Bolos, bolachas, doce de abóbora, pão e rocambole. Coxinhas, risoles, enroladinho de salsicha e croquete. Um chá ou café para acompanhar. A mesa na cozinha de dona Ilga está sempre assim, pronta para a família ou receber uma visita e até desconhecidos. Mas a fartura não está somente nos sabores e nos aromas. É uma mesa farta de carinho, de quem sempre fez e ainda faz do ato de cozinhar, também, um gesto de cuidado e amor. Para marcar o Dia da Merendeira Escolar, lembrado dia 30 de outubro, a Folha conta a história de Ilga Flondina Kist, 92 anos, que trabalhou como merendeira durante 30 anos em duas escolas estaduais de Venâncio Aires.
Mudanças, uma receita de maionese e o concurso público
Ilga Flondina Kist nasceu em 1931 e é a quinta filha dos oito que tiveram Maria Rosina e Luiz Spall, moradores de Capão da Cruz, então interior de Santa Cruz do Sul. Ela teve uma infância de pouco estudo e muito trabalho, rotina comum das mulheres dessa geração que, ainda meninas, precisaram aprender a se virar.
Aos sete anos foi morar com uma irmã mais velha, que já era casada. O intuito era ficar mais perto de uma escola, coisa que nem existia na localidade onde moravam os pais. Mesmo lá, só conseguiu ir na aula quando não tinha serviço na lavoura. E assim foi, até terminar o 3º ano do primário. Dona Ilga voltou à casa paterna para ajudar na roça e numa venda, até que aos 14 anos, já moça feita e por ser muito trabalhadeira, se entendeu que seria útil em Potreiro Grande, Passo do Sobrado, na casa de uns tios que estavam doentes e não podiam trabalhar no pesado. Foi nessa localidade que conheceu José Raimundo Kist (1924-1992), com quem casou quando tinha 16 anos.
Depois de casados, Ilga e o marido moraram um tempo em Alto Vila Mellos (Vale Verde) e novamente em Passo do Sobrado. As mudanças continuaram na vida de Ilga, já que Raimundo trabalhava como operário no Daer e era transferido conforme as obras em novas estradas na região. Uma nova mudança, mas definitiva, aconteceu em 1961, quando chegaram a Venâncio Aires.
Estudando com os filhos
Se em Santa Cruz, Passo do Sobrado e Vale Verde, Ilga trabalhou na roça e no comércio, em Venâncio não teve trabalho imediatamente. Com cinco filhos, o jeito era também trabalhar para incrementar a renda. Um anúncio na Rádio Venâncio Aires AM chamou atenção: uma vaga para cozinheira. A oportunidade era na Escola Estadual Wolfram Metzler, o antigo ‘Agrícola’, que mantinha internato nos anos 1960. Para se candidatar à vaga, até aprendeu uma receita nova de maionese para a salada de batata, um pouco diferente da que estava habituada a fazer. “Tinha centenas de internos na época. Comecei com contrato, para trabalhar na cozinha e na limpeza”, detalha Ilga. Em 1963, a direção a inscreveu para um concurso público estadual. Mas, com pouca escolaridade, como almejar a aprovação? Dona Ilga encontrou uma forma de agregar conhecimento: acompanhar o tema de casa e as lições dos filhos, que frequentavam a escola Monte das Tabocas. “Aprendi muita coisa assim”, destaca a aposentada, que também aproveitava esses momentos para incentivar as crianças a continuarem estudando. Para ir a Porto Alegre fazer a prova, saiu apenas com o dinheiro da passagem e um pacote de bolacha que serviu como café e almoço. Foi a 18ª melhor nota entre 2 mil candidatos em todo estado.
E no meio dos lanches escondidos, um carinho de mãe
O horário de Ilga na Wolfram era das 6h até a meia-noite, dia sim, dia não. Moradora do bairro Cruzeiro, onde vive até hoje, ela caminhava até a Praça Evangélica para pegar um ônibus que seguia até a Linha Bela Vista. Isso na ida, porque na volta para casa fazia o trajeto a pé, em plena madrugada. Na logística de atravessar a cidade, ainda um descampado em algumas regiões, era o filho Telmo, com cerca de 10 anos, que buscava a mãe, para não deixá-la sozinha no retorno.
Na escola, Ilga cozinhava de um tudo, com mais três merendeiras. Muitos dos itens vinham da horta própria da Wolfram. Os alunos comiam à vontade nas refeições, mas os intervalos entre elas eram longos. “Eles tinham fome em certos horários e me pediam comida. Eu tinha muita pena deles e sempre dava alguma coisa, mas escondido.” Ilga diz que nunca foi ‘descoberta’, mas, se tivesse, ninguém teria reclamado. “Nunca faltei serviço e gostavam de mim. Iam entender que era pelas crianças”, afirma.
