Folha do Mate conta a história de Carlos Roberto de Oliveira, uma das maiores vozes do rádio venâncio-airense e que completou cinco décadas de profissão em 2024.
A Seleção Brasileira tricampeã mundial em 1970 fez os brasileiros sonharem, afinal, para quem viu e ouviu, parecia um sonho aquele time com Pelé e tantos craques. Mas enquanto a maioria vibrava com as vitórias, um rapazote de 14 para 15 anos se encantava pela voz que transmitia os jogos: a de Pedro Carneiro Pereira, então locutor da Rádio Guaíba e, considerado por muitos até hoje, o melhor narrador do Rio Grande do Sul.
No dia 7 de junho de 1970, ele narrou assim o gol da vitória de 1 a 0 sobre a Inglaterra: “Grande jogada de Tostão, demorando, levantou para Pelé, preparou, atenção para Jair, tem apenas o arqueiro, atirou, gooooollllllll, de Jairzinho para o Brasil! Uma jogada fenomenal de Tostão pela esquerda. A pelota foi levantada para Pelé, com notável categoria dominou, encostou a bola mais para perto, fuzilou o goleiro Banks, 15 minutos de luta! Brasil, Brasil, Brasil, Brasil!”
A precisão da descrição da jogada se transformava em imagens para o então adolescente Carlos, que escutava e sonhava em também trabalhar em rádio, em levar emoção para os ouvintes. Sonho esse que começou a realizar em novembro de 1974, há 50 anos. Essa é a história de Carlos Roberto de Oliveira, o Carlão, uma das vozes mais importantes do radiojornalismo de Venâncio Aires.
Do microfone de graveto à cabine no Beira-Rio
“Não, o meu filho já está aqui”, argumentou Donato de Oliveira, ao receber das mãos de irmã Guilhermínia, a madre do Hospital São José, em Taquari, uma recém-nascida. Mas a menininha era dele, assim como o menino, que lhe foi entregue minutos antes. Em 25 de junho de 1955, Donato se surpreendeu ao descobrir que a esposa, Maria Ely, levava no ventre duas crianças.

Quanto voltaram para casa com os gêmeos, no ‘Quebra Telha’, Distrito de Barreto, em Triunfo, Donato estava decidido: a filha seria Guilhermínia, em homenagem à religiosa do hospital. Para ‘combinar’, o menino seria Guilherme, como o santo católico do dia 25 de junho. Assim, durante algumas semanas, o pequeno foi Guilherme ou ‘Zé Bolão’, já que era mais roliço que a irmã. Isso durou até o registro no cartório, em que Maria Ely decidiu, depois de se agradar de nomes tirados de um almanaque: Carlos Roberto e Aida Maria.
No campinho do bairro
Quando as crianças tinham de 2 para 3 três anos, houve a mudança para o município vizinho de Taquari. Sem saber ler e escrever, Donato trabalhou de ‘um tudo’ para oferecer melhores condições à família, já que em 1958 ainda nasceria a caçula, Maria Marlene. Primeiro, os Oliveira moraram no Passo da Areia, depois se mudaram para o bairro Lagoa Seca, onde o volume do rádio ecoava da maioria das casas e onde havia um potreiro que, futuramente, viraria o novo estádio do Esporte Clube Pinheiros. Foi naquele campinho que o menino Carlos bateu bola. Eram tempos de Grupo Escolar Barão de Ibicuí, onde um dos coleguinhas era o ‘Júlio do Fritz’, o futuro deputado federal Júlio César Redecker, que faleceu no desastre com o avião da TAM, em 2007.

