Os mais antigos ainda lembram daqueles tempos no Palanque. Tempos que remetem ao convívio com Frida e Ricardo, os Reckziegel, que mais tarde virariam nome de escola e de estádio de futebol. Tempos de puxar erva-mate e tabaco nas carroças, trilhando o barro vermelho de Venâncio Aires.
Os mais antigos também lembram que eram tempos de muito trabalho e pouco lazer, mas quando uma novidade apontava por lá, era atração na certa. Como acontecia na presença de artistas de circo e teatro. Essas trupes eram um evento à parte nos anos 1950 e 1960, com suas histórias, encenações e personagens. Gente ‘do mundo’, que chegava e partia a todo instante. Em 1961, uma dessas desconhecidas apareceu e nunca mais saiu de lá. Repousa em Vila Palanque há mais de 60 anos e sua figura ainda causa curiosidade entre os que se referem a ela, apenas, como ‘a mulher do circo’.
A ilusionista e o ventríloquo
Noely e Admar Schuh eram recém-casados, no inverno de 1961. Mantinham o antigo salão São Martinho (onde hoje é a capatazia de Vila Palanque), um dos pontos mais movimentados da localidade, com festas que ‘botavam gente pelo ladrão’. Em agosto daquele ano, uma gente estranha apareceu por lá, com roupas extravagantes e rostos com traços forasteiros. “Vieram num caminhão. Ela, o marido e uma ajudante”, lembra Noely, hoje com 81 anos, moradora de Linha Herval.
A aposentada se refere à mulher curvilínea, que vivia maquiada e com unha pintada, característica incomum entre a maioria das mulheres do interior, preocupadas com a lavoura, filhos e lides da casa. A estranha usava vestidos costurados com tecidos ‘finos’ e tinha o cabelo sempre bem penteado. O nome dela era Haide Dias Bicca, mas em Palanque se apresentou como ilusionista, de nome artístico Fátima Harley (mesma grafia da marca famosa de motos). Chegou com o marido, que se apresentava como ‘mister’ Guelfo Zaniratti, ventríloquo, um nome que provavelmente também não era o de batismo. “Eles faziam mágica, encenavam umas coisas. Tinha até a guilhotina. A Fátima brincava que um dia era capaz de morrer com a cabeça cortada”, detalha Noely.
A aposentada conta que, inicialmente, as apresentações aconteciam nos sábados e domingos, mas causaram tanta curiosidade que o povo começou a aparecer outras noites da semana. Embora abancado com os Schuh, o casal de artistas também percorreu outros locais do interior de Venâncio, entre eles o antigo salão Konrad, no Grão-Pará, perto de onde hoje fica a cabana São Judas Tadeu. “Eu soube que eles tinham dois filhos rapazes, mas que não viajavam juntos porque estudavam. Quem acompanhava eles era uma ajudante, que só conheci como Júlia”, relata Noely. Outro detalhe é que a vaidosa Fátima usava o talco perfumado Cashmere Bouquet, algo que deixava a então gestante Noely, bastante nauseada. “Eu nunca mais pude com esse cheiro”, revela, entre risos.
Repouso eterno no Palanque
Noely Schuh recorda que foi em 1º de novembro de 1961 que Fátima faleceu, repentinamente, com apenas 40 anos. “Ela estava escolhendo arroz para fazer um carreteiro e se sentiu mal. Teve um infarto. Chegaram a levar pro hospital, mas não conseguiram salvar.” Como ‘mister’ Guelfo Zaniratti ainda seguiria em turnê nas redondezas até dezembro, decidiu sepultar a companheira em Vila Palanque mesmo. Conforme Noely, a ilusionista foi enterrada no antigo cemitério, ao lado da antiga igreja. Quando o novo templo foi construído, os restos mortais de Fátima e tantos outros falecidos do Palanque, foram transferidos para o novo campo-santo, o atual cemitério católico da comunidade São Martinho. “Ela tinha sido enterrada com várias joias, mas quando transferiram para o outro cemitério, tudo tinha sumido.”
O túmulo de Fátima está entre os mais antigos, na segunda fileira atrás da sepultura de Ricardo e Frida Reckziegel, duas referências históricas da localidade. Na lápide dela, estão os dois nomes e as datas de nascimento e falecimento. A foto é a mesma que Fátima usava nos impressos distribuídos pelos locais que percorria. Noely Schuh tem isso guardado em casa, junto com fotos da família. “Eles moraram aqueles meses com a gente e fizemos amizade. Por isso guardo até hoje. Também sou eu quem cuida do túmulo dela.” Conforme a aposentada, nesses mais de 60 anos, ninguém apareceu atrás da artista. “Era um povo do mundo. Não tinham lugar fixo. Nunca soube de onde eles vieram, nem pra onde o ‘mister’ foi depois. Da família dela, ninguém nunca pareceu.”
