Há mais de 60 anos, estrutura que ganharia fama como prédio do Instituto Penal de Mariante (IPM), foi construída como seminário por padres holandeses para receber estudantes.
É possível que um mesmo espaço conte histórias tão diferentes? Pois se tem um lugar em Venâncio Aires que nas últimas décadas passou por transformações e mexeu com os ânimos da comunidade, foi o Instituto Penal de Mariante (IPM). Agora, com a demolição, a área onde ele ficava abre espaço para 72 casas destinadas a famílias atingidas pela enchente de maio. Com isso, vai encerrar, de vez, a história de um presídio semiaberto que funcionou por mais de 40 anos. Mas, antes de ser prisão, houve uma história anterior e quem frequentava aquele prédio eram padres e estudantes.
Estância Mariante, 20 de abril de 1958
Isso começou há 66 anos, quando Juscelino Kubitschek era o presidente da República, Ildo Meneghetti o governador e Hermes Jorge Pereira o prefeito de Venâncio Aires. A comunidade católica da então Estância Mariante celebrava, em 20 de abril de 1958, o lançamento da pedra fundamental do Seminário Sacramentino São José. Ele foi construído próximo à Paróquia Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento (que na década de 1980 mudaria a padroeira para Nossa Senhora de Lourdes) e da Escola Rural, sob direção da professora Adelina Isabela Konzen.
Um documento original, registrando o 20 de abril de 1958, também traz a assinatura de Cônego Albino Juchem, então vigário da cidade, de Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e do deputado federal Tarso Dutra. Em outra folha, já bastante amarelada pelo tempo, estão as assinaturas de 29 pessoas que contribuíram para as obras do seminário, doando uma soma de 31,5 mil cruzeiros, a moeda na época. Esse documento, que a redação da Folha do Mate teve acesso, registra a origem do prédio e sua finalidade, ideia dos sacerdotes conhecidos como padres sacramentinos, a maioria holandeses.
Horários, estudos e futebol com os padres
Num prédio em formato de ‘L’, de três andares, com dezenas de salas e dormitórios ao longo de corredores de cerca de 60 metros de comprimento, o seminário chegava a receber 50 internos. Na parte frontal, ficavam os apartamentos dos padres e professores. No primeiro andar do prédio dos fundos, o maior, tinha cozinha, refeitório e salas de convivência. No segundo pavimento, as salas de aula e, no terceiro, os dormitórios dos seminaristas em idade ginasial, além de uma capela (um saguão de aproximadamente 600 metros quadrados). É assim que lembra o aposentado José Inácio Scherer, 70 anos, natural e ainda hoje morador de Vila Palanque, interior de Venâncio Aires.
Em 1967, com 13 anos, ele ingressou no seminário. Na época, era comum os padres percorrerem outras comunidades e convidarem as famílias para que os filhos se tornassem seminaristas e, conforme andamento dos estudos, talvez optarem por seguir na vida religiosa como padres, o que não foi o caso de Scherer, embora tenha concluído os estudos em outro seminário, em Santa Cruz do Sul. Entre as lembranças daquele único ano que frequentou na Estância, em 1967, Scherer diz que os padres holandeses falavam bem o Português e ministravam aulas de latim e grego. Ainda que fosse um lugar dedicado a muitas horas de estudos e horários rígidos para acordar, dormir, fazer as refeições e orações, o aposentado diz que os momentos de lazer também eram uma grande diversão. “Era um clima de escola, todos adolescentes, cheios de vida. Tinha um projetor de cinema que assistíamos filmes e, no campo, jogávamos futebol. Os padres jogavam com a gente”, conta.
O inverno mais frio em 1967
Morador de Cruzeiro do Sul, o aposentado Sergio João Hilleshein, 71 anos, também estudou no seminário em 1967, com 14 anos. “Foi o pior inverno da minha vida. Tinha um aquário que congelou. Do pomar não sobrou nada”, relata. Hilleshein também lembra do cultivo de flores, dos jogos de futebol e dos tempos de estudo e das aulas de Português do professor José Balduíno Butzge, nome conhecido em Venâncio Aires e que faleceu em 2022.
Sobre a demolição do prédio do antigo Instituto Penal de Mariante, o aposentado diz que não precisava acontecer. “As casas são muito importantes para as pessoas, mas acredito que existem outros lugares para construir. É que aquele prédio construído por holandeses, para mim, tem valor histórico. Poderia ser usado para uma escola profissionalizante, um museu, uma biblioteca ou uma área de lazer para a comunidade.”