O radinho Sharp
Após pedido do pai diretamente ao prefeito João Carlos Voges Cunha, Carlos foi admitido como bolsista para seguir os estudos e cursar o ginásio no Aprendizado Agrícola Presidente Dutra, o Patronato, onde os alunos eram internos. O local ficava a apenas 12 quilômetros de casa, mas para um adolescente nos anos 1960, tudo era longe e tudo era saudade. “Chorei muito na primeira noite”, revela o jornalista Carlos Roberto de Oliveira, o Carlão, hoje com 69 anos.
Para atenuar a solidão, Donato deu um presente para o filho. Era um radinho de pilha Sharp, envolto numa capa de couro, que ele encostava no rosto todas as noites, junto ao travesseiro, para ouvir baixinho e longe dos padres, o plantão esportivo de Antônio Augusto, na Rádio Guaíba, e os programas românticos na Rádio Itaí. Por fim, cursou o científico no Colégio Nossa Senhora da Conceição, integrado ao 2º grau. A conclusão dos estudos foi graças ao esforço de Maria Ely, que lavou muita roupa para fora para custear os estudos do filho.

A timidez quase venceu a vontade de trabalhar no rádio
Quando não estava na escola, Carlos se ocupava, basicamente, com duas coisas: uma delas era cultivar hortaliças com a irmã gêmea. O dinheiro da venda de alface e temperos, ele entregava para a mãe, que então lhe repassava uma parte para gastar no que quisesse. Geralmente, o investimento era em gibis de faroeste, do personagem Black Diamond.
A outra ocupação era jogar bola no campinho do bairro. Embora não tivesse posição fixa no time, uma função em especial era dele: narrar as próprias jogadas e dos amigos. Quando ficava de fora, pegava um graveto ou um pedaço de pau que virava microfone improvisado. Ele tentava repetir o estilo de Pedro Carneiro Pereira, o Pedrinho, principal narrador da Rádio Guaíba e seu maior ídolo.
Assim também fez no internato, nos tempos de ‘Seleção dos Menores’ e ‘Seleção dos Maiores’. “Eu não era muito bom, mas muito esforçado. Nunca tinha alguém para jogar na lateral esquerda, então fui. Mas a cada jogada, eu precisava puxar para a perna direita e então cruzar. Quando sobrava no time, lá eu ia para a beirada, narrar num microfone de graveto.”

Três meses para criar coragem
O gosto pelo rádio e pelo jornalismo cresceram com Carlos e por isso ele começou a vislumbrar o futuro profissional. No entanto, a timidez quase impediu esse começo. Em meados de 1974, Valdir Fritz de Souza, então gerente da Rádio Açoriana AM 1560, soube, através do professor Paulo de Tarso Pereira, que um aluno dele tinha interesse em trabalhar. “Ele foi lá em casa, mas eu era tão tímido que quase não saí no portão. Era para fazer um teste, só que todo dia eu passava na frente da emissora e não entrava. Levei três meses para criar coragem”, relata o jornalista, entre risos.
Vencida a timidez, em 23 de novembro de 1974, Carlão começou no rádio, fazendo locuções comerciais e de notícias. Às noites, apresentava o ‘Açoriana recorda o passado’, com músicas românticas. Num certo programa, em novembro de 1975, ofereceu a canção ‘Eu amo tanto, tanto’, de Moacyr Franco, para uma mocinha de 15 anos, que ele conheceu no balcão de um armazém na Rua da Paz: era Vera Lúcia Martins, futura namorada e com quem casaria poucos meses depois.


A primeira transmissão esportiva no rádio
Também em novembro de 1975, exatamente um ano depois de ingressar na rádio, liderou a primeira transmissão de um jogo de futebol da Açoriana, em pleno estádio Beira-Rio. Era a preliminar de um Gre-Nal, vencido pelo Inter por 1 a 0. O jogo narrado pelo jornalista foi Taquariense 4 x 1 Guarany de Camaquã, na decisão da Copa Pedro Sirângelo.
Na cabine ao lado no Beira-Rio, o jovem de apenas 20 anos teve como vizinhos um trio histórico do jornalismo esportivo gaúcho, então pela Guaíba: o narrador Armindo Antônio Ranzolin e os comentaristas Lauro Quadros e Ruy Carlos Ostermann. Já em 1976, narrou Pinheiros x Taquariense, na inauguração do novo ‘Pinheirão’, construído no potreiro onde batia bola na infância. O comentarista nesse jogo foi o amigo do primário, Júlio César Redecker.


