foi o jeito que continuou compondo, décadas depois, para outros alunos, em outras instituições.
Trabalho social
Embora a música tenha marcado o começo da trajetória como professora e por causa dela que seu nome está na história de Venâncio Aires, Selita Dalmas dedicou a maior parte da vida ao trabalho social. Foram quase 40 anos em diversas comunidades atendidas pelas pastorais de Porto Alegre, Canoas e Viamão.
A última atividade foi pelo Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (Cedica), em 2015, na Comunidade Galiléia, em Porto Alegre. Neste mesmo ano, quase octogenária, Selita vai morar na Casa Eduardo Michelis, também na capital, onde residem atualmente 33 irmãs idosas. O local é mantido pela Província Mãe da Providência.
Dos seis irmãos ainda vivos, irmã Selita conta que “estão espalhados”, mas a maioria, assim como sobrinhos, estão próximos para visitas e moram em municípios da Região Metropolitana.
“Sempre gostei de música e de compor, mas jamais imaginei que aquela canção viraria um hino e ganharia esse tamanho. Com certeza, Venâncio Aires está no meu coração. Quem sabe um dia eu volto para uma visita.”
SELITA MARIA DALMAS – Autora do hino de Venâncio Aires
Colégio
O Aparecida foi mantido e teve irmãs da Divina Providência trabalhando nele de 1941 a 2009. A partir daí, assumiu como mantenedora a Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus. Mesmo com a mudança, a escola manteve a história no novo nome: Colégio Bom Jesus Nossa Senhora Aparecida.
Em junho de 1983, a lei municipal 1.082, sancionada pelo então prefeito Almedo Dettenborn, instituiu o hino como símbolo do município.
As vozes do hino
Até 1985, não existia um registro gravado do hino de Venâncio Aires e isso aconteceu com a gravação do primeiro LP da Banda do Colégio Gaspar Silveira Martins. Sob regência do maestro Ivo Seidel, a gravação é a mais conhecida dos venâncio-airenses, porque ainda hoje é a versão usada durante as solenidades município afora.
Além da parte instrumental, seis estudantes, então adolescentes e que integravam o coral da escola, emprestaram suas vozes para a gravação. “Nós também integrávamos o coral, e aí o professor Ivo selecionou alguns para cantar o hino”, lembra Cleni Schabbach, chefe do Departamento de Receitas da Secretaria da Fazenda de Venâncio Aires.
Na época, Cleni tinha 14 anos e, além dela, as outras vozes do hino são Patrícia Schwingel, Sandra Pacheco, Leandro Pitsch, Günter Knak e Evandro Fiegenbaum.
A pequena grande Venâncio
Conhecer a história de Selita é algo que esta repórter desejava há muito tempo. O nome dela é um entre tantos outros que estão relacionados à história de Venâncio Aires, mas que por vezes estão esquecidos em algum canto de página em letras minúsculas.
Essa trajetória merecia ser contada e, para a entrevista em Porto Alegre, tive a importante parceria dos colegas Alvaro Pegoraro e Lucas Elsenbach. Mas também é preciso destacar a gentil receptividade de duas irmãs da Casa Eduardo Michelis: Lúcia Specht, 69 anos, que intermediou o contato inicial com a irmã Selita, e Lori Goettems, 84 anos, que contribuiu com muitas informações. “Desde os tempos de Florianópolis, quando fomos colegas, ela já era destaque na parte musical. A música sempre esteve com a Selita”, comentou Lori.
A essa altura, a entrevista já tinha terminado, mas no meu costume de querer saber ‘da onde tu é?’, descobri que a santa-cruzense Lori Goettems também tem laços com Venâncio Aires. Entre 1971 e 1980 ela foi diretora e professora do Colégio Aparecida. Lori desembarcou em Venâncio em 11 de maio de 1971, exatamente no aniversário de 80 anos da cidade, em dias ainda festivos pela 1ª Festa Municipal do Chimarrão (Femuchim), evento que antecedeu a criação da Festa Nacional do Chimarrão (Fenachim).
Tantas coincidências bonitas, tantas trajetórias entrelaçadas com fatos históricos… É nessas que concordo quando dizem que Venâncio é pequena. Não porque a maioria se conhece, mas porque a quantidade de histórias guardadas é tão grande que não cabe no próprio mapa.
HINO
Ó salve Venâncio Aires
Belo recanto do Brasil
Salve a capital do ouro verde
Tua glória é sempre progedir
Tua terra formosa, vibrante
Traz latente a semente feliz
No trabalho do povo ativo
Ela brota e produz cem por um
Nos teus campos tão belos, imensos
Onde cresce o fumo , o erval
Na indústria, no teu progresso
Tu serás do Rio Grande o fanal
Na cidade, na vila, no campo
Sob o brilho do céu cor de anil
O teu povo labuta confiante
Esperando um risonho porvir.