Uma página é muito pouco para falar sobre os mais de 40 anos da profissão de caminhoneiro. São tantos destinos e histórias guardadas com riqueza de detalhes na memória de Lotario Wessling, 62 anos, que seria preciso um livro para dar conta de tantas informações. As fotos de diversas viagens estão cuidadosamente guardadas em um álbum, separadas por estado e “com uma breve descrição”, para facilitar a lembrança.

Motorista de caminhão desde 1977, Wessling já perdeu as contas de quantos municípios conheceu em suas andanças pelo Brasil. Desde 1993, a esposa Luizita Wessling, 67 anos, tem presença marcada nas viagens.

Mais do que fazer companhia ao marido, ela é uma verdadeira copilota e responsável pela “contabilidade” do negócio. “Enquanto ele vai ligando para as empresas, fazendo contatos para fazer os fretes, eu já vou calculando, vendo a distância, se vale a pena”, explica. “Toda a contabilidade é com ela”, afirma Wessling.

Foto: Juliana Bencke / Folha do MateLuizita acompanha o marido nas viagens pelo Brasil, desde 1993
Luizita acompanha o marido nas viagens pelo Brasil, desde 1993

Apesar da paixão por estar na estrada e do espírito aventureiro, atualmente, o casal de aposentados, que reside no bairro Aviação, deu uma reduzida no ritmo das viagens. “Estamos com o caminhão pago e levamos uma vida simples. Até melhorarem as condições para os caminhoneiros, demos uma parada e só viajamos de vez em quando”, comenta.

De acordo com ele, além da tabela do preço do frete não ser cumprida, problemas na infraestrutura das estradas e a insegurança praticamente inviabilizam a atividade. “Sou apaixonado pela profissão, mas no momento estou dando um tempo. Em 42 anos, nunca a situação foi tão ruim. Hoje, andar com pneu novo se tornou um problema, tira o sono de muita gente. Com toda a evolução, apesar do conforto e da tecnologia dos caminhões, hoje a infraestrutura das rodovias é muito precária, muito aquém do razoável.”

Aventuras

Em outros tempos, Wessling e Luizita chegavam a ficar meses sem voltar para casa. Depois da aquisição da primeira carreta Scania nova, em novembro de 1993, o casal passou cinco meses e 12 dias na estrada. Foi o tempo recorde de viagem, com diversos fretes pelo país, para garantir um “fôlego” e quitar a dívida de 54 salários mínimos por mês, para pagamento do consórcio do veículo, pneus e seguro.

“Por dia, conseguíamos faturar dois salários mínimos limpos. Trabalhei muito, mas nunca tomei um rebite na vida ou virei uma noite dirigindo”, orgulha-se o motorista. “Saímos dia 15 de novembro de 1993 e só voltamos depois da Páscoa do outro ano. No Natal, telefonamos para os irmãos avisando que não estaríamos aqui para passar o fim de ano”, lembra.

Foto: Arquivo pessoal / Lotario WesslingPrimeiro caminhão próprio adquirido por Wessling, em 1981– um Chevrolet 1963
Primeiro caminhão próprio adquirido por Wessling, em 1981– um Chevrolet 1963

Entre os fatos curiosos destacados pelos aventureiros, ao longo das décadas na estrada, está o dia em que socorreram um casal em lua de mel, que se envolveu em um acidente. “Foi próximo de Videira, em Santa Catarina, e o Corcel dos recém-casados capotou em um barranco. A noiva estava muito nervosa e preocupada com os presentes que estavam no carro”, conta Lotario.

Outra situação marcante foi em uma virada de ano, quando encontraram outro casal caminhoneiro de Venâncio Aires, na cidade mineira de Itaobim e comemoraram juntos a chegada do ano novo. “Fizemos lentilha e tomamos espumante morno, porque a nossa geladeira não estava funcionando”, relembra Luizita.

Contrastes culturais

Para Wessling e Luizita, mais do que o sustento da família, as viagens transportando cargas pelo país garantiram muito aprendizado. Essa “faculdade sem diploma”, como define o caminhoneiro, incluiu desde conhecer paisagens encantadoras, aprender sobre a geografia, estar em contato com diferentes culturas e saber improvisar e se adaptar a diferentes situações.

Passamos pela caatinga, pelo agrestre, pelo sertão. Passamos pelo lado turístico e não turístico do Brasil. Vimos muita miséria no Nordeste e problemas de distribuição de renda. Uma vez, vimos uma vaca comendo papelão, de tanta fome”, conta Lotario.

Em outras ocasiões, no Rio de Janeiro e no Ceará, o casal também foi surpreendido por pessoas com fome, que se aproximaram enquanto Luizita preparava refeições junto ao caminhão e com as quais dividiram os alimentos.

Uma situação inusitada também ocorreu em Pernambuco. Com a carreta estacionada no pátio de um posto de combustíveis, Luizita preparava milho verde e moranga para o almoço, quando um bode, atraído pelos alimentos, correu em direção a ela. “Ele veio me assaltar. Dei o resto da moranga, mas ele queria mais”, recorda, entre risos.

Foto: Arquivo pessoal / Lotario WesslingCasal registrou o transporte de cachos de palma com jegues, em Nazaré, na Bahia
Casal registrou o transporte de cachos de palma com jegues, em Nazaré, na Bahia, em 1998

Pelo Brasil

Apenas quatro estados entre as 27 unidades federativas do Brasil ainda não foram visitados pelo casal: Acre, Roraima, Rondônia e Amazonas. Para eles, é difícil definir um único local mais bonito no país, mas eles citam o estado de Espírito Santo, Natal, no Rio Grande do Norte; cidades da Bahia e Fortaleza, no Ceará, como lugares com paisagens inesquecíveis.

Trajetória

– Lotario Wessling começou a trabalhar como motorista de ônibus, em 1976, aos 19 anos, quando surgiu uma vaga na empresa Auto Viação Venâncio Aires, onde atuava como cobrador. Foi nessa época que recebeu o apelido de Pardal, como é conhecido até hoje.

– No fim de 1977, passou a atuar como motorista de caminhão no antigo supermercado Marquetto. Inicialmente, com entregas de produtos a casas comerciais do interior e cidades próximas. Mais tarde, passou a ir a Porto Alegre e, para cobrir férias de motoristas que buscavam açúcar em São Paulo, fez sua primeira viagem para fora do estado no fim de 1979. “Aí fiquei contaminado com isso de viajar pra longe. Me empolguei muito e não parei mais.”

– O primeiro caminhão próprio foi comprado em 1981, para transporte de combustíveis. Ao longo das últimas quatro décadas, trocou quatro vezes de veículo e transportou produtos variados, grãos e, principalmente, óleo vegetal – de soja, canola, milho e girassol.

– Leitor assíduo de jornais, Lotario frequentemente escreve artigos que envia para publicação na Folha do Mate. “Gosto muito de escrever. É uma forma de se expressar.”