A voz que contou as glórias do Guarani pelo rádio
Antes de trabalhar em Venâncio Aires, Carlão ainda teve passagens pela rádio Alto Taquari, de Estrela, e contribuiu para jornais, como colunista e como repórter. Escreveu para O Taquariense e O Açoriano, ambos de Taquari, e A Região, de Estrela. No início de 1988, indicado por Astor Reckziegel e após convite de Walter Kuhn (nomes experientes no rádio venâncio-airense e fundadores do jornal Folha do Mate), Carlão começou a trajetória na Capital do Chimarrão. Foi pela Rádio Venâncio Aires AM 910, que ele virou ‘a voz do esporte’ de Venâncio.
Coincidência ou não, foi justamente em 1988 que o Esporte Clube Guarani ‘surgiu’ para o futebol gaúcho e Carlão narrou os jogos decisivos contra a Associação Sapiranga, o que inclui o gol de pênalti do então capitão Mano Menezes e que resultou no título estadual Amador de 88.
“Esse foi um dos meus jogos marcantes. Assim como a campanha do título do Campeonato Gaúcho do Interior, em 2002, e a Copa do Brasil de 2003, quando a RVA fez uma transmissão do outro lado do país”, relata, lembrando do duelo no Rio Grande do Norte, quando o Guarani enfrentou o América, em Natal. Em 2002, já tinha ido a Santa Catarina, Minas Gerais e Paraná para contar os jogos do Rubro-Negro, campeão da seletiva para a Copa Sul-Minas.


Cidadão Venâncio-airense
Carlão conta que não esperava que sua estadia em Venâncio Aires fosse tão longa. Afinal, ele chegou em 1988 e, desde então, virou casa. Sobre o porquê de ficar, o jornalista diz que é a esposa Vera, 64 anos, quem melhor define: “Fizemos de Venâncio nossa pátria, o lugar da gente.” O casal tem um filho, Douglas, que tinha 10 anos quando o pai chegou em Venâncio. Com a esposa Micheli, Douglas tem duas filhas: Melissa, 14 anos, e Letícia, 7. Carlão poderia, por si só, se considerar filho da terra, pois mais da metade da vida está na Capital do Chimarrão. Mas ele o é, de fato, porque em 2019 recebeu o título de Cidadão Venâncio-airense.


O apelido
Se na infância ele foi apenas Carlos (depois de ser Guilherme e até Zé Bolão), como profissional carregou mais duas alcunhas. Em Estrela o chamavam de Carlinhos ou Leco (alusão a um amigo de adolescência). Virou Carlão, por definitivo, em Taquari, após sugestão do locutor Cilon Coutinho. “O Cilon dizia que Carlos Roberto não dava. Daí me chamou de Carlão e ficou.”
A faculdade e o início na Rádio Terra FM
Carlos Roberto de Oliveira realizou o sonho de trabalhar em rádio com apenas 19 anos. Com 40, tratou de sonhar (acordado) outro: a faculdade de Jornalismo, desejo que alimentava desde os tempos de internato, mas que por questões financeiras não foi possível tão logo. Se formou na Unisinos em 2001, depois seguiu estudando e também tem mestrado em Educação.

