Marli Seibt, a costureira que fez quase 50 bandeiras de sociedades e clubes de Venâncio Aires

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Não foram poucas as vezes que o ato de costurar, ao longo da História, serviu como analogia para construir narrativas e até mesmo mitos. A condição não surpreende já que o verbo vai além de unir tecidos através de linha e agulha. Talvez a analogia mais comum seja com a costura da vida e das histórias. Na mitologia grega, por exemplo, existem as moiras, as três irmãs que determinavam o destino dos seres humanos, tecendo e cortando aquilo que seria o fio da vida de todos.

Em Linha Maria Madalena, interior de Venâncio Aires, mora uma mulher que também cortou, costurou e bordou histórias. Não especificamente de pessoas, mas de clubes e localidades. Ela é Marli Teresinha Seibt, 54 anos, que virou uma referência como costureira e já fez quase 50 bandeiras, um dos maiores símbolos das sociedades e associações.

A história dela com linha e agulha começou por um empurrãozinho do pai, Norberto Schwendler. A família morava em Linha Arroio Grande e, no início dos anos 1980, foi ele quem incentivou a filha mais velha a aprender corte, costura e bordado. “Honestamente eu não gostava muito de estudar, mas gostava de trabalhos manuais. Aí o pai pagou para eu fazer uns cursos na cidade. Eu ‘parava’ na casa da Mônica Zeni e foi ela quem me ensinou”, lembra Marli.

Em 1987, quando completou 18 anos, Marli quis voltar para o Arroio Grande e trabalhar em casa, tendo o apoio do pai. Foi nessa época que Norberto comprou uma máquina industrial Singer, já usada na Casa Schwertner, e que acabou sendo adaptada apenas para bordar. O equipamento segue com Marli até hoje, num quartinho de costura de 2,5 metros x 2,5 metros, em Madalena, onde mora com o marido Luciano, 56 anos, e os filhos Samuel, 26, e Gabriel, 25.

A primeira bandeira

Quando Marli voltou para casa, também foi Norberto que influenciou a filha a tentar confeccionar uma bandeira. “Ele era presidente da Sociedade Palmeiras e a bandeira estava em más condições. Tinha a Lídia Ruppenthal [já falecida], em Linha Brasil, mas ela não pôde. Daí o pai me incentivou a fazer.” Assim, usando a bandeira antiga como molde, levou mais de uma semana entre costura e bordado, mais da metade do tempo médio que levava nos últimos anos de prática.

Sobre a primeira bandeira, Marli revela que ela é um pouco menor que o tamanho padrão, que deve ter 1,30 x 0,90. “O pai me ajudou a segurar um fio para traçar o corte. Mas puxou enviesado e ficou torto. Teve um erro de cálculo, por isso ela é menor”, revela, entre risos.

Das dezenas de bandeiras que fez, Marli (à direita) participou da inauguração de muitas delas, como a da Sociedade de Damas Harmonia, de Linha Harmonia da Costa (Foto: Arquivo pessoal)
Conforme Marli, para fazer o bordado é necessário ir ajeitando o tecido com as mãos e o joelho, embaixo da máquina, é o que dá movimento à agulha (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Como é feita uma bandeira

• As bandeiras são feitas com tecido de cetim e são usadas linhas especiais para bordado e também para as ‘franjas’ no entorno. Marli explica que cada peça é a junção de duas bandeiras, para que uma seja a frente e a outra o verso. Na parte frontal, é bordado o nome, o desenho que simboliza o grupo e a localidade. No lado oposto, nas cores verde e amarela (que remetem à bandeira brasileira), vai a data de fundação da sociedade e a data de inauguração da bandeira.

• Para os símbolos e formatos de letras, é feito um desenho em papel manteiga. Aqui, o marido Luciano também já ajudou muito. Foi dele o desenho da bandeira que Marli considera a mais difícil e também a que mais gostou de fazer: do Clube de Mães São Pedro, de Vila Santa Emília. “Tinha um pôr do sol sobre a água com cores em degradê.”

Contexto histórico

Para entender a importância das bandeiras para sociedades ou associações e qual o simbolismo delas, a reportagem conversou com o professor de História, Denis Puhl. Segundo ele, a questão está relacionada à identificação entre membros de uma mesma organização ou grupo. “Na comunicação, na expressão artística, na espiritualidade ou na identidade cultural, os símbolos desempenham um papel essencial na forma como percebemos e interagimos com o mundo ao nosso redor. Por exemplo, na História das civilizações, quando o poder oscilava entre grandes impérios, andando na frente dos milhares de soldados em batalhas mortais, sempre tinha uma bandeira hasteada.”

