Maio, 83 anos atrás: as lembranças de quem viveu a enchente de 1941

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“A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dia aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas…”

Esse poema foi escrito em 1948 por Mário Quintana, um dos maiores poetas gaúchos e que sabia, como poucos, retratar cenários cotidianos. O autor falava da enchente de 1941, aquela considerada, até então, a maior da história do Rio Grande do Sul. Exatos 83 anos depois, também numa primeira semana de maio, os versos ressurgem, como que para retratar o mesmo fato, só que em 2024.

O estado revive, nos últimos dias, a violência das águas de rios e arroios que chegaram a níveis nunca alcançados e consequências devastadoras. Se a enchente de 1941 já era apenas um momento na prateleira do tempo, preso em fotos em preto e branco, quase uma fantasia, o maio de 2024 assume essa proporção. A História reproduz uma história que parecia impossível de se repetir, inclusive para uma geração que testemunhou as duas e que a Folha do Mate foi resgatar as memórias.

A brutalidade de duas enchentes

Em 1941, enquanto os nazistas seguiam invadindo territórios na Europa, que vivia o terror da Segunda Guerra Mundial, no sul do Brasil, qualquer menção à guerra era algo um tanto quanto distante. Mas a chuva que começou a cair sobre vários municípios gaúchos em meados de abril, na Páscoa, e seguiu maio adentro, também deixou o estado num cenário de guerra. A inundação de rios e arroios fez a água se alastrar e cobrir casas, prédios e lavouras. Em Porto Alegre, por exemplo, o nível do rio Guaíba chegou a 4,76 metros. De acordo com o livro ‘A enchente de 41’, de Rafael Guimarães, a capital tinha 272 mil habitantes, contados pelo Censo de 1940, o primeiro feito pelo recém-criado Instituto Nacional de Estatísticas, que originou o IBGE. Embora Porto Alegre fosse acostumada com cheias, já que o Guaíba recebe várias bacias, enchente mesmo era coisa de setembro, mês das ‘enchentes de São Miguel’. Mas há 83 anos, durante 22 dias, foram 619 milímetros apenas sobre a capital, que ficou debaixo d’água em vários pontos.

Luiz Carlos Juchem se mudou para Venâncio com 7 anos. Aos 4, em 1941, viveu a enchente em Porto Alegre (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Quem viveu aquele cenário na primeira semana de maio de 1941, é o administrador Luiz Carlos Juchem, 87 anos. Mesmo com apenas quatro anos na época, ele não esquece os dias de pânico. “Morávamos na rua da Praia, altura da Praça da Alfândega. Meu pai era gerente de um depósito de cigarros da marca Sudan. No meio da noite, saímos de casa para a rua, de caíque, e dali fomos para a casa da minha vó, na rua do Carmo, número 172. Conseguimos chegar fazendo o contorno de toda a ponta do Gasômetro. Tudo tomado pela água. Ficamos na minha vó dias e dias, até baixar.”

Juchem, que aos sete anos ficou órfão de pai, se mudou para Venâncio Aires ainda nos anos 1940, onde ficou sob os cuidados do tio e padrinho Albino, ou Cônego Albino, como a comunidade local se referencia. Ainda morando em Venâncio e vendo a enchente que agora é a maior da história (em Porto Alegre, o Guaíba chegou a 5,35 metros), Juchem afirma: “Tanto uma como outra são brutais.”

Num abrir e fechar de olhos, a perda de tudo

Na noite de 30 de abril para 1º de maio de 2024, a parte baixa da cidade de Venâncio Aires ficou submersa em vários pontos. A água do arroio Castelhano subiu rapidamente, cobrindo casas, comércio e empresas, chegando perto da rua Sete de Setembro. A última vez que isso aconteceu foi há 50 anos, mas, em 1941, o cenário foi semelhante. Esse registro está numa foto, onde os irmãos Faustino e Arlindo dos Santos foram flagrados de carro, dentro da água, perto da Olaria Becker – é o trecho da atual rua Tiradentes, próximo à quadra da rua Antônio Carlos.