Trabalhou na RVA até 2009 e depois passou por rádios na região. Em 2016, voltou para Venâncio. Numa parceria entre jornal Folha do Mate e Rádio Terra FM, nasceu o Olé Futebol Clube, projeto para transmissões na 105.1. Daniel Heck, hoje diretor da emissora, sugeriu o nome de Carlão. O narrador coordena o Olé até hoje e, além de narrar futebol e futsal, apresenta o Olé Esporte Clube nas terças à noite, o Terra em Uma Hora, ao meio-dia de segunda a sexta, e o Conversas de Fato, sábados pela manhã. Também assina uma coluna na Folha do Mate às quintas-feiras.
Ainda tem muita bola na rede
Carlão cresceu ouvindo as transmissões da Guaíba nos anos 1960, década vitoriosa do Grêmio, por isso sua torcida é ‘levemente’ azul, lembrando dos gols de Alcindo. Mas também sempre admirou Falcão e Carpegiani, dois craques do Inter da década de 1970, além, claro, do maior de todos, Pelé.
Com 50 anos de carreira, não faz ideia de quantos jogos narrou, nem de quantas vezes gritou gol. Mas é rápido ao citar um gol que gostaria de ter narrado: o de Jairzinho, no Mundial de 1970, descrito no início dessa matéria, nas palavras de Pedro Carneiro Pereira. Sendo fã de Pedrinho, portanto alguém que sempre preferiu a narração precisa e denotativa, ainda assim Carlão criou um bordão que virou sua marca registrada.
“O ‘tem bola na rede’ nasceu em 1982, em Estrela. Primeiro eu não gostei muito, levou tempo até melhorar a entonação. Bordão não é muito meu estilo, mas tentei me adaptar a algumas coisas que estavam mudando. E no rádio é assim, precisamos ir nos adaptando aos tempos.” Sobre até quando vai narrar, Carlão diz que “enquanto eu tiver lucidez, vou seguir. Para mim, o radiojornalismo é uma missão.”


As próprias ‘copas do mundo’
Ele, que é descrito por colegas e amigos (entre eles Diogo Fedrizzi e Antônio Carlos Pereira, o Nico) como um jornalista independente e que sempre empenhou o mesmo profissionalismo e seriedade em qualquer transmissão. Isso, seja numa final de campeonato gaúcho, seja num jogo amador no interior de Venâncio, afirma que não se arrepende de não ter trabalhado em veículos maiores, como rádios da capital. “Quando penso em alguns nomes de expressão no rádio, que trabalharam em coberturas de várias Copas do Mundo, não tenho frustração. Minhas ‘copas’ foram as coberturas que fiz aqui, que foram grandes para as pessoas daqui. Tenho esse entendimento, de que podemos fazer coisas grandes, onde quer que se esteja.”
“O rádio sempre foi, ainda é e sempre será, meu único e verdadeiro ofício de vida. Vivi e vivo o rádio o tempo todo. Se um dia ousei afastar-me dele, ele jamais se afastou de mim.”
CARLOS ROBERTO DE OLIVEIRA – Narrador e jornalista
‘O monarca do microfone’
Um personagem importante nessa história faleceu com apenas 35 anos, após um trágico acidente de carro, em outubro de 1973. Quando Carlão tinha 18 anos, ele ouviu, ao vivo, Antônio Augusto, o plantão esportivo da Guaíba, anunciar a morte de Pedro Carneiro Pereira, até hoje a maior referência do jornalista.
A morte do ídolo mexeu com o jovem Carlos Roberto que, no início de 1974, pouco antes de começar sua trajetória no rádio, escreveu sobre ele e o chamou de ‘O monarca do microfone’. Está escrito a mão, num caderninho já amarelado pelo tempo e que o jornalista permitiu que esta repórter o lesse. É um texto emocionado, puro, saudoso e sonhador.
Cinco décadas depois, espero que o senhor tenha realizado tudo que sonhou até aqui (porque a paixão e os sonhos seguem, né?). Sei que na infância você brincava de ser o Pedrinho, mas a vida, ou melhor, o rádio, lhe transformou no Carlão, com uma voz igualmente no aumentativo, que marcou gerações e que segue como referência profissional para muitas pessoas. Eu sou uma delas, privilegiada, também, por crescer acompanhando nomes como João Paulo Heck, Sérgio Klafke e Wilson Weschenfelder, verdadeiros ‘decanos’ da comunicação venâncio-airense. A estes e especialmente ao senhor, meu respeito e admiração. Como você se referiu a Pedro Pereira, “a voz do homem que ficará para sempre gravada na memória”, saiba que sua voz, Carlão, também já está eternizada. Um ‘monarca’, um verdadeiro soberano do microfone e do jornalismo.
Débora Kist – Jornalista