Ainda conforme Puhl, é então que um brasão, uma bandeira ou até mesmo um lenço viram símbolos que passam a ser compartilhados e que vão remeter ao pertencimento de quem pretende ser reconhecido num grupo. “Na região, esse fenômeno de representações simbólicas vai surgir com o advento da presença dos imigrantes germânicos, mais precisamente na segunda metade do século 19. O loteamento de terras agricultáveis para os recém-chegados que vinham a se estabelecer nos férteis vales dos rios Taquari e Pardo fizeram brotar o cooperativismo entre os pioneiros.”

O professor explica que as famílias também começaram a contabilizar aumentos significativos na quantidade de membros de cada localidade. “Foi assim que surgiram, por todos os lados, sociedades religiosas, esportivas e culturais. Eram nesses encontros que iniciavam amizades, namoros, novas famílias, fato que garantiu o desenvolvimento da zona rural e da nossa cidade como um todo. E é interessante saber que ainda existem algumas associações centenárias, grupos que reproduzem a tradição de seus antepassados, que ainda mantêm seus encontros e a qualidade da integração social, usando seus símbolos, no caso as bandeiras”, destacou o professor, referenciando que, no livro ‘Abrindo o baú de memórias’, consta que em 1922 Venâncio Aires contabilizava 55 sociedades.

No registro, a presença de bandeiras de sociedades de cantores, numa ‘Sängerfest’, um encontro de corais, em Linha Isabel, em 1937 (Foto: Reprodução/Facebook)

Um trabalho em extinção

Marli Seibt confeccionou 49 bandeiras entre 1987 e 2007, para grupos de aproximadamente 25 localidades. “Acho que é um trabalho em extinção mesmo, porque as sociedades estão deixando de existir. Das 49 que fiz, umas 15 sociedades já fecharam. Hoje em dia, com a internet, o mundo mudou. Os jovens não veem mais sentido em participar de uma associação assim.”

Conforme a costureira e também agricultora, é uma realidade bem diferente ‘do tempo dela’. “Quando a gente era criança, contava nos dedos para completar 14 anos e poder participar da sociedade. A Flor de Maio, de Arroio Grande, que minha mãe participava, chegou a ter 100 sócios.” Além das bandeiras virarem raridade, Marli considera que o próprio trabalho com bordado vem diminuindo. Mas, dentro da casa dela, ainda há muito dessa ‘arte’ à vista, como os guardanapos na estante da sala, os panos de prato, as fronhas e lençóis, toalhas de mesa e cortinas. “Minha mãe [Maria Schwendler] sempre dizia que eu tinha puxado o talento da minha bisavó, que não conheci, e ela chamava de ‘vó Bohn’.” E desta bisavó do lado materno, aliás, que Marli guarda uma relíquia: uma colcha de crochê feita há 100 anos e que está com as mulheres da família há quatro gerações.

A costureira fez bandeiras de grupos de mais de 20 localidades (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

“Acho que contribuí um pouco para a história das sociedades. Quando a gente vai numa festa de comunidade e as bandeiras estão lá, dá orgulho ver meu trabalho exposto. Sempre fiz e aceito de coração fazer bandeiras, porque para mim isso é um privilégio e uma honra.”

MARLI SEIBT – Costureira e agricultora

Bandeiras, faixas e distintivos

Marli é uma das poucas pessoas conhecidas em Venâncio que trabalharam na confecção de bandeiras de sociedade. Além dela, a reportagem conheceu Lires Gabe Dessbesell, 71 anos, moradora de Centro Linha Brasil.

Lires também fez esse trabalho e, além de bandeiras para grupos de Venâncio Aires, fez muitas encomendas para localidades no entorno de Monte Alverne, distrito de Santa Cruz do Sul. Foram aproximadamente 20 peças em pouco mais de 20 anos.

A moradora de Centro Linha Brasil também sempre foi requisitada para costurar e bordar roupas para blocos de Carnaval, faixas para reis, cavalheiros, rainhas, princesas e mães do ano de sociedades. Também fez distintivos para os clubes.

