
Venâncio Aires - Às vésperas da 11ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (COP 11) e da 4ª Reunião das Partes do Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco (MOP 4), que ocorrerão em novembro, em Genebra, na Suíça, a secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro (Conicq), Dra. Vera Luiza da Costa e Silva, fala sobre os avanços na área da saúde do Brasil desde a ratificação do tratado internacional que completa 20 anos nesta segunda-feira, 3 de novembro.
Em entrevista à Folha do Mate, a médica e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) destaca que o país é reconhecido globalmente pelas políticas de controle do tabagismo. Ela também aborda os desafios da diversificação econômica nas regiões produtoras de tabaco, a exemplo de Venâncio Aires, e o papel dos municípios nesse processo, além de detalhar as expectativas da delegação brasileira para a COP 11, edição da conferência que marcará as duas décadas do tratado chancelado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A COP 11 e a MOP 4 serão realizadas de 17 a 22 e de 24 a 27 de novembro, em Genebra, na Suíça, reunindo representantes de mais de 180 países para discutir o futuro das políticas globais de controle do tabaco e o combate ao comércio ilícito de produtos de fumar. A cada edição, os eventos internacionais mobilizam, além das delegações oficiais, lideranças políticas e representantes da cadeia produtiva do tabaco que buscam participar das discussões e decisões que podem impactar diretamente a base econômica dos municípios do Vale do Rio Pardo. Em Venâncio Aires, por exemplo, o tabaco representa 50% da atividade econômica.
“É fundamental esclarecer que a Conicq nunca pretendeu penalizar o plantador de tabaco. Pelo contrário, um dos compromissos centrais da Convenção-Quadro é justamente prover alternativas para salvaguardar o sustento desses agricultores.”
Dra.VERA LUIZA DA COSTA E SILVA
Secretária-executiva da Conicq
Trajetória
Dra. Vera Luiza da Costa e Silva é médica, com doutorado e MBA na área da saúde. Atua como secretária-executiva da Conicq desde 2023 e como pesquisadora sênior na Fiocruz desde 2020. Foi chefe do Secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS) (2014–2020), diretora da Unidade Sem Tabaco ( TFI, sigla em inglês), da OMS (2001–2005) e coordenadora de Prevenção e Vigilância no INCA/MS (1985-2000).
Entrevista
Folha do Mate – Nesta segunda-feira, 3 de novembro, completam-se os 20 anos que o Brasil ratificou a participação na Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, sendo um dos primeiros países a aderir ao primeiro tratado global de saúde pública. O que a Conicq elenca como principal avanço no controle ao tabagismo no Brasil neste período?
Dra. Vera Luiza da Costa e Silva – O principal avanço foi a redução significativa da prevalência de fumantes no país. Segundo dados do IBGE, a proporção de fumantes caiu de cerca de 35% nos anos 1980 para aproximadamente 12% atualmente. Isso representa milhões de brasileiros que deixaram de fumar, com impacto positivo para a saúde pública e para toda a sociedade.
O uso do tabaco e a exposição à sua fumaça estão ligados ao desenvolvimento de cerca de 50 doenças, incluindo vários tipos de câncer, além de enfermidades respiratórias e cardiovasculares. A redução do número de fumantes no país representa um grande avanço, pois ajuda a evitar mortes e casos de adoecimento, diminui os gastos dos cofres públicos com o tratamento das doenças tabaco-relacionadas, assim como reduz também os custos indiretos, como a perda de produtividade e o impacto sobre as famílias que precisam cuidar de pessoas doentes.
A redução da prevalência é fruto de avanços importantes na implementação de políticas de controle do tabaco. O Brasil adotou medidas abrangentes como a criação de ambientes 100% livres de fumo em locais fechados de uso coletivo, advertências sanitárias com imagens nas embalagens de cigarros, proibição total de publicidade, patrocínio e promoção de produtos de tabaco, aumento de impostos sobre cigarros e oferta gratuita de tratamento para cessação do tabagismo pelo SUS.
“A Conicq entende que fortalecer esses municípios e regiões, valorizando o trabalho dos agricultores familiares, é parte fundamental do compromisso assumido pelo Brasil na Convenção-Quadro, e é uma questão de justiça social e saúde pública.”
Dra.VERA LUIZA DA COSTA E SILVA
Secretária-executiva da Conicq
Duas décadas depois, como o país é visto pelo resto do mundo no que se refere ao combate ao tabagismo? É um protagonista do tratado?
O Brasil é reconhecido internacionalmente como referência no controle do tabagismo. Essas políticas implementadas são frequentemente citadas como exemplo por organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde. O Brasil tem papel ativo nas discussões da Conferência das Partes da CQCT e contribui com experiências de políticas públicas que podem ser adaptadas por outros países, sendo considerado protagonista na implementação do tratado.
