Como toda criança ‘raiz’ que se criou no interior, Jorge também ralou os joelhos e arrebentou unhas correndo descalço. O brincar de antigamente tinha desses riscos, de conviver com cicatrizes e hematomas. Numa dessas, com 12 anos, a dor de um dedão ‘destroncado’ não passou sozinha e o jeito foi buscar ajuda. “Vamos no Seibt”, determinou Nico, o pai, que dirigia ônibus e tinhas dores corriqueiras no joelho direito, também tratadas pelo tal Seibt em Linha Maria Madalena. Foi assim, na década de 1970, que Jorge Reckziegel conheceu Elípio, um agricultor que tinha um talento especial. Não demorou muito e também conheceu Ilário, irmão de Elípio, com a mesma aptidão.
Mais de 40 anos depois, sempre que as costas incomodam, Jorge sai de Linha 17 de Junho, onde mora, e vai atrás dos massagistas Seibt. Mas ele não é o único. Gente moça ou gente velha. Chegando a pé, a cavalo, de carroça ou de carro, saindo do Centro de Venâncio Aires ou até da região dos ‘gringos’ de Boqueirão do Leão. Pelas localidades ao longo da ERS-422, a fama é grande. Essa é a história dos ‘Seibts Massagists’, que há mais de 60 anos encontraram uma forma de ajudar as pessoas oferecendo as próprias mãos.
Uma promessa e o começo nos gramados
Em 1963, Elípio Seibt e a esposa Annita se preparavam para começar a colheita do tabaco. Era meados de novembro, em tempos que calor era coisa de 30 graus e olhe lá, portanto, ainda se plantava e colhia fumo mais tarde. Naquele dia, antes de subir na carroça, Elípio, então com 26 anos, percebeu que um porco macho, daqueles grandes e bravos, tinha escapado. Na curva do galpão, tentou agarrar o bicho pela perna, mas a força do animal era tamanha que puxou o agricultor. “Senti uma fisgada na coluna e fiquei no chão”, lembra.
Foram seis semanas acamado, convivendo com dores e sem nem conseguir virar o corpo. Marcolino Closs, então massagista do Esporte Clube Guarani, tentou ajudar, mas sem sucesso. Até que um dia, Elípio soube de um massagista já muito famoso na região. “Num caminhão Ford F8, o Narciso Kretschmer levou eu e mais uns quantos para o Pauli. A gente saiu logo depois da meia-noite, porque se não, de manhã, a fila já era enorme.” O Pauli de qual se refere é o massagista José Pedro Pauli (1919-1988), que entre os anos 1940 e 1970 ganhou projeção regional e foi requisitado por milhares, que buscavam sua habilidade com as mãos. Elípio foi três vezes até Vera Cruz, onde Pauli morava e atendia. “Naquele tempo todo na cama, até pensamentos ruins passaram pela minha cabeça. Então fiz uma promessa à Nossa Senhora: se eu ficasse bom, iria aprender massagem para também ajudar as pessoas.” Após três consultas, ele melhorou.
Atletas de domingo
Não demorou para Elípio ir novamente a Vera Cruz, mas dessa vez com o intuito de aprender. Assim, observando os movimentos de Pauli, perguntando sobre músculos e tendões, que o venâncio-airense também começou a praticar. Naquela época, Seibt era goleiro da Sociedade Esportiva Madalena, onde também era dirigente, e foi nos gramados que iniciou as massagens.
Curiosamente, o primeiro atendimento foi em um atleta adversário, num duelo contra o Duvidosa, ajeitando um tornozelo. “Não olhava quem era. Qualquer um que se machucasse, eu ajudava.” O jeito com as mãos foi indo boca a boca e rapidamente os ‘atletas de domingo’ começaram a procurá-lo, geralmente no pós-jogo, vindos de times diversos do interior de Venâncio. “Nunca fiz propaganda. Nunca disse que faço massagem. As pessoas começaram a aparecer aqui em casa.”
O Seibt ‘de cima’
Quem procura por Elípio Seibt e não o encontra em casa, já sabe o que precisa fazer: seguir a ERS-422 cerca de 1,5 quilômetro acima, em direção a Vila Deodoro, atrás do outro massagista. “Se não tem o debaixo, tem o de cima”, diz, entre risos, Ilário Seibt, 84 anos, se referindo à distância das casas em Linha Madalena. Assim como o irmão mais velho, Ilário também foi ‘boleiro’ e tinha escalação garantida no ‘segundinho’ do Grêmio Esportivo Deodoro. Mas foi em casa, carregando trouxas de tabaco e lidando com lenha pesada, que teve uma lesão no ombro.
Coincidentemente, Ilário também se machucou em 1963 e confiou a Pauli, em Vera Cruz, os cuidados. “Eu fiquei muito curioso com aquilo e também quis aprender. Ele tinha tipo uma maquete, que mostrava como eram os tendões. Disse que se eu aprendesse aquilo, também poderia aprender a fazer massagem. Assim comecei a estudar e praticar”, lembra o aposentado. Nos anos 1980, Ilário quebrou uma das pernas e foram 120 dias com gesso e mais 40 dias de fisioterapia. “Ali também conheci o fisioterapeuta Adomar Machado, que me emprestou muitos livros e aprendi muito mais.”
