Foto: Alvaro Pegoraro / Folha do MateCom a filha Valentina no colo, Mari lamenta a divulgação das imagens sem seu conhecimento e comentários gerados a partir da divulgação de informações equivocadas
Com a filha Valentina no colo, Mari lamenta a divulgação das imagens sem seu conhecimento e comentários gerados a partir da divulgação de informações equivocadas

Quando Marinês Pinto, 44 anos, chegou em casa, no início da noite de 9 de outubro, depois de ter passado o dia com a filha em observação, no Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), tomou um susto. Um vídeo gravado e publicado sem seu conhecimento, nas redes sociais, mostrava ela e a pequena Valentina Specht, 8 meses, chorando, na recepção do pronto atendimento, em postagens criticando a instituição hospitalar.

“Comecei a ver o vídeo e me apavorei. Nada disso teria acontecido se a pessoa que gravou tivesse me perguntado o que estava acontecendo”, desabafa. Nas imagens, Valentina chorava muito e a mãe circulava com ela pela recepção. O que, aparentemente, mostrava um descaso no atendimento, na verdade, era uma informação distorcida que, rapidamente se espalhou pelas mídias sociais.

Depois de ter caído da cama e batido a cabeça, enquanto a mãe trocava a irmã gêmea, Emanuelly, por volta das 8h, Valentina foi levada às pressas pela mãe e por uma vizinha, para o pronto atendimento do HSSM. Segundo Mari, o atendimento inicial ocorreu assim que chegaram ao hospital. “A enfermeira tirou os sinais vitais da Valentina e logo me tranquilizou”, explica.

Enquanto aguardava para ser chamada pelo médico e levar a pequena para um raio-X, a mãe deveria evitar que a menina dormisse ou se alimentasse – orientação comum em casos de queda. “Eu mesma preferi ficar com ela na recepção, e ela chorava muito porque estava com sono e com fome. A última mamada tinha sido às 4h”, justifica. Os cerca de 15 minutos em que permaneceu com a filha na recepção do plantão foram suficientes para que se desencadeasse um episódio de desinformação e de incitação ao ódio, na internet.

“Quando vi, já eram quase 400 compartilhamentos no Facebook e muitos comentários xingando as enfermeiras, que, muito pelo contrário, tinham nos atendido superbem, e até mesmo pessoas me atacando e me chamando de ‘tonga’, ‘sangue de barata’ e ‘mãe desnaturada’. Fiquei muito chateada com o que aconteceu”, relata Mari, que, em um comentário, inclusive, foi acusada de ter “jogado a criança” no chão.

Tanto ela e a filha Valentina quanto o hospital e seus profissionais foram vítimas de um fenômeno cada vez mais frequente na internet: o compartilhamento de notícias e informações falsas ou distorcidas. A partir da publicação do vídeo, feito por outro paciente que aguardava no pronto-atendimento, muitas pessoas replicaram as imagens, desencadeando diversos comentários ofensivos.

Ofensas

Palavras como “galinhas, porcos, cadelas e chiqueiro” foram usadas por internautas para se referir a funcionários e ao hospital. Além disso, ameaças como “se fosse comigo o desfecho seria trágico” e “eu matava a soco” foram registradas nas redes sociais, na semana passada.

“Trabalho há 15 anos no hospital e, nesse tempo, nunca fomos tão agredidos quanto nessa situação. Uma mentira tomou uma dimensão muito grande e abalou muito toda a equipe”, lamenta a gerente assistencial do HSSM, Susan Artus Dettenborn. “Entendemos que há reclamações e falhas, que há situações em que o atendimento realmente demora, mas nada justifica as agressões morais direcionadas aos profissionais.”