Além de alimentar os alunos nas refeições e fora de hora, Ilga também acolheu muitos de outra forma. “As crianças ficavam muito tempo longe de casa e às vezes só queriam um carinho, um colo. Vinham, me pegavam no braço, se encostavam no ombro. Aí eu pensava nas minhas crianças em casa, na saudade. Se eu podia dar um carinho de mãe, por que não?”
O alimento e o gesto maternal não foram esquecidos pelos alunos que passaram por Ilga. Até hoje, ela é lembrada por dezenas deles. Há alguns anos, inclusive, um ex-aluno, hoje empresário em Pelotas, realizou uma festa e fez questão de buscá-la em Venâncio. “Ele falou em público de mim. Me agradeceu por tudo que fiz por ele. Foi muito emocionante. Até hoje, ex-professores e alunos, muitos lembram de mim”, conta, orgulhosa.
Em 1976, Ilga pede transferência para a escola Cônego Albino Juchem (CAJ). “No Estadual eu trabalhava de noite, pelo Estado, e de tarde pelo CPM. De manhã eu limpava e fazia almoço numa casa onde moravam seis rapazes que trabalhavam em banco”, lembra dona Ilga. O trabalho em três turnos, segundo ela, foi por necessidade, pois, naquela época, já estava separada do marido e ainda tinha filhos em casa. Do Estadual, também guarda inúmeras lembranças, principalmente dos alunos, sempre elogiosos com os lanches e por seu jeito ‘mãezona’ com todos. Trabalhou lá até o início dos anos 1990, quando se aposentou no funcionalismo público.
Doces e salgados ‘para fora’, para família e amigos
Enquanto ainda trabalhava na escola Cônego Albino Juchem, Ilga começou a fazer doces e salgados para vender ‘para fora’. A boa mão para coxinhas, risoles, enroladinhos, empadinhas e pizzas, além de tortas, lhe deu fama e foram inúmeras as encomendas. O trabalho em casa seguiu depois da aposentadoria no Estado e ela foi responsável pelos quitutes de festas de aniversários, casamentos e 15 anos, além de ajudar na Comunidade São José Operário, no bairro Cruzeiro. Essa produção ‘a todo vapor’ ela tocou até perto dos 90 anos e parou porque os braços começaram a cansar. Algo mais do que natural, afinal foram praticamente oito décadas na lida da agricultura e da cozinha. Além disso, Ilga é costureira, sempre gostou de artesanato, e até tem curso de auxiliar de Enfermagem.
Embora aposentada, dona Ilga não parou oficialmente. Os potes de doces e bolachas de manteiga não chegam a esvaziar sobre o balcão, porque ela logo trata de preparar novamente. Quando recebe os familiares e amigos, a mesa da cozinha está sempre cheia. Sobre o que mais gosta de cozinhar, dona Ilga é direta. “Um bom assado de porco”, confessa, entre risos.
Outro trabalho (ou seria um lazer?) que ela não deixa de lado é a horta, onde crescem pés de alface, chuchu, cenoura, couve, beterraba, tomate e temperos. Caprichosa, mantém muitas flores e a grama que ela mesma corta. Ao refletir sobre os anos de trabalho e de não baixar a cabeça nos momentos difíceis, dona Ilga afirma: “Acho que fui uma pessoa bondosa e meu maior orgulho é cozinhar, porque assim ajudei a educar meus filhos e marquei a vida de muitas pessoas.”
Algumas, a aposentada deve rever no dia 4 de novembro, já que foi convidada para participar de um evento na escola Wolfram Metzler, para reunir ex-alunos, professores e funcionários.
Uma mesa cheia e um coração mais ainda
Os cinco filhos de Ilga lhe deram seis netos: Gerson, Cátia, Deise, Andressa, Fernando e Ricardo, além de um bisneto, Leonardo, o qual já aprendeu umas receitas com a bisa. Na última quinta-feira, 26, quando ela recebeu esta repórter para entrevista, me autorizou: eu também podia chamá-la de vó durante a conversa. Descobri que, além de nunca deixar faltar nada em casa e sempre manter bem alimentadas as crianças nas escolas, dona Ilga também alimenta os que nem conhece. Moradora há mais de 60 anos do bairro Cruzeiro, em uma rua bastante movimentada, muita gente para no portão e lhe pede algo para comer. “Nunca neguei”, disse.
Para me receber, preparou uma mesa linda, cheia de doces e salgados. “Adoro receber visitas e quem vem aqui, não sai sem provar alguma coisa.” Conhecer dona Ilga não só me proporcionou uma tarde saborosa ao paladar. Para mim, que já não tem mais os avós presentes, compartilhar desse momento foi um afago na saudade. Tive uma aula de vida, narrada em frente a uma mesa farta de ‘comida de vó’, a qual, todos sabem, é a melhor para também alimentar o coração.