Até quando as mãos aguentarem
Além de atletas amadores, geralmente quem procura os irmãos Seibt são agricultores que chegam com dores causadas pelo trabalho pesado nas lavouras, devido a movimentos repetitivos e por erguerem, por exemplo, trouxas de tabaco e balaios de pastagem, carregar lenha ou pela lida com animais. Se queixam de problemas nas costas, braços e pernas.
Os massagistas, cada um na sua respectiva casa, recebem os pacientes em cômodos simples, mas muito acolhedores, como são os quartos de casa de vó. No caso de Elípio, é um quarto com uma cama de solteiro e uma cadeira, para acomodar a pessoa conforme a situação. Tem um espaço ocupado pelo vão de uma escada que dá para o sótão, característica comum em casas antigas. A morada de Elípio, aliás, é bastante antiga – foi construída em 1914 por August Reckziegel, avô paterno de Annita. Na parede do quarto, há uma imagem de Jesus, um rosário e um crucifixo. “A fé é importante. Nenhuma massagem é feita sem acreditar que vai dar certo”, comenta Elípio.
Nesses mais de 60 anos, o aposentado reitera que nunca cobrou pelo serviço, nem fez propaganda. “As pessoas sempre vieram de livre e espontânea vontade. Já recebi presentes e até mantimentos, porque o pessoal quer agradecer. Se alguém quer dar um dinheiro, uso para comprar os cremes e óleos”, revela, se referindo aos produtos que usa nas massagens, a maior parte à base de cânfora e mentol. A mesma situação é com Ilário. “É um serviço voluntário, até porque sempre tivemos nossos trabalhos, como agricultores. A massagem é apenas para ajudar quem precisa. Quantas vezes vieram atrás quando eu estava na roça. Aí eu largava tudo e vinha atender”, destacou o irmão mais novo. Este, no quarto que recebe os pacientes, tem uma maca, uma cadeira e uma prateleira onde ficam os cremes, óleos e ataduras. Na parede, um quadro do Grêmio campeão da Libertadores 1995. “Mas já atendi muito Colorado”, observou, entre risos.
Confiança
Os ‘Seibts Massagists’ como muitos se referem a eles no dialeto alemão, contam que já houve casos de pessoas que os procuraram após consultar com médicos. Da mesma forma, quando eles se deparam com determinadas situações, orientam a seguir adiante. “Não gosto da palavra ‘não’. Acho que deveria ser riscada do dicionário. Para quem precisa de ajuda, o ‘não’ nunca deve ser dito. Mas claro que tem coisas que a massagem não resolve. Então logo digo que precisa buscar outro recurso”, ressalta Elípio. Ainda conforme ele, é comum aparecerem outras situações, até de pessoas depressivas, que às vezes buscam só uma conversa. “Eles confiam. Abrem o livro da vida.”
Com dedos compridos e juntas grossas, ambos têm mãos calejadas sim, como se espera de quem viveu da agricultura a vida toda, mas ao mesmo tempo são mãos macias, consequentemente hidratadas pelos cremes massageadores. Sem saber contabilizar com exatidão quantas pessoas já passaram por eles, é Ilário quem define a trajetória, com a concordância de Elípio: “Desde os mais velhos até os mais novos, ou várias pessoas da mesma família. Tem vizinhos e tem gente de longe. Sempre tem quem volta e continua aparecendo gente que nem conhecemos. Então acho que temos um dom, temos jeito com o tato para ajudar. É um orgulho quando alguém diz que ficou bom e que as dores passaram. Então vamos seguir até quando Deus permitir e as mãos aguentarem.”
Famílias
• Elípio casou com Annita em 1959. Com a esposa, que hoje tem 83 anos, tem oito filhos. É avô de 12 netos e tem dois bisnetos. Elípio brinca que ‘santo de casa não faz milagre’, ao ser perguntado se o dom com as mãos é usado na família. Mas Annita defende: “Ele arrumou meu braço quebrado”.
• Já Ilário é casado há 52 anos com Nilva, 71, com quem tem três filhos. Também tem duas filhas do primeiro casamento. São sete netos e oito bisnetos. Diferente do irmão mais velho, Ilário conta que já fez muitas massagens na família.
Aperto de mãos
O agricultor Jorge Reckziegel, 57 anos, mencionado na abertura desta matéria, foi quem nos falou dos Seibt de Linha Madalena. Grande leitor, apreciador da História e conhecedor de muitas das ‘estórias’ de Venâncio, confiou à Folha do Mate contar esta história, a qual ele conheceu há mais de 40 anos. É um orgulho saber que o jornal é lembrado por isso e que pode ser uma referência para ajudar a resgatar e contar fatos esquecidos ou apenas escondidos. Então, provoco os leitores: que outras histórias e personagens interessantes ainda estão por aí?
Esta narrada aqui, sobre dois irmãos, agricultores já octogenários e que fizeram da massagem uma forma de ajudar as pessoas nos últimos 60 anos, foi uma delas. E esse tipo de reportagem sempre oportuniza um contexto maior, de aprender sobre uma localidade, uma cultura, uma profissão, um costume, um tempo que já passou e, especialmente, sobre gente. Gente como os Seibt, cujo tato fez o bem a centenas e a mim também. No meu caso, não foi com massagem, foram só apertos de mãos numa recepção acolhedora. Mas saí de lá melhor, também ‘tocada’ pelo que ouvi e aprendi.