Os irmãos Faustino e Arlindo dos Santos, em 1941, na parte baixa de Venâncio, quando o Castelhano também avançou sobre as ruas (Foto: Arquivo pessoal)
Carmen dos Santos, 86 anos, tem lembranças da destruição em 1941, também, no Vale do Sampaio (Foto: Arquivo pessoal)

Faustino tinha uma mecânica ao lado do Clube de Leituras e, anos depois, se tornaria sogro de Carmen dos Santos, 86 anos. “Essa foto mostra a cheia do Castelhano”, relata a professora aposentada. Enquanto lembra desse registro em preto e branco, Carmen recorda do que ela própria viveu, quando pequena. Em 1941, a família dela, os Wildner, moravam na região do Vale do Sampaio. Com a chuva que não parou por dias, o arroio encheu, carregando árvores, lavouras e galpões, como aconteceu na última semana, na divisa de Venâncio com Sério e Santa Clara do Sul.

“A força foi tamanha, que destruiu parte do moinho do meu avô Ernesto e a casa também foi atingida. Eu tinha só três anos, mas lembro de olhar pela janela e ver uma carroça sendo levada pelo arroio. Isso marcou minha vida.” Conforme Carmen, depois da enchente de 1941, o pai Lindolfo decidiu recomeçar em outro lugar e, por isso, se mudaram para a cidade. “A gente só falava em alemão e, em plena guerra, foi muito difícil.” Ao comparar as situações separadas por 83 anos, ela diz que o pavor se repetiu. “Num abrir e fechar de olhos, muitos perderam tudo. Terrível, as duas.”

Em Linha Isabel, a ponte não resistiu

O que ajuda a explicar o nível assustador do arroio Castelhano em 2024, foi a quantidade de chuva nas cabeceiras, especialmente nas regiões de Saraiva e Monte Alverne, interior de Santa Cruz do Sul. Há 83 anos, de acordo com o livro ‘A enchente de 41’, foram 24 dias de chuva em Santa Cruz, totalizando 757,8 milímetros, o que contribuiu para a elevação de outros arroios que descem Venâncio. Entre eles, o Buriti, que vem serpenteando por Linha Isabel até Linha Arroio Grande.

Quem lembrava disso era Elmiro Klamt, uma criança de seis na primeira grande enchente. Ele faleceu em 2023, aos 89 anos, mas, antes disso, dividiu as memórias com a escritora Rosmeri Menzel, que é natural de Linha Isabel. Rosmeri conta que, durante a busca por informações para a história dos 150 anos da localidade (comemorados no ano passado), recebeu muitos relatos sobre fatos ainda não registrados. Um deles é sobre a enchente de 1941, contado por Elmiro Klamt. “Elmiro ouviu do pai dele, Edmundo, que a enchente de 41 foi devastadora. Destruiu a primeira ponte da localidade, construída em pedra no formato de dois arcos, alterou parcialmente o leito do arroio Buriti em alguns locais, e arrancou e carregou árvores enormes. Esta ponte, na época, foi reconstruída e segue firme. Fica perto do antigo moinho de Helmuth Siebeneichler”, relata a escritora.

Foto era algo raríssimo na época e o que tinha, na maioria, eram famílias posadas. Mas há 83 anos, um fotógrafo registrou a ponte de Linha Isabel destruída. De acordo com o que Elmiro Klamt contou para Rosmeri, as fotos seriam de Bruno Posselt, também morador de Linha Isabel. Ele era fotógrafo e tinha o primeiro moinho da localidade, inclusive com um gerador que abastecia a propriedade e alguns vizinhos com energia elétrica.

Ponte sobre o arroio Buriti, em Linha Isabel, foi parcialmente destruída pela enchente de 1941. Pedaço de um dos arcos ainda era visível, à esquerda (Foto: Acervo Família Klamt)
Zilda Seidel, 89 anos, moradora da Picada Bohn, lembra da água do arroio em Linha Isabel dentro da casa do tio, em 1941 (Foto: Arquivo pessoal)

Chuva por muitos dias

Também no arroio de Linha Isabel, está a memória de Zilda Seidel, 89 anos. Moradora de Picada Bohn, em Linha Brasil, ela conta que naquele maio choveu dias sem parar e a água não parava de subir. O tio, Pedro Bohn, morava mais perto do arroio e, como toda criança curiosa, correu junto quando os pais foram ver o que acontecia. “A água já estava na cozinha e na sala da casa do meu tio. Foi muito rápido. Eu era uma menina e queria ajudar a tirar as coisas, mas quase fui levada pela água. Sorte que a mãe me segurou e me levou num lugar alto”, relata a agricultora aposentada.