“Muitos acreditam que a internet é uma terra sem lei, mas não é”

Foto: Alvaro Pegoraro / Folha do MateRita:
Rita: “Curtir algo sem ler é como assinar um contrato sem ler”

A advogada Rita Carolina Machado Ellert, da área de Direito Empresarial e de Relações de Consumo, afirma que a publicação e o compartilhamento de informações falsas podem acarretar problemas jurídicos para o internauta. “Temos, sim, liberdade de expressão, mas o limite dela é quando se perde o respeito, incita-se o ódio ou ofende-se uma pessoa, configurando um crime de injúria, difamação ou calúnia. Quem faz isso pode ter complicações na esfera criminal e também na cível, que é ter que pagar indenização por dano moral”, comenta.

Para Rita, é fundamental esclarecer que cada indivíduo é a mesma pessoa das redes sociais e publicações podem ser consideradas provas em processos judiciais. “Muita gente acredita que a internet é uma terra sem lei e tem a ideia de que é uma vida paralela, mas não é. Cada pessoa pode ser responsabilizada pelo que posta, compartilha e até mesmo curte. Uma curtida é como se fosse uma assinatura de um contrato, é um aval sobre o que outra pessoa escreveu. Curtir algo sem ler é como assinar um contrato sem ler”, compara.

A internet cria um escudo e as pessoas se empoderam para falar o que querem, mas esquecem que a liberdade de expressão vai até onde se respeita o outro, sem ofendê-lo”RITA CAROLINA MACHADO ELLERT, advogada

A advogada observa ainda que, apesar da ilusão de que é possível se esconder atrás dos perfis das redes sociais e que pode-se apagar as postagens, sempre ficam rastros. “As informações se perpetuam muito rápido e, mesmo que se apague, são feitos prints. Sempre há uma prova. Além disso, mesmo com perfis ‘fake’, é possível rastrear e chegar ao nome da pessoa. Não tem como se esconder”, enfatiza.

Rita alerta também que, no WhatsApp, administradores de grupos podem ser responsabilizados por calúnias, injúrias ou difamações compartilhadas entre os usuários. “Em uma situação assim, o dever do administrador é apagar a postagem e remover a pessoa do grupo. Se não, ele pode ser considerado omisso e também responderá por isso.”

Como proceder

– Casos em que alguém seja vítima de uma postagem ofensiva ou mesmo de informação distorcida ou notícia falsa, a primeira orientação é para que faça um ‘print’, para que tenha provas, caso a pessoa apague a publicação.

– A advogada Rita Ellert orienta que, independentemente da situação, evite-se “bater boca” nas redes sociais, utilizar palavras de baixo calão e alimentar discussões. “O principal é ter empatia e pensar antes de escrever.”

– Se uma postagem for ofensiva no Facebook, é possível denunciá-la, para que seja removida da plataforma. Pessoas que se sentirem lesadas com publicações na internet podem fazer um Boletim de Ocorrência (BO) ou procurar orientação de um advogado. 

– A SaferNet Brasil oferece um serviço de recebimento de denúncias anônimas de crimes e violações contra os direitos humanos na internet. Também é possível informar a ocorrência no site da Polícia Civil do RS.

>> Agências de checagens de notícias como Lupa, Aos Fatos  e Boatos.org são opções confiáveis para esclarecer dúvidas sobre fake news, especialmente, relacionadas à campanha eleitoral. Além disso, o próprio site do TSE esclarece alguns boatos e grandes veículos de comunicação do país têm adotado a prática.

De desinformação à vontade de tornar realidade uma crença pessoal

Foto: Alvaro Pegoraro / Folha do MateBehs: “O consumidor também produz conteúdo. Isso gera um certo curto circuito na própria produção midiática
Behs: “O consumidor também produz conteúdo. Isso gera um certo curto circuito na própria produção midiática”

O vídeo sobre o atendimento da menina Valentina no Hospital São Sebastião Mártir, de Venâncio Aires, é apenas um em meio a uma imensidão de informações, imagens e notícias falsas – as chamadas fake news – que circulam, especialmente, em grupos de WhatsApp, no Facebook, Twitter e Youtube, e se multiplicaram, com ainda mais intensidade, durante a campanha eleitoral.

