Para a agricultora Carmem Schuch Posselt, 57 anos, cultivar relações com o passado mantém vivas inúmeras lembranças, recordações e receitas das gerações passadas. Uma delas é o momento em que ela se conecta com os ensinamentos da mãe, Helga Schuch, quando inicia o preparo de bolos, cucas e pães feitos no forno de lenha (Backofen).
A tradição de preparar iguarias no Backofen ainda é cultivada por algumas famílias do interior de Venâncio Aires, mas é raro. No entanto, na casa da dona Carmem, em Linha Maria Madalena, é algo comum e tradicional. “Antigamente não existia forno elétrico e nem fogão a gás, era apenas o Backofen. Anos atrás todo mundo tinha um, hoje é raro, como pode?”, indaga.
Os segredos de temperatura e preparo ela aprendeu com a mãe, avó e sogra. “Eu lembro que quando era pequena, sábados de tarde era dia em que eu e meus irmãos tínhamos que ajudar a mãe a fazer pão e cuca enrolada no Backofen. Cada um tinha sua tarefa. Um fazia os gravetos, outro o fogo, lembro que eu colocava o recheio. Adorava quando era o de framboesa”, relembra.

Há 26 anos, Carmem voltou a morar na casa que era dos pais. “A gente tinha o forno antigo, de barro, mas não deu mais para recuperar. Daí construímos um novo, mas é igual ao antigo, por dentro ele ainda é idêntico”, salienta.
WICKELKUCHEN
Na terça-feira, 27, Carmem recebeu a reportagem da Folha do Mate para mostrar na prática como funciona o processo do Backofen e como ela prepara as cucas enroladas (Wickelkuchen). O forno, apesar de ser reformado, está no mesmo lugar que o pai construiu, na frente de casa. “Aqui, como a turma é grande, a receita também é”, brinca.

Para fazer seis bandejas de Wickelkuchen com três sabores em cada, Carmem utilizou cinco quilos de farinha, um quilo de açúcar, meio litro de leite morno, meio litro de água morna, cinco colheres de fermento biológico seco, uma colher grande de banha morna, 10 ovos e uma colher de sal. “Se quiser fazer uma quantidade menor é só adaptar os ingredientes, usar metade. Aqui, geralmente faço mais para aproveitar o calor do Backofen e o tempo, pois demora até crescer”, conta.
Após misturar todos os ingredientes, a massa vai para uma bacia e descansa por cerca de três horas, até dobrar de tamanho. Depois, é hora de abrir a massa com o rolo, rechear e pincelar um ovo com farofa. Carmem passa banha na forma de alumínio e deixa as cucas descansarem por mais uma hora e meia. Enquanto isso, o fogo aceso no forno de tijolos precisa ser reduzido à brasa. Depois, é hora de colocar a cuca enrolada no Backofen. “Se está frio, faço fogo no fogão a lenha para a cuca ir crescendo do lado, o calor ajuda”, diz.

Os sabores escolhidos foram framboesa, canela e açúcar, chocolate, kässchmier (queijo ‘azedo’). A receita não está anotada em caderno, muito menos em algum papel. “Eu faço a medida a olho, vou experimentando e logo sei quando falta algo. Não tem mistério”, garante. Mas alguns segredos também foram compartilhados. Segundo Carmem, a cuca precisa de água: “Se colocar somente o leite, vai ficar um pão pesado. A água dá maciez”, explica.
A cuca fica cerca de uma hora no forno até estar pronta. Depois, é só saboreá-la com um delicioso chá ou café. “O segredo é não poupar no fermento e fazer devagar. A temperatura do forno é o grande mistério, mas que pra mim é fácil”, conclui Carmen.
“No forninho eu não me acerto com a temperatura. O Backofen é meu chão. Adoro fazer o pão, a cuca e bolachas no forno. Mas para fazer bolacha a gente precisa de uma turma, pois um controla o fogo e outro faz os recortes das bolachas.”
CARMEM SCHUCH
Agricultora
Segredo
• Para não queimar, quando o fogo do Backofen está muito alto, o segredo de Carmen é colocar folhas verdes de bananeiras por cima da cuca quando ela está pronta. “Dessa forma não queima”, reforça Carmen.

Segundo pesquisadora, região ainda preserva o uso do Backofen
Nas regiões de colonização alemã, o Backofen veio com os imigrantes. Segundo a doutora em Ciências Sociais, Lissi Bender, fica difícil imaginar como foram os primeiros tempos dos alemães no Brasil sem uma boa casa, sem escola, sem igreja, sem hospital, um início em meio a um mundo totalmente natural. “Certa vez, em um de nossos encontros culturais que chamávamos de Stammtisch Deutsch, tratávamos da cultura do pão na tradição germânica. Ficamos a imaginar a alegria que deve ter sido para uma família de imigrantes, quando finalmente a casa estava erguida, o forno de barro construído, quando pais e filhos puderam se reunir em torno de uma mesa, orar e partilhar o pão”, comenta a pesquisadora e escritora.
Conforme a professora aposentada do ensino superior, o Backofen continua presente em Venâncio Aires, em Santa Cruz do Sul e também na Alemanha. “Percebo que mais e mais pessoas redescobrem o valor da herança cultural dos antepassados. Percebo o despertar para a importância desse legado. E isto permite sua permanência e, consequentemente, enriquece”, afirma.
Backofen
Uma das primeiras grandes conquistas dos alemães, de acordo com a professora, depois de assentados em seus lotes, foi a construção de um forno, para poderem retomar uma antiga tradição germânica, assar pães, biscoitos e cucas. “Com o advento do forno elétrico e a gás, o Backofen, construído fora de casa, foi perdendo espaço. No entanto, há diversas famílias que continuam mantendo a tradição de fazer suas delicias no tradicional Backofen”, comenta.
A escritora ressalta que, além do baú com roupas e utensílios, os alemães trouxeram um mundo cultural, saberes, valores e conhecimentos. “Entre os hábitos alimentares que foram integrados à região, está a cuca e o pão, o biscoito natalino e os amanteigados”, salienta.
“Cultivar as relações com o passado, os elementos do patrimônio cultural de origem germânica e mantê-los vivos em meio à comunidade de descendentes é fundamental. Se não cultivarmos o nosso lugar de viver e, nele, não honrarmos nosso passado, não somos merecedores de nosso berço e corremos o risco de ficarmos sem raízes.”
LISSI BENDER
Pesquisadora e escritora
Impressões da repórter
• A receptividade da dona Carmem com a reportagem foi espetacular. Ela preparou seis bandejas de cuca enrolada e explicou o passo a passo. Um grande detalhe da entrevista é que ela ocorreu toda em alemão. Quando comecei a ‘falar a língua’ da dona Carmem, o papo rolou solto, sem contar que me senti em casa. A entrevista foi uma indicação da professora aposentada e assinante Hilária Dattein, que também é amiga e vizinha da Carmem. Aproveito para agradecer pela acolhida e ideia de reportagem. Quando embarcamos – eu e o colega Roni Müller, que fez as fotos – no carro e fomos embora, além de sermos presenteados com uma cuca enrolada, o maior presente foi o carinho e o sorriso no rosto da dona Carmem, que ficou encantada com a visita da Folha do Mate.