Estima-se que há quantos fumantes hoje no país? Quantos eram há duas décadas?
Atualmente, estima-se que haja cerca de 22 a 24 milhões de fumantes adultos no Brasil, o que representa aproximadamente 12% da população adulta. Há duas décadas, em 2005, essa proporção era de cerca de 18% a 20% da população adulta, o que representava em torno de 25 a 28 milhões de fumantes. Apesar da redução percentual significativa, o número absoluto se mantém alto devido ao crescimento populacional.
Quais as expectativas da Conicq para a COP do Tabaco? Como é formada a delegação oficial do país na conferência?
As expectativas incluem o fortalecimento das políticas de controle do tabaco em âmbito global, com foco na troca de experiências entre os países-parte. Também esperamos avanços no combate ao comércio ilícito de produtos de tabaco e na implementação efetiva dos artigos da Convenção-Quadro que ainda apresentam desafios em diversos países.
A delegação brasileira é coordenada pelo Ministério das Relações Exteriores e inclui representantes de diversos ministérios membros da Conicq, como Saúde, Agricultura, Desenvolvimento Agrário, Casa Civil, Indústria e Comércio e Trabalho e Emprego. Também participam órgãos muito relevantes na implementação do tratado como Advocacia Geral da União (AGU), Instituto Nacional de Câncer (Inca), Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A composição multissetorial busca representar diferentes perspectivas das políticas públicas relacionadas ao tema e posicionar o Brasil de maneira a considerar suas especificidades, como o fato de ser um país em desenvolvimento que produz fumo.
Em evento que marcou os 20 anos do tratado internacional, em fevereiro deste ano, a senhora disse que “Conicq é um órgão extremamente poderoso, forte. A gente está trabalhando para dar respostas aos nossos plantadores de tabaco e dar a eles outras alternativas.” Como garantir essas respostas aos agricultores? O que falta para o Brasil avançar nesta pauta e o que, no entendimento da Conicq, trava um programa de diversificação eficaz?
A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco é o primeiro tratado global de saúde pública cujo objetivo é proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras consequências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição do tabaco.
Dessa forma, a Conicq tem a nobre missão de promover diversas ações para o cumprimento das medidas previstas na Convenção-Quadro, que, por meio do Decreto no. 5.658/2006, tornou-se uma obrigação legal do governo brasileiro.
É fundamental esclarecer que a Comissão nunca pretendeu, ou pretende, penalizar o plantador de tabaco. Pelo contrário, quando o Brasil ratificou a Convenção-Quadro, em 2005, um dos compromissos centrais foi justamente prover alternativas para salvaguardar o sustento desses agricultores.
A maior parte do fumo produzido no Brasil é exportado, e o mercado desse produto depende do mercado internacional muito mais do que do mercado nacional. Por isso, esses agricultores e suas famílias são especialmente vulneráveis à redução da demanda internacional por esse produto, face à redução global de consumo de tabaco e à oferta de novos produtos, como os dispositivos eletrônicos para fumar, que se utilizam de nicotina sintética. Assim como ficam vulneráveis aos agravos à saúde relacionados ao contato físico com as folhas de fumo e ao uso intensivo de agrotóxicos.
Oferecer alternativas aos agricultores familiares que cultivam tabaco é um compromisso previsto no Artigo 17 da Convenção-Quadro e constitui uma das prioridades da Conicq. Para avançar nessa pauta, é essencial garantir a integração entre diferentes políticas e programas voltados à agricultura familiar, que incluem assistência técnica especializada, acesso a crédito rural adequado para os agricultores que optarem por alternativas, garantia de mercados para produtos alternativos, além de um apoio contínuo e consistente ao processo de transição produtiva.
A relevância e a preocupação com a integridade física e psíquica dessa cadeia produtiva, bem como com a promoção de alternativas viáveis ao cultivo de tabaco é reconhecida pelo Governo Federal e tem sido considerada de maneira constante nos fóruns de diálogo e na formulação de políticas públicas, não só em nível nacional quanto também internacional.
A Conicq defende uma abordagem equilibrada e sensível às particularidades socioeconômicas dos agricultores, buscando promover a saúde pública, bem como o desenvolvimento rural sustentável das áreas produtoras.
Por isso, a Conicq tem um Grupo de Trabalho que cuida especificamente do artigo 17 do tratado. MAPA, MDA, Conab, MTE, Fiocruz, MDIC, MS e Casa Civil têm discutido regularmente o tema e formulado uma Política Nacional de Alternativas para o Cultivo do Tabaco integrada às Políticas Agrícolas e do Agricultor Familiar existentes no país, para poder apoiar o plantador de fumo que opte por essa transição.