Gladíolos e a suposta carne de cavalo
“Você tinha que ver a plantação de gladíolos que eles tinham à esquerda na entrada. Imagina aquela paisagem de flores que você vê quando aparece alguma foto ilustrativa da Holanda. Até hoje não vi mais nada igual, o sortido de cores era por demais.” A afirmação de José Inácio Scherer se refere ao cultivo dessas flores, também conhecidas como palmas holandesas. O aposentado, que ainda hoje trabalha com viveiro de mudas de flores com a esposa Marlene, diz que os seminaristas não tiveram orientação sobre o cultivo na época, mas o simples fato de ver, ajudou ele a apreciar melhor a beleza dessas plantas.
“Nós ajudávamos na limpeza com capinas e na amarração das hastes das flores. No final de outubro, pessoas de todas as regiões buscavam para levarem nos Finados. Vinham pessoas, não sei se de floriculturas, de Porto Alegre. A gente colhia as hastes e eram guardadas numa câmara fria.”
Scherer também divide uma história curiosa dos anos 1960. Segundo ele, na época, quando um jovem chegava em algum lugar e falasse que estudava no seminário sacramentino dos padres holandeses, a primeira pergunta é se era verdade que se comia carne de cavalo. “A maior curiosidade das pessoas da comunidade daqui e de outras localidades de onde eram os colegas, se era verdade que os padres holandeses serviam para nós e para eles mesmos, carne de cavalo nas refeições. Se era servido, tudo bem, era gostosa e não soube de ter feito mal a alguém.”
O aposentado destaca que os anos de seminarista (depois de Venâncio passou por Arroio do Meio e Santa Cruz do Sul) foram marcantes. “Tudo que passei me preparou muito bem para a vida. São valores que nos moldam. Sou grato a todos padres orientadores, professores e colegas.”
Scherer diz que tem acompanhado pela Folha do Mate sobre a demolição. “O seminário encerrou no fim de 1967. Tempo depois, foi vendido para o Estado, para fazer a colônia penal, o que me deixou sentido. Então acho que a demolição do prédio, que vai abrir terreno para ajudar pessoas que perderam suas casas, é uma finalidade muito melhor do que deixar as ruínas de um presídio.”
Prédio do Instituto Penal de Mariante é considerado a primeira prisão sem guardas e sem grades do estado
O jornal Folha do Mate iniciou as atividades em outubro de 1972, portanto não registrou o 1971, quando a estrutura do seminário começou a ser transformada no que foi chamada, na época, de ‘prisão-escola’. As informações a seguir são de recortes de páginas do Correio do Povo, da Zero Hora e Jornal da Semana. Esse material foi disponibilizado à reportagem por Eligio Becker, um dos festeiros dos 50 anos da Comunidade Nossa Senhora de Lourdes, comemorados em fevereiro de 2024. Becker tem reunido documentos, fotos e demais registros para uma pesquisa (contou com colaboração de Paulo e Jardel Royer), que busca resgatar as histórias do 9º e 2º distritos. A ideia dele, que trabalha como agricultor e mora há 32 anos em Estância Nova, é escrever um livro.
Na pesquisa de Becker, consta uma matéria de 6 de junho de 1971, do Jornal da Semana, onde destacava que o Estado comprou uma área de 90 hectares com 2 mil metros quadrados de construção. “O antigo seminário vai transformar-se, a partir desta semana, na primeira prisão-escola do Rio Grande do Sul e provavelmente também pioneira no Brasil. A inovação está se antecipando às disposições que o novo Código Penal trará a partir do próximo ano. A implantação permitirá retirar, gradativamente, 120 homens das outras prisões do Estado, levando jovens de 18 a 21 anos a trabalhar em setores agrícolas e a estudar, num regime de semiliberdade”, diz um trecho.
A publicação contou ainda que o Estado entendia que o local oferecia condições para uma “prisão de luxo”, num regime que poderia levá-la à autossuficiência. “O majestoso prédio de três andares, com 20 apartamentos, um alojamento com capacidade para 100 pessoas e demais instalações, por si só revela a disposição de uma profunda alteração nos métodos de tratamento aos jovens condenados a penas curtas e considerados em condições de serem recuperados”, diz a matéria.
Avaliações iniciais
Já em 30 de agosto de 1971, o jornal Zero Hora destacava que em 1967, com o encerramento do seminário, o local ficou quase abandonado e somente um dos padres ficou na casa. Tempo depois, a então Secretaria do Interior e Justiça, colocou os olhos naquela área para ser transformado no primeiro presídio aberto do estado e do país. A mesma publicação destacou que houve protestos de famílias. “Foram necessárias muitas palestras e até pregações do púlpito da capela para convencer a população de Estância Mariante a aceitar a ideia deste presídio aberto”, diz trecho.