Nesta semana, o número de processos relacionados exclusivamente a fake news que tramitaram ou ainda tramitam no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a 33. Ao longo dos últimos dias, a Justiça já determinou a retirada de diversas postagens consideradas inverídicas – a maioria delas contra o candidato a presidência Fernando Haddad (PT), incluindo o boato sobre o polêmico ‘kit gay’, divulgado pelo candidato Jair Bolsonaro (PSL), de que o livro ‘Aparelho sexual e cia’ teria sido distribuído em escolas, durante a gestão de Haddad no Ministério da Educação (MEC).

Boatos como o vídeo no qual a urna eletrônica automaticamente completava o voto para determinado candidato, no primeiro turno do pleito, e a notícia falsa de que “se verificadas fraudes nas eleições, o Exército convocará novas eleições em cédulas de papel” são esclarecidas, inclusive, no próprio site do TST.

Para o doutor em Ciências da Comunicação Micael Vier Behs, professor da Universidade do Vale do Taquari (Univates), a força de viralização dos boatos na internet ocorre porque o ambiente virtual é um veículo de mão dupla: ao mesmo tempo em que empresas jornalísticas e grupos midiáticos consolidados divulgam conteúdos, o usuário da rede também é um produtor de informação. “O consumidor também produz conteúdo. Isso gera um certo curto circuito na própria produção midiática, na qual o trabalho do jornalista é muito mais um trabalho de curadoria, de balizamento, de legitimação do que está posto em rede.”

Muitas vezes, as pessoas compartilham uma informação sabendo que é falsa, porque querem propagar aquela ideia, querem que aquela crença que está cristalizada na notícia vire realidade.”MICAEL VIER BEHS, doutor em Ciências da Comunicação

 

Behs cita uma pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP), a qual apontou os grupos de família no WhatsApp como principais vetores de divulgação de notícias falsas. “As pessoas tendem a creditar maior veracidade à informação quando conhecem a fonte dessa notícia, e se essa fonte for alguém próximo, a chance de isso ser considerado verdade é muito maior. Um grupo de família no WhatsApp está cheio de pessoas nas quais se acredita”, analisa o doutor em Ciências da Comunicação.

De acordo com ele, estudos também já apontam que o compartilhamento de uma notícia falsa vai muito além da desinformação. “Muitos pesquisadores indicam que as pessoas não querem saber se a notícia é verdadeira ou falsa, querem que a informação seja condizente a um princípio, uma crença sua”, salienta.

Combate a fake news – faça sua parte

1 Antes de mais nada, tenha bom senso. Desconfie de títulos ou informações sensacionalistas ou bombásticas. 

2 Pesquise a fonte da informação, se o veículo que está divulgando é uma empresa de comunicação ou um blogueiro sério e de credibilidade. 

3 Antes de compartilhar a informação, pesquise em outro site e confronte as versões. Se for real, a notícia será divulgada por outros meios de comunicação de credibilidade. 

4 Confira a data da notícia, antes de compartilhar. Muitas vezes, são notícias “requentadas”, sobre fatos que aconteceram anteriormente e estão descontextualizadas. 

5 Confira o URL (endereço) do site. Muitos sites de divulgação de fake news usam nomes parecidos com títulos de jornais conhecidos para confundir leitor. Desconfie de matérias com erros ortográficos, sites muito ‘poluídos’ ou montagens de fotos com informações. 

6 Lembre que cada um tem responsabilidade sobre o que divulga e pode contribuir positiva ou negativamente para o uso das redes sociais. Na dúvida, não compartilhe.

*Dicas do professor e doutor em Ciências da Comunicação Micael Vier Behs.

>> Apenas 8% das imagens mais compartilhadas pelo WhatsApp são verdadeiras, conforme estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a agência Lupa, divulgado nesta semana.