Não importa de qual canto de Venâncio Aires se venha, se é católico ou não e se conhece a história ‘dela’. Fato é que todo venâncio-airense, em algum momento da vida, já passou em frente olhando para cima, atalhou caminho pela lateral, aproveitou a sombra, se orientou pelo sino ou a mencionou de alguma forma. Cartão postal da cidade, a Igreja São Sebastião Mártir ou apenas ‘Matriz’, como muitos dizem, foi concluída há 70 anos, com a inauguração das torres. Quem viveu aquele junho de 1953 e todos que nasceram depois, a conheceram completa, imponente nos seus 65 metros de altura, o que lhe garante, até hoje, a condição de ser o prédio mais alto da cidade e um dos maiores templos neogóticos da América do Sul.
De um projeto inacabado a um sonho realizado
Quando Venâncio Aires tinha pouco mais de 30 ‘aniversários’, já indicava crescimento econômico e populacional. Com Albino Juchem por aqui, se intensificaram as atividades religiosas nos anos 1920, o que chamou atenção da cúpula católica. Tanto, que em 1927, durante uma visita a Venâncio, o então Arcebispo Metropolitano Dom João Becker deu aval para construir uma nova igreja. Nas palavras dele, era “mister” (essencial) e a construção era algo que toda a população “ardentemente desejava.” A exemplo de licitações atuais, houve uma concorrência pública de projetos, com orçamentos definidos, e quem saiu vencedor foi Simon Gramlich, arquiteto alemão que também projetou a catedral de Santa Cruz do Sul e o Edifício Storck, atual Museu de Venâncio.
Durante o ano de 1928, começaram as escavações, feitas por grupos de até 40 homens em jornadas de seis dias na semana. Muitos eram agricultores que trabalhavam voluntariamente e outros eram funcionários da Intendência. Com o avançar da obra, a igreja antiga (erguida em 1894) foi demolida e dela se reaproveitou cerca de 100 mil tijolos. Em 20 de janeiro de 1929, no dia de São Sebastião, houve a bênção da pedra angular, marcando, oficialmente, o início da nova obra.
As coisas andaram bem por pouco tempo, porque a comissão construtora estava insatisfeita com a forma que Gramlich conduziu a obra, incluindo diversas modificações. Do jeito que andava, não sairia por menos de mil contos de réis, o dobro do acordado inicialmente, e o arquiteto acabou demitido. Essas informações detalhadas estão no livro ‘São Sebastião Mártir – a fé fazendo história em Venâncio Aires’ e que contou com a colaboração do arquiteto de Santa Cruz, Ronaldo Winck.
“Dizia-se que o Gramlich tinha um temperamento difícil e nas obras fazia dimensões superlativas, o que causou divergências. Ele foi embora de Venâncio em 1931 e não voltou mais, levando plantas originais. Viveu o resto da vida em Santa Catarina e por lá foi o responsável por inúmeros projetos de igrejas no Vale do Itajaí”, explicou Wink, que também é professor universitário e pesquisou amplamente as principais edificações religiosas na região, a maioria projetada por Simon Gramlich.
Filha primogênita
Até 1934, o trabalho seguiu, sempre com ajuda de doações e coletas, além de um empréstimo na Caixa Rural. Ainda assim, o valor foi insuficiente e as torres paralisaram na altura do telhado. “Construir um templo desse tamanho, para a época, foi uma epopeia para a população. E ver a igreja pronta, com as torres, indicando essa verticalidade, seria como poder quase ‘tocar no céu’. Por isso tamanha mobilização comunitária”, comentou o arquiteto Ronaldo Winck.
O desejo comunitário estava presente e o grande líder era padre Albino Juchem (1892-1965), que tratava a igreja como ‘filha primogênita’. “Foi a obra da vida dele e vê-la pronta foi um sonho realizado. Ele trabalhou muito, mas sempre foi discreto e sem grandes expansões. Dedicava-se com persistência e quase em silêncio ao seu propósito: a construção da igreja, do hospital e do Colégio Aparecida. E o modo como tratava desses assuntos levava toda a comunidade a colaborar”, destacou o administrador Luiz Carlos Juchem, 86 anos, sobrinho e afilhado de Cônego Albino.
Fins lucrativos e a campanha do tijolinho
A professora e historiadora Angelita da Rosa conta que, até o início da construção da nova igreja, as festas de São Sebastião Mártir eram apenas comunitárias e começaram a ter fins lucrativos com o intuito de colaborar com a obra. “A conclusão dela era um desejo de todos, que ficasse pronta e bonita. Imagino a emoção que foi há 70 anos.” Sobre as doações e ajuda financeira da comunidade, Luiz Carlos Juchem lembra que, na década de 1940, as crianças do Aparecida participaram da ‘campanha do tijolinho’. Cada aluno recebia uma cartela com vários ‘quadradinhos’, o que gerava uma disputa para ver quem vendia mais rápido.
“Eu tinha meu método: saía pela cidade com um carrinho de mão juntando vidro e depois vendia na fábrica do João Reis [na rua Tiradentes, em frente ao estacionamento do Super Lenz]. De uma forma ou de outra, esses trocados ajudaram.” Segundo Juchem, havia uma maquete de madeira de como seria a igreja pronta e isso também mexia com a vontade dos moradores. Os trabalhos internos seguiram, mas apenas em 1952 começaram as obras para completar as torres, a cargo da construtora santa-cruzense Lux, Goldmann e Kothe. Em maio de 1953, cruzes de 6,5 metros de altura foram colocadas. Em 7 de junho de 1953, foi inaugurada a nova matriz, com a presença do então Arcebispo Dom Vicente Scherer e do governador Ernesto Dornelles.
