Eva Jorgelina da Silva, 85 anos, já era ‘guria grande’ quando viu e ouviu um rádio pela primeira vez. Isso foi na década de 1940, quando um tio comprou o aparelho que começava a se popularizar na casa dos brasileiros. Tal novidade gerou curiosidade na menina, natural de Cachoeira do Sul. “Achei que tinha um homem escondido atrás e falando”, lembra a aposentada, entre risos, contando que não sabia que a voz saía daquela ‘caixa de madeira’.
Eva conheceu o rádio já mocinha, mas as canções que por ele ouvia, nas vozes de Tonico e Tinoco, Inezita Barroso, Irmãs Galvão, Teixeirinha e Gildo de Freitas, não lhe eram exatamente novidades. Afinal, conhecia muitas músicas dos bailinhos que aconteciam no Faxinal da Guardinha, localidade cachoeirense onde nasceu. “Eu sempre gostei de cantarolar, fazer rimas e trovas. Desde pequena, na lida da casa, ficava limpando e cantando.”
Eva conta que as cerca de 60 composições que fez ao longo da vida têm guardadas na memória e, quando sai uma música nova, dita para uma neta escrever. “Não sou tão boa escrevendo”, afirma, fazendo referência ao fato de só ter estudado durante três meses, tempo suficiente para fazer um exame que atestou estar alfabetizada. “Onde eu morava tinha uma professora já mais idosa e era ela quem mantinha a escola. Quando morreu, acabou a escola e eu nunca mais estudei. Minhas músicas tenho guardadas no meu computador”, destaca, apontando para a cabeça.
Inspirações
Eva da Silva conta que a primeira música que compôs se chama “Prenda faceira” que é, aliás, o nome artístico pelo qual é conhecida entre os cantores e músicos tradicionalistas. Mas as composições que mais gosta são as que remetem ao passado, com histórias de pessoas com quem conviveu. Entre elas, ‘Minha infância’, que lembra da professora que a alfabetizou e ‘Minha mãe é uma estrela’, em homenagem à mãe Holdina Augusta Kasper. “Meu pai saiu de casa quando eu tinha um ano e minha mãe sustentou eu e as três irmãs, trabalhando em lavoura de arroz.”
Na infância pobre, além de não saber o que era um rádio, só conheceu mais tarde o relógio. “A mãe ensinou a gente a se guiar pelo sol. Pela sombra do corpo, a gente sabia mais ou menos a hora.”
Violões com latas de azeite
Eva Jorgelina da Silva nasceu em 15 de janeiro de 1939. No entanto, no registro, consta que nos próximos dias já vai para o 86º aniversário. “Eu não tinha sido registrada. Daí quando moça fui pedida em casamento e a mãe, para autorizar, colocou que eu já tinha 16 anos. Então fiquei mais velha, mas pelo certo vou fazer 85”, revela.
A cantora e compositora gerou nove filhos, sendo que a mais velha faleceu com apenas quatro meses e um menino nasceu prematuro e não sobreviveu. Mesmo nos tempos difíceis da vida entre a barranca do rio Jacuí e a parte urbana de Cachoeira, conta que nunca deixou de cantar. “Sempre foi uma alegria na minha vida.”
Ela, que sempre sonhou em ter uma gaita (que aprendeu ‘de ouvido’) e hoje diz que ‘faz uns barulhos’ tocando algumas canções, também fez da música um lazer para os filhos. “Quando eram pequenos, eu cantava para eles, fazia versinhos e inventava coisas para ficarem brincando de música.” Em latas retangulares de azeite, pregava uma tábua cortada a facão e amarrava linha de pesca para ser as cordas. Assim, no improviso, criou violões para os filhos ficarem dedilhando.
O sonho de ter as músicas gravadas
Nos últimos 20 anos, Eva realizou um grande sonho: ter as músicas gravadas em estúdio. Lançou dois CDs e até participou de um DVD, feito em homenagem ao ex-jogador do Internacional, Fernandão, que morreu em 2014 num acidente aéreo. “Entregamos esse DVD para a esposa do Fernandão, no dia que inauguraram a estátua dele, no Beira-Rio.” Colorada, a compositora também carrega o amor pelo time na sua gaita Scala, onde há adesivos do clube.
A compositora mora em Venâncio Aires há cerca de três anos. Se mudou para ficar, nas palavras dela, “mais perto da minha gente”, pois alguns netos já estavam no município. “Em Cachoeira eu fui ficando sozinha, porque minha mãe, minhas irmãs e o João [segundo companheiro, com quem conviveu por 40 anos] faleceram.”
Em dezembro de 2023, Eva foi a Cachoeira do Sul para gravar uma nova leva de músicas autorais, dessa vez num pendrive, buscando acompanhar os novos tempos de consumo musical. A aposentada já participou de programas de rádio em Cachoeira do Sul e Candelária, mas diz que hoje não tem pretensão profissional com a música. “Faço para meus amigos e familiares lembrarem de mim. E faço por mim, pelas minhas memórias e para não me esquecer das coisas que passei na vida.”
A visita dos passarinhos
Eva da Silva está mais próxima dos filhos e netos e se diz feliz em Venâncio. O bairro onde ela mora é bastante arborizado, o que lhe permite uma outra alegria: ouvir os passarinhos. Como cantores que se reconhecem, sabiás, bem-te-vis e pombinhas se aproximam da compositora diariamente. Alguns têm ninhos nas árvores do pátio, outros pousam no corrimão da sacada. “Eles vêm conversar comigo e cantar para mim. É muito bonito.” Inspirada nas coisas da vida, o convívio com os pássaros também já rendeu uma composição de Eva: ‘A festa da bicharada’.