A mãe de Zilda é Bertha Bohn, que entre as décadas de 1930 e 1960 se tornou importante no interior como parteira. “Depois a mãe me xingou, que criança não era para ir perto da água. Eu tinha 6 anos e o que eu vi em 41 foi grande, mas agora é muito pior. Achei que nunca mais ia ver isso. E a natureza fez pior.”

Ponte em Linha Isabel foi reconstruída depois de 1941. O registro mais recente é do início de 2024 (Foto: Rosmeri Menzel)
Alberto da Cruz, 92 anos, sobre 1941: “Olhava pela janela e só via chuva. Dia a após dia, não parava.” (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Água até o pescoço

Chocado com o que viu nos últimos dias, Alberto Oliveira da Cruz, o Beto, 92 anos, lembrou do que ouviu em 1941, no ‘boca a boca’ que chegava da então Estância Mariante, com a enchente do rio Taquari, em Venâncio. O mesmo rio que, há 83 anos, chegou a 29,9 metros em Estrela, alcançou 34,05 metros em 2024.

Na época com 9 anos, Beto morava com a mãe e os irmãos menores na região entre a Vila Rica e a Linha Estrela. “Eu olhava pela janela e só via chuva. Dia a após dia, não parava. Isso encheu tudo que é arroio e rio por aí. A gente não tinha rádio, mas ouviu muita história, contando cada barbaridade do Mariante, que foi muito sério lá. Perto de onde a gente morava, tinha um banhadinho que virou açude. O pessoal cruzava com água no espaço”, lembra o aposentado.

Enchente do rio Taquari, no município de Taquari, em 6 de maio de 1941 (Foto: Acervo de pesquisa Sofia Royer Moraes)

Semelhanças entre a enchente de 1941 e a de 2024

A professora universitária Sofia Royer Moraes, que é de Venâncio Aires, faz um comparativo entre 1941 e 2024. Nas pesquisas dela, que é engenheira ambiental e doutoranda em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), constituiu um acervo com base em pesquisas regionais, livros e jornais antigos, acervos e museus municipais e bibliotecas, por exemplo. Entre esses registros, estão as fotos que mostram o Mercado Público de Porto Alegre e Taquari, ambas em 1941.

Para Sofia, entre as principais semelhanças entre os dois eventos climáticos, está a ordem espacial de ocorrência da chuva, abrangendo boa parte do estado, em especial a região hidrográfica do rio Guaíba, o qual capta um conjunto de bacias: Gravataí, Sinos, Caí, Taquari-Antas, Alto Jacuí, Pardo, Vacacaí Mirim e Baixo Jacuí. “Em ambas as inundações, os volumes foram semelhantes. Mas em 1941, choveu por um período de tempo maior que agora. Em 2024, choveu muito em poucos dias.”

Conforme a pesquisadora, uma das principais diferenças entre as inundações, além das perspectivas de mudanças climáticas, está atrelada ao aumento populacional e o impacto decorrente. “A população tende a esquecer dos eventos extremos, algumas famílias tendem a se mudar e, com o passar das décadas, áreas que são suscetíveis a inundações, tendem a ser reocupadas. Com a expansão urbana, agora há um número muito maior de pessoas suscetíveis aos impactos das enchentes, essa pelo menos era uma tendência até 2023. E, neste momento, não me parece que vamos nos curar tão cedo do que estamos vivendo. Desejo força e resiliência para todos.”

565 milímetros – foi o que choveu em Venâncio entre os dias 27 de abril e 8 de maio, conforme pluviômetro do agricultor Paulo Fischer, que mora na região do Parque do Chimarrão.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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