Lembranças de outros moradores
“Aquilo foi um auê”, lembra Ivonesa dos Santos, 82 anos, sobre a morte de Fátima Harley. A aposentada conta que o marido Carlito dos Santos (já falecido), gostava de ver as apresentações do circo e de teatro que apareciam em Vila Palanque. “Sei que a morte da ‘mulher do circo’ foi muito comentada. Era uma mulher bonitona e forte. Via ela no comércio do seu Ricardo, sempre arrumada”, conta Ivonesa. Assim como corria a notícia boca a boca quando as trupes chegavam na localidade, a notícia do falecimento da artista também chegou logo para os moradores. “Foi um choque, muita gente se assustou, era tão moça. E o povo pegava amizade com esse pessoal, porque às vezes ficavam tempo por aqui.”
Ivonesa é vizinha de Albano Sausen, 76 anos, o qual mora ao lado do estádio Ricardo Reckziegel. Neste local, mas no tempo em que a área ainda era apenas o potreiro de Guilherme Brückner, que vinham turmas maiores de artistas circenses e montavam as lonas. “A gente era curioso e ia olhar”, conta Sausen, que também lembra da tal ‘mulher do circo’ que morreu de repente e foi enterrada lá.
A irmã de Albano, Noely Sausen Stein, 78 anos, recorda que as trupes apareciam várias vezes por ano. “Isso era muito comum anos atrás e era uma atração na localidade. Tinha teatro, shows da mágica, uns cantavam”, relata a professora aposentada. Ela conta que, em 1964, ganhou de um dos artistas o disco de Roberto Carlos, que trazia o clássico O Calhambeque. Sobre Fátima Harley, Noely também tem algumas lembranças. “Ela chamava atenção. Sempre maquiada e com unha feita. Mas ninguém nunca soube de onde era e ninguém apareceu procurando depois.”
Epitáfios
Na lápide dessa personagem quase desconhecida, está especificado o ‘nome de teatro’. O epitáfio não é uma homenagem, com elogios ou mensagens póstumas, mas chama atenção. O professor Denis Puhl, que em 2017 percorreu 20 cemitérios de Venâncio Aires para o trabalho de conclusão do curso de História, diz que na sua pesquisa não percebeu referências a profissões ou ocupações inscritas nos túmulos, portanto, a lápide de Fátima é algo incomum.
Segundo Puhl, o epitáfio aparece geralmente em túmulos de pessoas com ascendência alemã, com frases em alemão gótico. A tradição vai até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o governo Getúlio Vargas (já com a política de nacionalização), também proíbe a língua alemã. “O epitáfio vai praticamente desaparecer. Ele volta pelos anos 1990, em português.” Ainda conforme o professor, a pesquisa também evidenciou características sociais e religiosas em muitos cemitérios, com divisão entre católicos e evangélicos, entre etnias ou entre ricos e pobres.
No Cemitério Municipal, o ‘domador de feras’
Fátima Harley, a ‘mulher do circo’ de Palanque, tem na lápide a referência ao nome de teatro. Ainda que não seja comum esse tipo de informação (como profissão ou ocupação) nos cemitérios venâncio-airenses, um túmulo no Cemitério Municipal gera curiosidade. Nele está enterrado Jorge Robattini (1897-1919) que, conforme a inscrição na lápide, era ‘domador de feras’, um artista circense em passagem por Venâncio Aires, há mais de 100 anos.
No túmulo também está escrito ‘assassinado’. Das diferentes versões que já se ouviu pela cidade, uma delas diz que ele foi morto no circo, por um leão. Mas a mais comentada é sobre um crime passional e que Robattini teria sido morto com um tiro, pelas mãos de um familiar. Quem cuidou do túmulo por anos foi Sator Costa, zelador por mais de 30 anos no Municipal. A filha dele, Maria Lúcia Costa, conta que na década de 1960, quando o Circo Robattini ainda se instalava na cidade, um parente procurou o zelador para que ele cuidasse da sepultura.
Você sabia?
No mesmo ano que Fátima Harley chegou em Palanque e onde a ilusionista acabou falecendo, um fato relacionado ao mundo do circo virou uma das maiores tragédias do Brasil. Em dezembro de 1961, um incêndio criminoso no Gran Circus Norte-Americano, no Rio de Janeiro, matou mais de 500 pessoas e deixou 800 feridos. É o incêndio mais mortal da história do país.