Ritual nos velórios

• Como era há cerca de um século e ainda é hoje em dia, um ritual envolvendo as bandeiras é tradicional após a morte de pessoas que integram alguma sociedade, especialmente no interior, entre descendentes de germânicos. Os companheiros, uniformizados, comparecem ao velório. Os gestos na cerimônia de despedida vão depender se o falecido é homem ou mulher, mas em ambas as situações, a bandeira é passada três vezes sobre o caixão, envolta em pano preto (sinal de luto), e baixada mais três vezes dentro da sepultura, no momento do enterro.

Um enterro, em Linha Isabel, na década de 1930, com as bandeiras enroladas em pano preto para a despedida de um associado (Foto: Reprodução/Facebook)

Bandeiras feitas por Marli entre 1987 e 2007

  • Sociedade Esportiva Cantores – Linha Arroio Grande
  • Sociedade 15 de Março – Linha Monte Belo
  • Sociedade Nova Esperança – Linha Monte Belo
  • Sociedade Atiradores Riograndense – São Martinho (Santa Cruz)
  • Sociedade Lanceiros Gaúchos – Pinheiro Machado (Santa Cruz)
  • Sociedade Damas Jovialidade – Vila Teresinha
  • Sociedade Damas Flor de Maio – Linha Arroio Grande
  • Sociedade Damas Harmonia – Linha Harmonia da Costa
  • Clube de Mães Luta e Conquista – São Pedro, Vila Santa Emília
  • Sociedade Cultural Ouro Verde – Linha Olavo Bilac
  • Sociedade Damas 22 de Novembro – Linha Boa Esperança
  • Sociedade Damas Prosperidade – Linha Maria Madalena
  • Sociedade Damas Flor de Maio – Linha Lucena
  • Clube de Mães Unidas da Família – Linha Marechal Floriano
  • Sociedade Tiro ao Alvo Sempre Unidos – Linha Botão (Santa Cruz)
  • Sociedade Primavera – bairro Santa Tecla
  • CTG Recanto Nativo – Monte Alverne (Santa Cruz)
  • Sociedade Riograndense – Linha Arroio Grande
  • Sociedade Damas Alegre – bairro Santa Tecla
  • Sociedade União Liberdade Unidos – Monte Alverne (Santa Cruz)
  • Sociedade Damas Rosa Branca – São Martinho (Santa Cruz)
  • Sociedade Treze de Março – bairro Aviação
  • Sociedade Damas Flor de Maio – Linha Chaves (Santa Cruz)
  • Sociedade Damas Rosas do Sul – Santa Eugênia (Santa Cruz)
  • Sociedade Atiradores Concórdia – Linha Isabel
  • Grupo do Lar Estrela da Amizade – Linha Lucena
  • Sociedade Cultural Bom Humor – Linha Cecília
  • Clube de Mães Unidas de Isabel – Linha Isabel
  • Grupo Bola Presa Progressista Imigrante – Júlio de Castilhos (Santa Cruz)
  • Sociedade Esportiva e Cultural – Monte Alverne (Santa Cruz)
  • Grupo Folclórico Alemão Die Schwalben – Linha 17 de Junho
  • Sociedade Vida Nova – Linha Harmonia da Costa
  • Sociedade Cantores Alegria – Linha Isabel
  • Clube de Mães Entre Colinas – Alto Sampaio
  • Clube de Mães Sempre Bem Vindas – Sampaio (Sério)
  • Sociedade de Senhores Boa União – Primavera (Santa Cruz)
  • Grupo do Lar Conselheiros do Lar – Linha Maria Madalena
  • Sociedade Mista Renascer – Linha Brasil
  • Escola Estadual Frida Reckziegel – Vila Palanque
  • Sociedade de Cantores Lira – Linha Maria Madalena
  • Sociedade Prosperidade – Linha Maria Madalena
  • Grupo Feminino Santa Ana – bairro Santa Tecla
  • Grupo Masculino – bairro Diettrich
  • Associação de Damas Unidas Venceremos – Linha 6º Regimento
  • Associação União Progressista – Linha 6º Regimento
  • Associação de Cantores Concórdia – Linha Maria Madalena
  • Associação Riograndense – Linha Arroio Grande
  • Sociedade Esportiva Cultural Departamento Feminino – Monte Alverne (Santa Cruz)
  • Associação Esportiva Cultural e Recreativa São Luiz – Vila Santa Emília



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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