Francismar e Flávio Seibt: os primeiros médicos especialistas de Venâncio Aires

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Antes mesmo do casamento (num domingo de manhã!) eles já estavam casados com a profissão. Antes de se apaixonarem, já dedicavam amor à Medicina e foi por causa dela que se conheceram. Cada um na sua respectiva especialidade médica, ele cuidou de quem estava no início da vida e ela de quem já estava mais perto do fim. Essa é a história da infectologista e geriatra Francismar e do pediatra Flávio Seibt, que começaram a trabalhar em Venâncio Aires em fevereiro de 1974 e, há 50 anos, se tornaram os primeiros médicos especialistas do município.

Oppenheimer, o interesse por Química e o único ‘não’ para o pai

Há quase 77 anos nascia a ‘rapa do tacho’ de Arthur e Olga Seibt, casal conhecido em Venâncio e que mantinha um comércio de secos e molhados numa casa construída em 1927 (atual esquina das ruas Osvaldo Aranha e Jacob Becker). Depois de já terem colocado no mundo Melita, Pedro (falecido com dois anos), Glacy, Elacy, Ari e Gilberto, em 1947 chegou o caçula, Flávio Luiz.

Diferente da maioria das crianças daquele tempo, quando se ia para a escola já ‘bem grandinho’, Flávio virou exceção: foi recebido por irmã Ludberga, então diretora do Colégio Aparecida, com um ano. O motivo é que Olga não tinha apenas os filhos e a casa para cuidar, e também trabalhava no comércio da família. Por isso, confiou o bebê às freiras, decisão não tão difícil, já que, caso acontecesse alguma coisa, era só atravessar a rua para espiar o guri.

Flávio Seibt, quando tinha 6 anos. Ele ingressou no Jardim de Infância do Aparecida ainda bebê (Foto: Arquivo pessoal)

O fato de ter frequentado o Jardim de Infância durante cinco anos fez o menino, em 1953, receber um diploma um tanto curioso: de honra ao mérito por assiduidade. No colégio ‘das irmãs’, Flávio ainda cursou o Ginásio e, com 15 anos, decidiu que seria cientista. “Eu tinha lido um livro sobre o Oppenheimer e sua bomba atômica. Fiquei muito interessado em Química e quis aprender mais sobre o assunto”, lembra Flávio. A oportunidade viria com a possibilidade de cursar o Científico no Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, o que lhe colocou diante de dois desafios. O primeiro era passar no exame, já que, no Aparecida, não era lá tão dedicado aos estudos e geralmente passava com ‘as calças nas mãos’. Mas ele conseguiu a aprovação. Já o segundo desafio era convencer Arthur de que poderia morar sozinho na capital, com apenas 15 anos. “O pai me queria perto e que eu fosse para o internato, em Santa Cruz. Mas eu disse não. Foi a única vez que afrontei meu pai.”

Formatura de Flávio, em Rio Grande, ao lado dos pais Olga e Arthur Seibt (Foto: Arquivo pessoal)

Depois de convencer Arthur, Flávio seguiu para a capital e conta que, além de estudar tudo sobre Química, ainda manteve médias acima de 8, bem diferente dos tempos de Aparecida. Em 1965, passou no vestibular para a Faculdade de Medicina de Rio Grande, o que o fez mudar para o sul do estado. Foi no hospital de lá, durante o curso, que começou a atender crianças e a se interessar pela pediatria. Ainda durante a faculdade, publicou um trabalho nos Anais de Histoquímica de Paris, na França, após trabalhar no diagnóstico de dois irmãos que sofriam de uma doença rara no fígado.

Em 1971, veio a formatura, tempo que adotou um bigode, que lhe acompanhou por cerca de 20 anos. “Algumas famílias ficavam desconfiadas de um médico tão jovem. Então deixei o bigode, para ver se passava a impressão de ser mais velho”, revela, entre risos. Terminada a faculdade, recebeu um convite para fazer residência em pediatria em São Paulo. E foi em terras paulistas que começou a caminhada pessoal de um gaúcho com uma mineira.

Formatura de Francismar, em Uberaba, Minas Gerais (Foto: Arquivo pessoal)

A filha de Francisco e Maria José

A outra parte dessa história começa em Uberaba, Minas Gerais, onde se tinha o costume de juntar as inicias de dois nomes para formar outro. Assim, na véspera do Natal de 1946, nasceu a primeira das três filhas de Francisco e Maria José Oliveira: Francismar. “Era meu sonho desde criança. Sempre gostei de cuidar dos outros e via a importância de dar carinho. E a mulher tem muito disso, desse envolvimento e cuidado”, destaca Francismar, hoje com 77 anos, ao comentar o porquê de cursar Medicina, faculdade que ela fez na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Em 1972, ela também seguiu para São Paulo, para fazer residência em infectologia. Foi nos corredores do Hospital Emilio Ribas que, nas palavras de Flávio, ele teve um ‘faniquito’ ao ver a mineira. “Começamos a namorar e em dois meses noivamos. Aí resolvi comprar um Fusca amarelo. A Francis me emprestou 1.480 cruzeiros e não paguei ela até hoje”, revela o médico, entre risos.

O casamento aconteceu em Venâncio Aires, em 15 de abril de 1973. “Foi a primeira vez que um casal de médicos casou na Igreja Matriz e ainda num domingo de manhã”, lembra Flávio.

Família

• Francismar e Flávio tem três filhas: a advogada Fabíola, 48 anos, que mora na França; a policial federal Alícia, 46, que reside em Natal; e Francine, 42 anos, que se divide entre Venâncio e Porto Alegre, onde atua como dermatologista. Os médicos também são avós de Eloise, 13 anos, e Alix, 9 (filhas de Fabíola); e de Lara, 9 anos, filha de Alícia.