A COP do Clima estará acontecendo quase que ao mesmo tempo que a COP do Tabaco, período em que o mundo estará atento às discussões relacionadas ao meio ambiente. O Brasil buscará avançar na pauta ambiental na COP 11, a exemplo da discussão em torno dos filtros de cigarros?
A pauta ambiental é uma dimensão relevante no controle do tabaco e o Brasil deve continuar contribuindo com essa discussão na COP 11. Vários tipos de resíduos são formados após o consumo de cigarros e de dispositivos eletrônicos para fumar, cuja comercialização é proibida, mas não seu consumo. Filtros de cigarro compostos por acetato de celulose (um tipo de microplástico) representam um dos resíduos mais abundantes encontrados em praias e áreas urbanas, e o seu descarte precisa seguir protocolos não só para o lixo plástico, como também para a liberação, no meio ambiente, de substâncias cancerígenas contidas no resto de tabaco que é descartado junto com o filtro através das guimbas consumidas. O plástico, as baterias e os cartuchos de dispositivos eletrônicos para fumar representam um outro problema que merece atenção dos ambientalistas.
Qual a posição que a Conicq levará à COP em relação aos novos produtos para fumar? Esta posição segue o entendimento da Anvisa?
Em relação aos novos produtos para fumar, é de conhecimento público que o país, em consonância com a Resolução da Diretoria Colegiada nº 855, de 23 de abril de 2024, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), proíbe a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar. Tal posição encontra-se fundamentada em evidências científicas robustas, que comprovam tanto a presença de substâncias tóxicas e cancerígenas nesses produtos, quanto a ineficácia comprovada na redução de danos e na cessação do tabagismo. A posição da Conicq está plenamente alinhada com esse entendimento, e o Brasil continua sendo referência internacional nessa abordagem regulatória baseada em evidências científicas e na proteção da saúde pública.
Qual é, na visão da Conicq, o papel dos municípios que têm suas economias diretamente ligadas à cultura do tabaco há décadas, a exemplo de Venâncio Aires, um dos maiores produtores de tabaco do Rio Grande do Sul?
Os municípios que têm suas economias historicamente ligadas à cultura do tabaco, como Venâncio Aires, desempenham um papel fundamental nesse processo de transição. Como já mencionado, a Conicq tem grande preocupação em apoiar os agricultores, em especial, considerando-se o cenário de diminuição da demanda mundial resultante da queda do consumo e do aumento de dispositivos eletrônicos para fumar com uso reduzido da folha do tabaco e com o crescimento do uso da nicotina sintética. Além de não podermos ignorar que o tabaco é a matéria-prima de um produto comprovadamente nocivo à saúde, esse cenário de redução da demanda por folha merece ser considerado pelos gestores municipais.
Esses municípios possuem conhecimento aprofundado sobre a realidade local e precisam ser protagonistas na construção de alternativas viáveis, que priorizem os agricultores. Consideramos que o diálogo da Conicq com gestores municipais, lideranças locais e organizações de agricultores, além de estudos realizados por órgãos de pesquisa como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é indispensável para identificar culturas alternativas adequadas, estruturar cadeias produtivas sustentáveis e garantir novos mercados.
A Conicq entende que fortalecer esses municípios e regiões, valorizando o trabalho dos agricultores familiares, é parte fundamental do compromisso assumido pelo Brasil na Convenção-Quadro, e é uma questão de justiça social e saúde pública.
A cada edição da COP, representantes da cadeia produtiva do tabaco buscam diálogo antes e durante a COP, no intuito de garantir a voz do setor nas discussões e decisões que a delegação brasileira levará à COP. Qual a posição que a Conicq adotará no evento e como deve ocorrer esse diálogo durante a conferência?
A posição da Conicq e da delegação brasileira na COP 11 segue rigorosamente o disposto no Artigo 5.3 da Convenção-Quadro, que estabelece que as políticas de saúde pública para controle do tabaco devem ser protegidas dos interesses comerciais da indústria do tabaco. Por essa razão, as discussões e decisões da delegação brasileira não incluem a participação de representantes da cadeia produtiva ligada à indústria fumageira. A Convenção-Quadro determina que os países-parte devem proteger suas políticas de controle do tabaco de possíveis interferências.
No entanto, a Conicq realiza antes de cada COP uma reunião aberta, depois da publicação oficial da sua agenda, que recebe intervenções de entidades da sociedade como um todo, incluindo as representações da indústria do tabaco. Neste ano essa reunião ocorreu em setembro, quando os membros da Conicq receberam também os comentários da sociedade civil organizada.
É importante esclarecer que essa posição não se dirige aos agricultores familiares, cujos interesses legítimos são considerados nas discussões sobre alternativas econômicas, conforme o Artigo 17 da Convenção. O que se busca é manter a integridade das políticas de saúde pública, em consonância com as diretrizes do tratado e com o compromisso do Brasil com a proteção da saúde da população.