Em 12 de março de 1972, o Correio do Povo destacava a visita ao estado do então secretário de Segurança de Rondônia, Miguel Roumier. “O que realmente despertou sua admiração foi conhecer, em detalhes, numa visita minuciosa de um dia, o Instituto Penal de Mariante, o primeiro presídio sem guardas, nem grades, nem cadeado, nem celas do país (…) Inaugurado há menos de um ano, o estabelecimento está cumprindo, segundo as autoridades, amplamente suas finalidades”, diz trecho.
Da mudança de perfil até o fechamento definitivo do prédio do Instituto Penal de Mariante
Ainda que a imprensa, no início dos anos 1970, trouxesse o sentimento de otimismo por parte das autoridades em relação à efetividade do IPM, com sua proposta de colônia agrícola e semiaberta, fato é que a comunidade de Estância Nova, nas quatro décadas seguintes, conviveu incomodada com os ‘vizinhos’. As cobranças por uma solução em relação à segurança ficaram ainda mais fortes nos anos 2000, quando passaram a chegar presos da região metropolitana. A comunidade viu aumentar o número de delitos cometidos pelos apenados, como roubos de veículos, furtos a residências e assaltos.
“Sempre teve uma triagem no perfil dos apenados: comportamento exemplar dentro do sistema, alguma ligação com os serviços agrícolas e não podia exceder um determinado efetivo carcerário. Mas com os passar dos anos, o perfil do preso mudou e, com cadeias superlotadas, o IPM passou a receber qualquer tipo de preso. O efetivo carcerário foi aumentando gradativamente e chegou a mais 400 em uma época”, descreve Jânio Schmidt, agente penitenciário no IPM entre 1990 e 1995 e que foi diretor lá entre 2007 e 2010.
Ainda conforme Schmidt, com a mudança no perfil dos apenados, mudou a estrutura do prédio no fim dos anos 1990. “Tinha a aparência de um seminário e começou a receber grades de contenção em portas, janelas e alojamentos. Para piorar a situação, entre 2008 e 2009 foi construído o prédio anexo, com mais vagas. Sempre fui contra a construção desse anexo.” O ex-diretor do IPM lembra que o trabalho prisional já não tinha a mesma qualidade e, desta forma, o IPM foi deixando a produção agrícola. “Quando passou a se denominar Cpava [Colônia Penal Agrícola de Venâncio Aires], entre 2011 e 2012, já não produzia mais nada, nem a horta conseguiam manter. Sem falar que passou a receber presos ligados a facções criminais que exerciam poder no sistema carcerário.”
Em 2013, o fim
Em 2013, quando a Penitenciária Estadual de Venâncio Aires (Peva) já estava em construção, um funcionário que fazia a terraplenagem encontrou corpos na área da Cpava. A capa da Folha do Mate de 25 de abril, com foto do colega Alvaro Pegoraro, destacou a possibilidade de existir um cemitério clandestino para desova no local. Em outra capa da Folha, de 29 de novembro de 2013, também com foto de Pegoraro, o jornal noticiou o término da era da Colônia Penal Agrícola. Já em outubro de 2014, foi aberta a Penitenciária Estadual de Venâncio Aires (Peva), em regime fechado, com capacidade para 529 presos. O local fica a menos de um quilômetro do Instituto Penal de Mariante.
Volta às origens
“A comunidade se uniu para construir o seminário. Com a penitenciária, tinha uma revolta grande, porque foram anos de medo e insegurança. Além disso, atrapalhou no desenvolvimento da localidade, a comunidade perdeu credibilidade e muitos não queriam mais morar, nem investir na Estância”, avalia o agricultor Eligio Becker.
Para ele, desde que a instituição foi encerrada, em novembro de 2013, já se percebe melhora e as gerações mais novas pouco sabem sobre esse passado. Agora, com a demolição do prédio do antigo Instituto Penal de Mariante para a construção das 72 casas, Becker acredita que o local voltará às suas origens. “Essa área voltou ao benefício da população. Volta à origem, para uma função comunitária, ajudando pessoas que perderam as casas na enchente. A única coisa que a comunidade espera é que as casas, que são muito importantes, realmente fiquem com as pessoas do Mariante, para não correr o risco de cair nas mãos de estranhos.”