Há 50 anos, o início profissional em Venâncio

No início de 1974, o casal terminou as residências e decidiu que era hora de se estabelecer. “A mulher sempre vai fazer seu ninho em qualquer lugar”, comentou Francismar, ao falar da decisão de abrir mão da terra natal para morar na cidade do marido. Assim, em 27 de fevereiro daquele ano (cinco décadas na próxima terça), os jovens médicos começaram em Venâncio, sendo os primeiros especialistas do município. O casal é pioneiro porque, segundo Flávio, até então havia os clínicos Armando Ruschel, Clecio Schmaedecke, Athos Granja, Pedro Thomaz da Silva, Plínio Luiz da Silva, Valmir Pochmann e Milton Deves (anestesista). “Venâncio tinha basicamente as ruas Osvaldo Aranha, Tiradentes e Júlio de Castilhos e não tinha nenhuma casa para alugar. Daí meus pais saíram do quarto deles e lá começamos a atender. A gente dormia no sótão”, detalha Flávio.

lávio e Francismar casaram quando ainda estavam fazendo residência médica, em 1973 (Foto: Arquivo pessoal)

Na década de 1970, o Brasil viveu uma epidemia de meningite e foi justamente um caso grave dessa doença o primeiro atendimento dos Seibt. “A gente ainda estava se instalando, quando fomos chamados para atender um bebê. No corredor ouvimos ele chorar e a Francis logo disse que era ‘choro de meningite’. Eu tinha trazido material para coleta e levei para o laboratório do Adalberto Gassen. Muitos casos foram diagnosticados depois.” O menino, que foi o primeiro paciente, é Vandir Dessoy, de Mato Leitão. “Nos últimos anos ainda o encontrei por aí”, comenta o médico.

Dificuldades

Flávio Seibt lembra que nos anos 1970 não se tinha o estímulo de hoje para a procura por vacinas, por exemplo, e ele, quando virou o médico chefe do posto de saúde, começou a aplicar a chamada MMR, hoje equivalente à tríplice viral (caxumba, sarampo e rubéola). Mas as doses eram importadas e só eram vendidas de forma particular. Já na década de 1980, outro avanço lembrado pelo pediatra foi a campanha contra a poliomielite (paralisia infantil). A mobilização foi tamanha que o personagem Zé Gotinha virou figura conhecida para diversas gerações.

Dentro do Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), o pediatra lembra de um momento difícil em 1976, ainda em tempos de graves surtos de meningite. “Em 1976, chegamos a internar sete crianças simultaneamente, isoladas. Com riscos de contaminação, minha filha [Fabíola] tinha um ano e ficou vários dias na casa da avó, sem contato com a gente.”

Flávio comenta com orgulho de ter contribuído para melhorias no hospital, onde também ocupou o cargo de diretor técnico, enquanto Milton Deves era o diretor clínico. “Contratamos a primeira enfermeira de alto padrão, a Melita Heinen, e o primeiro radiologista, o Paulo Acy Rodrigues.”

Flávio (o quarto, da esquerda para a direita), durante um congresso de pediatria em Brasília, em 1979 (Foto: Arquivo pessoal)

Geriatra e filha

Na década de 1980, Francismar fez mais uma especialização, dessa vez em geriatria. “Percebi que cada vez mais eu atendia pessoas mais velhas e sempre gostei de cuidar de idosos. A fase final da vida, para muitos, requer cuidados especiais. Porque mesmo quem já muito trabalhou e fez, chega um momento de fragilidade e precisa atenção.”

Nos últimos anos, Francismar ficou conhecida pelo trabalho como geriatra em Venâncio e, além do hospital e do consultório particular, trabalhou na saúde pública, principalmente no posto do bairro Gressler.

Aposentada desde 2019, a médica não se desvinculou totalmente da geriatria. Tem uma ‘paciente’ mais do que especial, já que a ela dedica, primeiro, o olhar e carinho de filha. Francismar ainda tem próxima a mãe, Maria José, hoje com 93 anos e que mora em Venâncio há quase quatro décadas.

O relógio que pagou a consulta e deu origem ao Museu

• Foi após uma consulta, há mais de 30 anos, que Flávio recebeu um objeto que marcaria o início de um importante trabalho de resgate histórico no município. Um pai, que não tinha dinheiro para pagar pelo atendimento das filhas, ofereceu ao médico um relógio de bolso muito antigo.

• Apreciador da cultura e da história, o profissional aceitou e, a partir dele, começou a comprar outros itens antigos. Ali, nasceu a ideia de criar um museu, que se tornou realidade em outubro de 1994. O Museu de Venâncio, que conta hoje com mais de 80 mil peças, também tem no acervo o relógio de bolso que Flávio recebeu naquela consulta e os instrumentos médicos do profissional.

“Tudo que tenho conquistei em Venâncio. Minhas filhas foram criadas aqui. Até hoje as pessoas me reconhecem e é muito bom esse contato caloroso de antigos pacientes. Venâncio lembra Uberaba, lá também tem um povo muito carinhoso. Mas lá o carinho vem com café e aqui vem com chimarrão.”

FRANCISMAR OLIVEIRA SEIBT – Infectologista e geriatra aposentada – Trabalhou em Venâncio entre 1974 e 2019.

“Eu sempre amei minha terra e sempre fui muito bem tratado em Venâncio Aires. Me realizei profissionalmente e pessoalmente, formando minha família. Fico feliz de ter ajudado a melhorar a Medicina no município, além do orgulho de ter dado a ideia de criar o Museu.

FLÁVIO LUIZ SEIBT – Pediatra aposentado – Trabalhou em Venâncio entre 1974 e 2014.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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