Conheça mais sobre a história de Camila Machado de Souza e a Volkswagen Variant vermelha 1972. Veículo é uma herança e uma saudade do avô materno Antônio Ehlert.
Lançada no fim dos anos 1960, a ‘perua’ Volkswagen Variant fez sucesso entre os brasileiros, o que se justificava, muito, pelo espaço para bagagens. Havia o porta-malas traseiro, acima do motor, com um tamanho estendido, o que agradou muitas famílias pela possibilidade de carregar mais coisas.
Mas nos anos 1990, pelas estradas do interior de Venâncio Aires, uma certa Variant não levava apenas objetos atrás dos bancos. A bordo daquele carro, uma menina viveu momentos felizes de uma infância que não volta mais, com um avô que também já se foi. Mas o legal da história é que o elo entre essa neta saudosa e esse avô querido ainda existe, inteiro e pronto para seguir formando novas memórias. Essa é a história de Camila Machado de Souza e sua ‘querida’ Volkswagen Variant 1972.


Camila, ainda criança, e atualmente, dentro da Variant (Fotos: Arquivo pessoal e Débora Kist)
Poeira pela janelinha da Volkswagen Variant
Antônio Ehlert (1934-2013) foi uma figura conhecida em Linha Saraiva, à margem do arroio Castelhano, na divisa entre Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul. Lá, manteve por décadas uma casa comercial com a esposa Silda (hoje com 85 anos). Ehlert foi professor em escolinhas do interior e também instrutor de tabaco, e era importante ter um carro para cumprir com os compromissos.
Um deles, foi uma Volkswagen Variant 1.600 de cor vermelha, ano e modelo 1972, que ele comprou em 1979 e contava para todo mundo, orgulhoso, que o carro pertenceu à Folha do Mate – foi usado para entregas no interior nos primeiros anos de funcionamento do jornal de Venâncio Aires. Ehlert, aliás, era um grande leitor e foi assinante do jornal por décadas.

Essa Variant vermelha, ele sempre mantinha limpa, encerada e com pouca gasolina “para não enferrujar o tanque”. Nos anos 1990, quando as linhas de ônibus começaram a diminuir em algumas localidades, muitas vezes o carro foi usado para levar familiares de volta para casa, na área urbana, ou até Monte Alverne, onde passavam ônibus. “Às vezes iam sete pessoas dentro. Eu e minhas amigas íamos no espaço logo atrás do banco traseiro. A janelinha ficava aberta e a gente ia ‘comendo’ poeira. Mas era uma diversão, todo mundo sacolejando dentro do carro do vovô”, conta a técnica em Enfermagem, Camila Machado de Souza, 36 anos.
Não bastasse o veículo superlotado de gente, ainda se encontrava espaço para acomodar latas de bolachas, baldes de banha, cucas e ovos, aquela ‘bagagem’ tradicional e que até hoje é muito comum para quem volta de um passeio nos parentes da ‘colônia’.

Minha querida
Ainda criança, Camila ouviu que o avô queria trocar a Volkswagen Variant por um Fiat 147, o que foi motivo de cobrança. “Mas, vovô, se vai vender, vende pra mim!”, argumentou Camila, embora não tivesse idade, nem dinheiro para exigir tal coisa. No entanto, o pedido sincero da neta, ainda pequena, não foi esquecido por Antônio Ehlert e ele decidiu ficar com a perua.
Essa cumplicidade entre os dois continuou se fortalecendo com o passar dos anos, tanto que Camila afirma, entre risos, que sempre foi a neta favorita. “Sempre que eu ligava pro vovô, ele perguntava quem era e eu brincava retrucando a pergunta. Aí ele respondia ‘a Mila, minha querida’ e dizia que eu era a neta preferida.”
No inverno de 2013, aos 79 anos, Antônio Ehlert não se sentiu bem durante alguns dias e decidiu ir para o hospital. Ainda foi dirigindo a Variant, mas não voltou mais para casa. Foram dois meses de internação, após descobrir uma leucemia mieloide, período que recebeu os cuidados de Camila.
“Na UTI, do nada ele puxou o assunto da Variant e me disse que seria minha. Mas que a gente era para cuidar bem da casa, da vó e não brigar. O vô sempre foi assim. Não gostava de brigas e até assumia culpas que nem eram dele, tudo para ver todos bem. As últimas palavras dele foram ‘Mila, tu é ótima’.” Ehlert faleceu em 23 de outubro de 2013 e, como era o pedido dele, a Variant foi para a casa de Camila, ainda que durante muito tempo depois, ela nem conseguisse olhar para o carro.
Você sabia?
- A linha 1600, que é da Variant, foi, junto com o Fusca e a Kombi, base da presença da Volkswagen no mercado brasileiro no início dos anos 1970. A Variant, fabricada até 1981, foi considerada o VW mais bonito do Brasil.

