Maio termina oficialmente amanhã, dia 31. Mas, para os gaúchos, diante do cenário catastrófico das últimas semanas, a impressão é de que se trata de um mês interminável. Isso porque, embora a folha do calendário vire, os desafios continuarão por junho, julho e sabe-se lá por quanto tempo. Tempo esse que ganhou proporções ainda mais relativas. Enquanto atingidos pela enchente do rio Taquari vivem longos dias em abrigos porque perderam as casas, na outra ponta do mapa, na região serrana, há quem viveu dias de isolamento devido a pontes destruídas ou acessos obstruídos por desmoronamentos. E há quem passou 28 noites no escuro – quase um mês sem energia elétrica.
Essa foi a realidade de nove famílias moradoras de Linha América, localidade cujo acesso é por Linha Marmeleiro, saindo da ERS-422 e entrando numa estrada vicinal de cerca de 4 quilômetros morro abaixo, em direção ao arroio Castelhano. É no fim desta estrada, numa área particular e que tem preservação ambiental, e onde está uma cascatinha chamada Poço Preto, que a força de natureza destruiu uma propriedade e tratou de ‘enfeiar’ um dos pontos mais bonitos do Castelhano. Um grande deslizamento, que começou num morro de 300 metros de altura, levou terra e árvores abaixo, soterrando parcialmente uma estrebaria, um galinheiro, um chiqueiro e a residência dos Schlosser, o casal de idosos que morava lá. “Se não fosse o genro, a gente não tava vivo”, resume Erno, 76 anos, casado com Marcina, 72 anos.
O genro é Juliano Melo, 42 anos, que resgatou os sogros puxando por corda, quando a água de uma sanga, a cheia do Castelhano e a terra já tinham tomado conta de tudo. Além dos idosos, Juliano puxou, no braço, e seguro por cordas, duas vacas, uma égua, uma novilha, o fogão a lenha, uma mesa, quatro cadeiras, a caixa de lenha e até uma geladeira. Isso tudo aconteceu na tarde do dia 30 de abril, terça-feira, quando no Centro de Venâncio já haviam barcos subindo um trecho da rua Osvaldo Aranha que estava debaixo d’água. Na manhã seguinte, Juliano foi novamente no local e conseguiu resgatar seis porcos. Outros 10 foram levados pela água, assim como um roupeiro e a máquina de lavar.
28 dias sem luz
Juliano mora com a esposa Silvane, 44 anos, e a filha Dienifer, 18, numa casa que fica a cerca de 400 metros de Erno e Marcina. Ele acolheram os idosos desde então. “São dois quartos muito pequenos, então o jeito foi colocar colchão na sala. Mas o pior foi não ter luz”, destaca Silvane. A energia elétrica acabou dia 29 de abril e voltou dia 26 de maio. A RGE conseguiu acessar o local apenas no dia 25 e, como o transformador está do lado de Santa Cruz do Sul, a rede e os acessos eram por lá. “Ficamos com vela e tomando banho de bacia”, relatou Silvane, enquanto mostrava o freezer. Dentro dele, deveriam estar 80 quilos de carne. Como a comida estragou, o freezer virou depósito de garrafinhas vazias. Essas garrafas de água mineral, assim como alimentos, foram levados pela Prefeitura, quando as máquinas ainda não tinham conseguido desobstruir pontos da estrada bloqueados após deslizamentos. “A gente levava e ainda leva comida a pé, atravessando roça e arroio”, descreve Rodrigo Garin, coordenador da Patrulha Agrícola. Na tarde da terça, 28, foi ele quem guiou a reportagem por vários pontos do município, dia que levou cestas básicas para famílias atingidas, percorrendo quase 150 quilômetros entre o Alto Sampaio e a região serrana.
Casa nova
Na terça, quando a Folha conversou com os Schlosser, a família seguia na construção e organização de uma casa nova para Erno e Marcina, na propriedade da filha e do genro. Para erguê-la, foi necessária madeira nova, mas também conseguiram usar tábuas recuperadas da casa parcialmente soterrada, além de janelas.
Na cozinha, o cantinho do fogão a lenha estava quase pronto, faltando um item ‘caro’ para Erno: a caixa de lenha, ainda muito suja de barro, mas ‘salva’. “Aos poucos, vamos nos ajeitando”, comentou o idoso, destacando, várias vezes, nunca ter viso algo do tipo. “Meu pai falava que em 1941 tinha sido feio e que um deslizamento levou o galpão na minha bisavó, em Linha Julieta. Mas eu achei que nunca ia viver isso também. E ainda pior.”
O medo causado pelo arroio Sampaio
No trecho noroeste do território venâncio-airense, na região alta do Vale do Sampaio, o cenário ainda deixa claro que há muito trabalho pela frente, especialmente para reconstruir pontes e cabeceiras destruídas pelo arroio. São oito travessias e a maioria delas ainda precisa ser refeita.