Características
• A Matriz ocupa o centro de um quarteirão e essa condição garante uma visão ampla da estrutura, mesmo em meio à urbanização. Com 25 metros de largura, 65 metros de comprimento e 65 metros de altura, ainda é o prédio mais alto da cidade. Um dos novos prédios verticais de Venâncio, o Inspire Residence, da House Construtora, tem 15 pavimentos e chega a cerca de 55 metros.
• A igreja também é considerada o segundo maior templo neogótico da América do Sul, ficando atrás da Catedral São João Batista, de Santa Cruz, que tem 82 metros de altura. Segundo o site do Patrimônio Neogótico Religioso, este estilo foi adotado no século XIX e começo do XX, trazendo de volta as características do estilo gótico da Idade Média na Europa.
• Com o neogótico, a luz tem papel crucial no interior do templo, difundida através de grandes vitrais. Além disso, traz a verticalidade, utilização de arcos, torres ornadas, consolidação dos arcos feita por abóbadas de arcos cruzados ou de ogivas e abóbada de nervuras.
Sinos: um meio de comunicação
Talvez o som passe despercebido para muitos, acostumados com o badalar que alcança vários bairros da cidade, e nem se nota que os três sinos instalados na torre direita da igreja tocam a cada quarto de hora e às 11h50min e às 17h20min. Mesmo sem comprovação exata de data, documentos indicam que as peças foram compradas na Alemanha no fim do século XIX e que já eram utilizados na antiga igreja. Os sinos têm tamanhos diferentes e pesam 300 quilos, 200 quilos e 115 quilos. “Cada um tem seu toque característico”, explica Paulo Sergio Pinheiro dos Santos, 55 anos, uma espécie de ‘faz tudo’ na paróquia católica. Entre as atribuições, ele é o zelador das torres, responsável pela limpeza e cuidado com a iluminação. São 23 anos nessa função e ele sobe facilmente as escadas das torres, parte em concreto, parte em madeira (original da década de 1950), inclusive se segurando nas pequenas barras de ferro presas à parede e que conduzem até os sinos.
Há muitos anos, o sistema dos relógios (inaugurados em 1956) e que leva ao badalar dos sinos, é automatizado. Mas, houve um tempo em que tudo era na força dos braços e quem viveu essa fase ‘puxando corda’ foi Luiz Carlos Juchem. “Durante anos toquei sino às 6h, às 12h e às 18h. Eram as Ave Marias. E também tocava quando alguém morria. O sino grande era tocado quando falecia um adulto e o pequeno quando era criança. Assim, todos na cidade ficavam sabendo. Já os três sinos tocados ao mesmo tempo sinalizavam festa, como casamento e primeira comunhão. Foram e são, de certa maneira, um meio de comunicação.” No sino maior há uma inscrição em alemão: Bochumer Verein Bochum. Trata-se de uma empresa formada na cidade de Bochum, na Alemanha, em 1854, conhecida na Europa pela fabricação de sinos de aço. No sino maior da igreja de Venâncio, também está inscrito o ano de 1898, o que reforça a pista de que os itens realmente foram comprados no fim do século XIX.
O privilégio de uma vizinha
Hoje com um Centro basicamente ocupado por espaços comerciais, são poucos os que de fato moram no ‘coração’ da cidade e têm a igreja matriz como uma vizinha quase de porta. É o caso da professora aposentada Myriam Alles Heck, 84 anos. Myriam nasceu e cresceu na quadra do atual Calçadão e mora, desde os 3 anos, na mesma casa, construída pelos pais, Reinold e Noemia. Mesmo depois de casada, seguiu lá e testemunhou o crescimento da cidade no entorno da igreja. “Venâncio se formou a partir daqui. Me sinto uma privilegiada de ser vizinha da igreja. Ela é esplêndida e são poucas como ela”, mencionou Myriam, que foi batizada, fez comunhão, crisma e casou na matriz.
Outro ‘privilégio’ destacado pela professora aposentada, foi a aventura que viveu, aos 14 anos, quando as torres estavam sendo terminadas. “Eu estudava no Aparecida e o responsável da obra convidou a gente para subir. Tinha um monte de andaime ao redor, então não tive medo e subi até a cruz. Claro que na época a parte urbana era bem menor”, comentou, se referindo ao grande descampado que ainda era a cidade a partir da vista do alto.
Trabalho nas alturas
• A igreja passou por uma grande reforma e pintura entre 1997 e 2000. Já entre 2016 e 2017, houve a troca do telhado. Em 2022, outro trabalho de manutenção e que deixou a Matriz ainda mais bonita, chamou atenção de muita gente.
• Durante quatro meses, quem circulou pelo Centro pode ver pessoas literalmente penduradas em cordas para fazer a limpeza externa. Eram profissionais da empresa Bagual Corporation, de Venâncio Aires, especializada em alpinismo industrial e que chegaram nos pontos mais altos.
• Foram usadas técnicas de rapel e de resgate e ascensão por cordas. “Com certeza foi o melhor trabalho que já fiz. Foi o que ergueu nosso nome e sem falar no simbolismo que tem a igreja, que é tão representativa para a cidade”, destacou o sócio-fundador da Bagual, José Henrique da Veiga.