O namorado perfeito que também gostava da Volkswagen Variant
A Volkswagen Variant vermelha que tanto encantou Camila durante a infância e a adolescência, também chamou atenção de um jovem lá nos idos de 2010. Nessa época, Marcelo André de Souza acompanhava um tio que era vendedor e percorria casas comerciais do interior de Venâncio.
Pelo roteiro, o estabelecimento de Antônio Ehlert, em Linha Saraiva, era o primeiro da tarde e, toda vez que parava lá, Marcelo voltava o olhar para o carro e ‘jogava verde’ para o dono. “Não quer me vender essa Variant?”, perguntava o jovem. Vendo o interesse do rapaz, Ehlert, certo dia, ligou para a neta Camila e soltou. “Arrumei o namorado perfeito pra ti.”

A jovem não dava bola, mas mal sabia o que o futuro lhe reservava. Numa nova parada na casa comercial, Silda convidou Marcelo para ver fotos da família. Foi aí que ele reconheceu Camila. “Na época de escola, na adolescência, a gente teve um ‘rolinho’ e ‘ficava’. Ela estudava no Aparecida e eu no CAJ”, revela Marcelo, hoje com 37 anos.
Reencontro
Alguns anos passaram sem eles se reencontrarem. Isso só voltou a acontecer já depois que Antônio faleceu, em 2013. Marcelo morava em Santa Cruz, mas foi assistir a um jogo de futebol no interior de Venâncio, onde perdeu a Carteira de Habilitação. Camila, na época ainda muito abalada com a morte do avô, seguidamente ia a Porto Alegre, onde morava o pai. Numa dessas, na rodoviária, ela encontrou o documento de Marcelo, no guichê das passagens, o que lhe motivou a chamá-lo numa conversa no Facebook. Tempos depois, se reencontraram e, em questão de semanas, ele a pediu em casamento. Camila e Marcelo (o ‘namorado perfeito’, como definiu Antônio Ehlert anos atrás) se casaram em 2015.

A Volkswagen Variant do ‘biso’
A Variant está com Camila desde o falecimento do avô, mas durante muito tempo ela mal conseguia olhar para o carro. Embora ele o levasse de volta às lembranças felizes da infância, também sempre foi a imagem da própria saudade.
Esse sentimento dolorido começou a se transformar nos últimos anos, especialmente depois do nascimento de Pedro Antônio, o filho mais velho de Camila e Marcelo. O menino, hoje com 9 anos, veio ao mundo em 15 de maio, exatamente no dia que também era o aniversário de Antônio. “Vovô sabia das coisas. Ele previu tudo isso, só pode. E Deus foi tão bom comigo que realmente trouxe para mim meu marido e meu filho. Fez o 15 de maio, que me fazia chorar, agora ser um dia de alegria, porque é aniversário do Pedro.”

O menino não conheceu o bisavô, mas cresceu em meio a esse amor dos pais pela Variant e também já nutre carinho pelo carro. “O carro não tem preço e depois de mim, o próximo dono será o Pedro. Ele adora o carro do biso”, garantiu Camila, o que também é confirmado por Pedro. “Vou cuidar sim, eu e o Santiago”, comentou, se referindo ao irmão, de um ano e oito meses. Sobre o caçula, aliás, Camila destaca as características que lembram de Antônio. “Os olhos claros são iguais. É curioso e gosta das coisas pequenas, simples da natureza, como o bisa gostava.”
Detalhes
- A Variant passou oficialmente para o nome de Camila há poucas semanas, quando houve definição do inventário. Como o carro ficou muito tempo parado, alguns reparos serão necessários, mas a ideia é mantê-lo original, como é toda sua estrutura e suas peças. “Até o ímã de São Francisco de Assis no painel e os adesivos do Verde é Vida vão ficar. Vou deixar a ‘querida’ como o vovô deixou”, revelou Camila.

CNH e a tatuagem
Ter a Variant que foi do avô agora vai levar Camila a buscar o que ainda não tem: a Carteira de Habilitação. “Agora vou fazer, para poder dirigir. Por enquanto, o motorista é o Marcelo.”
Sobre o carro, ainda, a técnica em Enfermagem revela que cogita tatuar a imagem da Variant. Se isso acontecer, não será a primeira homenagem ao avô gravada na pele. Isso porque Camila já tem uma tatuagem, bastante simbólica: os óculos de Antônio, que ela também guarda com carinho.
Quando menina, aliás, ela adorava brincar com os óculos do avô. Tanto que numa foto de criança ela está usando o item, sentada dentro da ‘querida’ VW Variant 1972.
“Meu vô me deu tudo. De uma forma ou de outra, me deu meu marido e meus filhos. E por isso essa Variant, que tem tudo a ver com essa história, é tão importante para mim.”
CAMILA MACHADO DE SOUZA – Técnica em Enfermagem
A matéria sobre a Variant da Camila é a terceira da série de reportagens ‘Relíquias sobre Rodas’, publicada pelo jornal Folha do Mate em parceria com a Rádio Terra FM. A série tem o patrocínio de Ark Impressão Digital, Posto Schmitz Ipiranga, Tiago Pneus e Via Som Auto Center.