Em determinado trecho de Linha Andréas, segundo a Prefeitura, há três famílias ainda ilhadas e para as quais a ajuda humanitária (comida e água) é levada por corda para atravessar o leito do arroio. O número de isolados diminui consideravelmente na última semana, com a desobstrução de acessos, mas muitas famílias seguem apreensivas, preocupadas com possíveis desmoronamentos e bloqueios de estradas (devido ao solo encharcado e instável), e medo do Sampaio encher novamente com a chuva e avançar sobre lavouras e ameaçar casas.
“Eu moro quase 30 anos aqui e nunca tive medo do arroio. Dessa vez, ele me deu medo”, afirma Clarice Schuster, 49 anos, agricultora de Linha Andréas. A propriedade dela e do marido Flávio é banhada pelo arroio, cuja força de água na enchente levou embora um quiosque e corroeu um hectare do potreiro. Foram dias sem estrada e sem passagem sobre o arroio, assim como dias sem luz e sem comunicação com os três filhos. “Do dia 29 de abril até 2 de maio, não tivemos notícias deles e eles de nós. A gente já não aguentava mais de preocupação, daí subimos pelo mato, até minha cunhada. Sorte que a filha dela estava lá e conseguiu avisar os nossos”, relatou Clarice.
20 dias isolados
Perto dos Schuster, moram os Metz. Lá, foram 12 dias sem luz, três semanas sem água e 20 dias sem acessos, isolados, onde voluntários e equipes da Prefeitura também levaram água e comida, cruzando lavouras a pé ou pela água. “Quatro noites a gente dormiu no vizinho [família Schuster], porque o barulho de água e coisas vindo abaixo era assustador. Tivemos medo de ficar em casa”, conta Claidis da Silva, Metz, 44 anos. Na noite de 29 de abril, ela, o marido Armin e o filho Gabriel correram para salvar ‘a safra’, recolhendo as bandejas das 60 mil mudas de tabaco que devem ser plantadas. A água do Sampaio avançou mais de 50 metros e quase atingiu os canteiros. “Eu falei para meu marido que, se a gente tivesse condições, tinha que sair daqui.”
Pinguelas
Das pontes sobre o arroio Sampaio, entre as localidades de Vila Teresinha e o Alto Sampaio, a travessia de Linha Santana foi resolvida com a reconstrução das cabeceiras, mas em outros pontos ainda há trabalho por ser feito.
Na divisa entre Linha Andréas e Sampaio (município de Sério), as máquinas da Patrulha Agrícola conseguiram chegar nesta semana, para desobstruir a galeria e reconstruir as cabeceiras. Nas últimas semanas, a passagem lá foi possibilitada com a construção de uma ponte estreita, sustentada por toros de árvores com tábuas por cima, a chamada pinguela.
A mesma coisa aconteceu no local próximo ao campo do Juventude, onde parte da chapa de concreto da ponte agora sustenta a cabeceira, que possibilitou fazer uma pinguela. Já ‘arroio acima’, na divisa com Sério, há pontos ainda sem travessia, porque as pontes foram destruídas.
Segundo o coordenador da Patrulha Agrícola, Rodrigo Garin, o cronograma, neste momento, consiste em seguir de baixo para cima, com foco na desobstrução de estradas e acessos onde ainda há pontos com deslizamentos. “Fazendo a recuperação, as equipes pretendem se encontrar, na medida do possível, e encerrar os trabalhos de estradas e acessos em Linha Paredão de Pires.”
Em Linha da Serra, nem subir, nem descer
Na região de Linha Marmeleiro, na Linha da Serra, dezenas de famílias também ficaram isoladas e sem luz por muitos dias. O principal acesso para a localidade é por uma estrada vicinal que sai da ERS-422. Esse trecho, que desce até o arroio Sampaio, ficou intransitável por quase uma semana após quatro grandes deslizamentos de terra. Além de não conseguirem subir para a 422, os moradores também não conseguiam descer e cruzar o arroio, porque a água arrancou a ponte.
“A gente ajudou com trator e motosserra, porque a Prefeitura não vencia”, comentou a agricultora Marli Wagner Feix, 52 anos. Na casa dela, onde mora com o marido Ilson e a filha Luciane, foram 17 dias sem luz. A nora Sabrina e o filho Sidinei, que também moram na propriedade, até conseguiram atravessar o arroio, quando a água baixou, com destino ao município de Sério. “A gente tentou comprar um gerador, mas não tinha mais”, relatou Sabrina.
Alguns quilômetros acima dos Feix, mora Antônio Maciel, 69 anos. Do lado da casa dele, um pequeno córrego que ele viu descer mansamente durante 27 anos em direção ao Sampaio, se transformou num “rio”, nas palavras dele, e que invadiu o pátio da casa e destruiu parte do galpão e da varanda entre os fornos de tabaco. “Das coisas de Deus e do clima, a gente não tem capacidade de nada”, resumiu o aposentado.